A conversa aconteceu no mesmo dia em que a relação de Andreia Oliveira terminou, ao fim de três anos de um namoro que tinha dado frutos: Balú. Havia pouco mais a acordar entre elas senão o destino daquele Beagle, adoptado um ano antes da separação das donas, na vida de cada uma delas.
Balú tinha sido oferecido pela irmã da ex-namorada de Andreia em 2020 — um plano engendrado entre cunhadas numa altura em que a relação durava havia dois anos. Desde então, o cão foi criado a meias e o nome das duas donas surge nas suas documentações. Depois, em 2021, tudo mudou.
“Deixei tudo em aberto”, assumiu Andreia, leiriense de 32 anos, em entrevista ao JORNAL DE LEIRIA: “Se ela quisesse ser a única cuidadora dele, ia custar-me muito, mas compreenderia”. Não foi o caso: as duas optaram pela guarda partilhada e é nesse regime que têm cuidado de Balú desde há três anos.
A história de Andreia não é caso único num país onde existem quatro milhões de animais de estimação (uma média de 1,76 por tutor) e onde, por cada 100 casamentos registados em 2022, houve 50 divórcios. Mas este é um mecanismo imposto por lei há sete anos, quando se alterou o estatuto jurídico dos animais. Desde 2017 que os animais deixaram de ser consideradas “coisas” à luz da lei — e isso não é mera semântica. Tudo mudou, até se os donos se divorciarem.
As estatísticas públicas sobre quantas guardas partilhadas de animais de estimação existem em Portugal escasseiam. Por um lado, porque só em 2019 foi criado o Sistema de Informação dos Animais de Companhia (SIAC), que centraliza as informações sobre os tutores — mas que só admite um titular, não lhe pede informações sobre o estado civil, não questiona directamente sobre o regime de tutela em causa, nem os motivos das transferências de titularidade, se for esse o caso.
Depois porque a tutela dos animais de companhia foi alterada em 2021, quando a responsabilidade passou da Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária (DGAV) para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF).
Mas, segundo Florbela Chaves, vice-presidente do Conselho Directivo da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal (LPDA), a esmagadora maioria dos casos não chega aos tribunais, sendo quase sempre acordado informalmente entre os donos, sobretudo quando não são casados.
Em casos de litígio, no entanto, a guarda do animal é decidida de forma semelhante à de uma criança: pesando as condições que cada um dos lados tem para o receber e o comportamento que o animal exibe. “Até se podem chamar psicólogos e terapeutas ao tribunal para se chegar a uma conclusão”, adianta Florbela Chaves.
Guarda partilhada dos gatos? “Jamais”
Dos cerca de 80 cães ao cuidado da LPDA, quase todos de grande porte e idosos, dois foram entregues após o divórcio dos proprietários — um dos quais num quadro de violência doméstica em que a vítima, não tendo condições para manter o cão, pediu ajuda à instituição por receio das condições em que o animal vivia.
Florbela Chaves acredita que a Lei n.º 8/2017, de 3 de Março, veio “dificultar o abandono” e “impor mais responsabilização aos donos”, que ficam registados nos chips obrigatoriamente associados aos animais.
Questionada sobre o balanço que faz do novo estatuto jurídico relativo aos animais de estimação, Florbela Chaves considera que “é bom que os animais estejam a ser cada vez mais entendidos como um membro da família que tem de ter um destino digno caso os proprietários se separem”. O facto de tomar em consideração a ligação entre o animal de estimação e as crianças cujos pais estejam em processo de divórcio é especialmente importante, realça.
“Aconselhamos sempre a que, em regimes de guarda partilhada, a mudança de casa dos filhos e do animal aconteça ao mesmo tempo”, aponta Florbela Chaves, esclarecendo que “o animal é para a criança, e vice-versa, um factor de estabilidade e segurança”. Só que esta “não é uma lei perfeita”, indica a especialista.
Primeiro porque sobrecarregou as associações com novos pedidos de ajuda para acolher os animais, muitos dos quais não conseguem ser absorvidos pelo sistema, nem adoptados posteriormente.
Conscientes da maior responsabilização que assumem com a obrigatoriedade do chip e com o aumento da fiscalização, os donos que não pretendem ficar com os animais de estimação “recorrem a meios legais”, como a tentativa de adopção por pessoas em quem confiam ou a entrega a instituições.
O abandono terá decrescido, assume Florbela Chaves — mas subsiste a tentativa de que a responsabilidade sobre para a rede de associações de utilidade pública dedicada à rede animal. Mas, mesmo em relação à saúde mental dos animais em causa, a guarda partilhada “pode gerar confusão” nos animais e culminar em problemas comportamentais: “Eles simplesmente não entendem o que lhes está a acontecer”.
O resultado da guarda partilhada depende da personalidade do animal e até da sua espécie. Os cães, por exemplo, por serem provenientes dos lobos, adaptam-se mais facilmente a mudanças de ambiente. “São gregários e interpretam a família como uma matilha”, explica Florbela Chaves: “Desde que sejam bem tratados e tenham condições, se tiverem personalidades estáveis, as mudanças de casa não os incomoda e entram na rotina”.
Com os gatos, no entanto, acontece precisamente o contrário: detestam mudar de casa porque “são mais territoriais”, refere a número dois do conselho directivo da LPDA.
Na esmagadora maioria dos casos, a guarda partilhada colide com a natureza solitária e mais sossegada destes animais, podendo culminar em quadros de ansiedade e em comportamentos destrutivos e agressivos — incluindo, nos casos mais severos, a auto-mutilação. O motivo, tal como no caso dos cães, está nos antepassados evolutivos dos gatos: entre os grandes felinos, só os leões apresentam tendência para viver em comunidade. Todas as outras espécies, dos linces aos pumas, dos tigres aos leopardos, são como os gatos domésticos: preferem estar sozinhos.
“Para os gatos, mudar de casa jamais, não é nada bom”, aconselha Florbela Chaves: é mais saudável para eles perderem contacto com um dos donos do que estarem constantemente a mudar de ambiente, concretiza.
Saudade, contas pagas a meias e desentendimentos
Foi a escolha tomada por Vanessa Antunes, 33 anos. Em 2020, depois do ponto final na relação de sete anos era preciso determinar quem ficaria com Boris e Luna, os dois gatos que o casal tinha adoptado em 2014 e em 2018.
O tema nunca foi um ponto de tensão entre os dois, contou ao JL a viseense, residente em Leiria. Nos primeiros tempos, o acordo só podia ser um: enquanto ela procurava uma nova casa, Boris e Luna ficariam com o ex-namorado de Vanessa no apartamento que ambos partilhavam. Mas essa seria sempre uma solução temporária, sublinha: “Nunca conseguiria ficar sem os dois. Pelo menos um deles teria de viver comigo”.
Quem agora vê Luna a vaguear tranquilamente na varanda do apartamento de Vanessa não imaginaria como foi o dia em que entrou naquela casa pela primeira vez. A data da mudança, um mês após o fim da relação, coincidiu com a primeira provação à guarda delineada pelo ex-casal.
Luna, por sempre ter sido mais companheira, ficaria com Vanessa. Boris, mais próximo do outro dono, permaneceria com ele. Só que a gata sofreu um acidente naquele dia, caiu da janela e precisou de acompanhamento clínico. Sobreviveu sem mazelas. Mas foi assim, doente e a precisar de cuidados médicos, que Luna entrou na nova vida que passaria a partilhar com Vanessa — só com Vanessa, pela primeira vez em dois anos.
Volvidos quatro anos, Vanessa já não está na vida de Boris e o seu ex-namorado já não está na de Luna. “Durante uns meses, se eu fosse visitar os meus pais, ele ficava com a gata; e se ele viajasse, eu cuidava do Boris”, recordou.
Nos primeiros tempos, chegou a combinar visitas à casa que tinha deixado para trás só para poder passar tempo com o gato. Mas isso “deixou de acontecer, naturalmente, porque é o que faz sentido”.
“Deixámos de estar na vida um do outro”, contou, “e os gatos também”. No caso de Vanessa, a conta do veterinário no dia da mudança foi a última responsabilidade que dividiu com o ex-namorado.
Os números
4,3
39
Com Andreia, o contacto constante mantém-se há três anos. “É quase como se fosse uma criança, de facto”, descreveu: as duas donas de Balú conversam regularmente no WhatsApp sobre o dia-a-dia, acordam todos os anos onde é que o Beagle passa o Natal e a Passagem de Ano; e até dividem as contas das consultas e medicação através de uma aplicação que permite contabilizar e gerir dívidas entre utilizadores — o Splitwise.
Só objectos como a almofada onde o cão dorme e a sua comida é que existem em duplicado entre as duas casas. Nem tudo é fácil no regime de guarda partilhada, admite Andreia: as donas de Balú têm opiniões contrárias sobre a castração e as rotinas são tão diferentes que nem sempre é possível estar em sintonia sobre os horários das refeições do cão, por exemplo.
Mas “é possível contornar” esses obstáculos, defende Andreia: “Já é tão difícil quando uma relação termina e uma pessoa importante sai da nossa vida… não vale a pena obrigar alguém a ver-se privado de outra parte tão importante como o seu cão”.