É atrás do maçarico que encontramos Vítor Gil Salgueiro. Ao calor do fogo, o artesão da Marinha Grande molda peças de vidro há décadas. É esta a actividade que lhe dá prazer. A profissão e a família são de resto as suas maiores alegrias, conta Vítor, que o JORNAL DE LEIRIA foi conhecer melhor.
Vítor Gil Salgueiro nasceu em Casal Galego a 25 de Janeiro de 1949. Teve cinco irmãos. Até aos 11 anos, altura em que o seu pai morreu vítima de acidente de viação, Vítor e os irmãos tinham uma vida relativamente boa. Naquela época, embora formassem uma família numerosa, nunca passaram fome.
O desaparecimento do pai mudou, contudo, o rumo da história deste agregado. A mãe, que até então se dedicava apenas aos filhos e ao lar, teve de trabalhar arduamente para criar as crianças. Era empalhadeira de garrafões e muitas vezes tinha de levar trabalho para casa e fazer serões para poder fazer face às despesas. “Passámos muitas dificuldades, mas a minha mãe foi uma guerreira”, recorda Vítor.
Foi precisamente aos 11 anos que o rapaz teve de fazer exame para ser admitido na Escola Industrial e Comercial da Marinha Grande. Mas o exame era pago, o pai tinha falecido e não havia dinheiro. O menino acabou por ter permissão para fazer o exame, mesmo sem o pagar. Uma vez na Escola Industrial, o rapaz acabou por ser o melhor aluno da disciplina de caligrafia.
A beleza da sua letra ainda hoje é reconhecida. Costuma fazer inscrições em peças oferecidas por empresas, colectividades e até particulares. Mas já fez mais trabalhos do género, salienta Vítor. No tempo em que os computadores não tinham tanta expressão, explica o artista.
Dadas as difíceis condições em que passou a viver a sua família, Vítor começou a trabalhar aos 11 anos. A primeira tarefa consistia em lavar as peças que seguiam depois para lapidação. “Fui ganhar 28 escudos à semana… quando ele me pagava”, conta Vítor.
Tempos depois, ainda criança, passou a trabalhar na “Fábrica Velha”, onde “levava a cima”. Uma função duríssima, conta Vítor. “Passava seis horas e meia a correr de um lado para o outro.”
“Depois fui trabalhar para um búlgaro, que veio trabalhar para a Marinha Grande depois da II Grande Guerra. Nunca vi aquele homem sorrir”, recorda Vítor. Nesta empresa, acabou por ser despedido “por coisas de garotos”. Foram dizer ao patrão que ele estava a fazer bolas de sabão. “E eu nem estava”.
[LER_MAIS] Felizmente, na época era fácil sair de um trabalho e encontrar outro. Foi trabalhar na Normax, que à época se chamava Joaquim Manuel Gomes. Foi contratado para ser paquete, mas fartou-se de atender o telefone e de fazer recados.
Gostava mais de fazer gravações no vidro do que estar no escritório. E como viram que tinha mais aptidão para esse trabalho manual, acabou por ficar na gravação de pipetas, tubos de ensaio e outro material de laboratório.
Mais tarde acabou por trabalhar na concorrência, na Vilabo. “Esse patrão pagava ao minuto”, conta Vítor. “Eu entretanto casei – faço 50 anos de casado em Dezembro – e era tão bom estar casado, ficar mais um bocadinho na cama, e chegava atrasado”, recorda o artesão.
Um dia, quando pediu 5 escudos de aumento, não obteve resposta positiva. Voltou a pedir emprego na Normax, onde se manteve até 1987. Por essa altura, tinham-no posto a trabalhar com o maçarico. Vítor, que já andava envolvido nas feiras de artesanato, a comercializar peças de um amigo, foi desafiado a fazer ele próprio peças de vidro no maçarico. Saiu da Normax e abriu a sua oficina, onde se mantém activo até hoje.
Houve anos de muito trabalho, quando quase nem conseguia dar resposta a tanta encomenda. Depois, conta o artesão, com a entrada dos artigos vindos da China em Portugal, os trabalhos manuais, como o seu, começaram a ter menos solicitações. Mesmo assim, é na sua oficina que se mantém a trabalhar todos os dias. Porque lhe dá prazer, explica Vítor Gil Salgueiro.
Um dos episódios mais marcantes da sua vida foi a participação na Guerra do Ultramar, onde foi motorista durante dois anos. Tinha casado aos 18 anos, tinha já a filha bebé, quando foi destacado para Angola. Dois anos e um dia depois, regressou. Tinha já a filha a acenar-lhe no aeroporto.
“A alegria maior da minha vida foi o regresso do Ultramar”, conta o artesão, que deixou para trás dois amigos. Um deles morreu num acidente com uma arma, outro afogou-se numa praia fluvial. Vítor não esquece que foi ele próprio quem conduziu o jovem soldado até à praia.
Passaram muitos anos, mas as memórias não se apagam, conta Vítor, que passa muitas noites em sobressalto. Não só quem esteve no palco de guerra sofre com o conflito, observa o ex-combatente, referindo-se à sua esposa, e até à sua mãe, que viu chegar um filho e partir outro quase de seguida.
Casado aos 18 anos, Vítor Gil Salgueiroacabou por ter muitas alegrias no seio familiar. Depois dos dois filhos, seguiram- se seis netos e duas bisnetas. Foi bisavô aos 57 anos, realça, feliz por poder gozar de uma família tão chegada como é a sua.