Chef ou cozinheira… Como prefere ser tratada?
Cozinheira. Primeiro é-se cozinheira, chef ser-se-á ou não. Chef é só quem tem uma brigada para dirigir. Sou uma cozinheira e também sou chef há mais de 40 anos, porque tive a sorte de poder ser cozinheira e chef logo.
Onde se sente mais realizada: a mexer nos tachos ou a coordenar?
Nas duas coisas. Já tive vários restaurantes e muitas brigadas, portanto estou habituada a chefiar brigadas. Mas, o que eu sou mesmo é cozinheira. Diz que precisa de cozinhar quando se sente triste, mas também quando está feliz.
É uma espécie de terapia?
Para mim é. Algumas pessoas, quando estão tristes ou quando têm algum problema, dão um passeio à beira-mar, isolam-se. Também gosto disso tudo, mas gosto de me isolar na cozinha. Estar na cozinha é uma terapia, um prazer. Gosto de estar na cozinha quando estou triste e quando estou feliz. Quando estou triste, as coisas desaparecem, os meus pensamentos mudam. Vou encontrar na cozinha aquilo de que estou a precisar para me animar. Se estou feliz, quero ir para a cozinha para criar mais um prato e vou fazer algo de que gosto.
E cria mais quando está triste ou feliz?
Em qualquer altura. Não se sabe quando. Gosto de criar pratos de improviso. Tenho os produtos, olho para eles e saem pratos.
A cozinha é agora uma moda?
Está a dar-se muita importância à comida e socialmente as pessoas gostam de ir a um restaurante. Antigamente, recebíamos os amigos em casa. Como as pessoas todas trabalham, precisam de tempo para conversar. É mais fácil irem a um restaurante, onde comem o que querem, estão a conversar e não têm de estar preocupados com a loiça. Quando têm crianças, se houver uma avó que fique com elas, melhor ainda porque depois podem ir beber um copo. Socialmente é já um hábito ir aos restaurantes e para isso tem de haver bons restaurantes. Ainda bem que há pessoas que gostam de cozinhar e que querem seguir este ramo, que é difícil e muitos desistem pelo caminho.
E no dia-a-dia, como funciona na cozinha: mais por intuição ou segue sempre uma receita?
Em 40 e tal anos de cozinha há dias de tudo, mas normalmente quando crio um prato é por intuição. Depois transmito à minha brigada esse prato para ela cozinhá-lo. Também acontece muito mudar a ementa conversando entre todos. Tenho pessoas que trabalham comigo há 40 anos e já me conhecem só num olhar. Tenho uma boa equipa e a maior parte dos pratos fazemos em conjunto, outros vou criando. Tenho uma ideia, chego ao restaurante e transmito-a. Quando vai para casa ainda tem vontade de cozinhar? Só para os netos. Para mim e para o meu marido não. Se for só para nós, faço um chá e umas torradas.
Começou a cozinhar ainda em criança. Quando é que começou a levar a arte da cozinha mais a sério e percebeu que queria fazer disto a sua vida?
Entrei na cozinha com 21 anos e fui logo chefiar um restaurante. Não estava nos meus projectos, mas gostava de cozinhar. A seguir ao 25 de Abril, o chefe do meu marido desafiou-me para ir chefiar um restaurante que ia abrir e convidou o meu marido para chefe de mesa e a mim para chefe de cozinha. Recusei porque não tinha conhecimento suficiente, mas ele insistiu e apostou em mim. Como eu era meia doida e com 21 anos não há aquela responsabilidade, queremos é ir longe, aceitei e foi um sucesso. A partir daí nunca mais parei até hoje. Nunca tive medo de me mandar de cabeça.
Quando começou a cozinhar o que mais gostava da confeccionar: doces ou pratos?
Na aldeia não havia muito o hábito de fazer doces. Faziam-se as bolachas e os económicos. Tínhamos era de comer comidinha boa. Com 9 anos ia à capoeira, matava um frango, depenava, arranjava, cozinhava, ajudava a minha mãe a descascar as batatas, a migar o caldo verde… Gostava muito de mexer um bom refogado. Não cozinhávamos muito peixe, porque não havia muito lá. Havia mais o bacalhau e o polvo, mas isso era a mãe que fazia. Nós fazíamos coisas mais práticas, como grelhar uma carne ou uma alheira e ajudar a fazer um bom arroz e massa.
A sua mãe foi a sua mentora?
Foi a minha mãe e a minha tia Lucinda. Entre os 7 e os 14 anos vivi com uma tia que não tinha filhos e ela era melhor cozinheira do que eu.
Qual o prato que mais gostou de criar?
O que me dá mais notoriedade é a sopa de santola. Quando se fala na Justa Nobre fala-se na sopa de santola. Foi uma sopa de marisco que criei. Começou por ser servida na carapaça da santola, agora é numa carapaça de porcelana da Vista Alegre. Houve uma altura em que achei que deveria ter uma boa sopa de marisco, mas não queria aquela sopa tradicional do camarão que havia em todo o lado. Um dia tive uma ideia genial. Andava no mercado, olhei para umas santolas e pensei: ‘olha que bonito para se fazer uma sopa’. Depois criei essa sopa que tem feito sucesso. As pessoas vão ao restaurante e querem provar.
É conhecida por reinventar a cozinha portuguesa. Também há espaço para utilizar novos produtos?
Há sempre. A cozinha tem espaço para tudo. Só não concordo em modificar os pratos da cozinha tradicional portuguesa. Temos de os respeitar, ou seja, fazer a receita original. Podemos dar-lhe um empratamento mais bonito e baseando-nos na cozinha portuguesa podemos criar. A cozinha é um laboratório, podemos criar à vontade. É aí que dizem que reinvento a cozinha portuguesa. Estou sempre a criar pratos, mas com base na cozinha portuguesa. O produto é nosso e à volta dele podemos fazer o que quisermos. Agora, também há mais ingredientes, mais temperos, mais ervas aromáticas do que antigamente, que não se usavam. É só criar.
Inspira-se noutro tipo de cozinhas como a francesa ou italiana?
Quando era mais nova já o fiz mais. Agora há muitos anos que decidi que quero cozinha portuguesa, porque tenho muitos estrangeiros e empresários que fazem no meu restaurante almoços de negócios. Quando trazem convidados a um restaurante português, faz sentido comerem comida portuguesa. Gosto muito de cozinhar peixe e caça. Temos o melhor peixe do mundo, portanto há que fazer bons pratos. Quando digo cozinhar peixe não é grelhar peixe. É fazer pratos elaborados com peixe, com marisco e caça. Há muito o que fazer na nossa cozinha. Muita coisa para criar, inovar e descobrir. Quero continuar a descobrir novos produtos e criar novos pratos.
Portugal é conhecido pela sua gastronomia. Temos a melhor gastronomia do mundo?
Não gosto de dizer que somos os melhores do mundo. Temos uma gastronomia muito boa, muito variada, muito rica e muito saborosa. Uma comida bem temperada. A nossa comida não é desenxabida em lado nenhum. Temos uma gastronomia fabulosa e isso é que é importante.
Que influências vai buscar a Trás-os-Montes para a sua cozinha?
Vou muito às memórias. Tenho memórias gustativas que não têm desaparecido. Ervas aromáticas não muitas, porque lá nunca houve esse hábito, mas vou aos produtos. Lembro-me de pratos que a minha mãe e a minha tia faziam, faço-os e dou-lhes depois o meu jeito. No meu restaurante tenho todas as semanas feijoada à transmontana (páro agora no Verão), o cozido à portuguesa, uma boa perna de cabrito de Mirandela assada, como a minha mãe me ensinou. Há pratos que respeito a receita original da minha mãe. Outros dou o meu toque pessoal, porque a cozinha vai evoluindo, vamos aprendendo outras coisas e vamos melhorando, como é lógico.
Chegou a tirar alguma formação?
Não. Foi sempre a minha aventura, o meu gosto pela cozinha e a minha vontade por fazer bem, querer fazer melhor e saber mais. Costumo dizer que toda a vida tenho andado em competição, mas comigo mesma. Hoje faço bem, amanhã quero fazer melhor. A minha equipa colabora comigo muito neste aspecto e eu com eles, portanto, andamos sempre a falar sobre pratos novos. Todos ali têm o direito de opinar sobre o acompanhamento, sobre a erva aromática que devemos pôr naquela carne ou naquele peixe e é isso que também faz com que as pessoas gostem de trabalhar comigo, porque sabem que aprendem a cozinhar e isso é muito importante.
Já trabalha na restauração há mais de 40 anos. Que principais mudanças ocorreram na nossa cozinha?
A nossa cozinha perdeu gordura, perdeu sal e ganhou empratamento. Aprendeu-se a cozinhar legumes. Há 40 anos cozinhava-se de mais os legumes. Aprendemos que temos mais necessidade, sobretudo na cidade, de comer mais vegetais. Já se ganhou o bom hábito das saladas. As pessoas já sabem comer melhor. Antigamente, achava-se que o prato cheio é que era uma boa refeição. Não. Um prato de comida bem feita é que é uma boa refeição. As pessoas já equilibram melhor a comida no prato e estão mais cuidadosas. Já não é batata frita, arroz, ovo estrelado…
O facto de se ter diminuído o sal e a gordura perdeu-se sabor?
Não. Para que servem as ervas aromáticas? Temos tantas, principalmente no sul. A cozinha não perdeu sabor, pelo contrário, ganhou saúde. As pessoas ganharam saúde com a cozinha de agora. Também compreendo por que é que a cozinha há 40 anos era mais salgada, principalmente, nas províncias. As pessoas tinham muito trabalho braçal e precisavam de sal para beberem mais um copinho de vinho e ganhar energia para trabalhar no campo. Felizmente, hoje, mesmo quem trabalha no campo, já tem a vida mais facilitada, porque tem máquinas eléctricas. Sal e gordura a mais não dão saúde a ninguém e as pessoas estão muito mais cuidadosas e muito mais preocupadas com a sua saúde. Isso é muito importante e nós gostamos disso.
Qual a razão para o estatuto da profissão ter mudado tanto?
Antigamente nos bons restaurantes só se conheciam o chefe de mesa e o escanção. De repente, as coisas foram mudando. Houve preocupação da imprensa de tentar perceber quem está por detrás de… Costuma-se dizer que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher. E por detrás de um grande restaurante estão os cozinheiros. Isso tem sido importante. Lá atrás está um artista, uma pessoa com sensibilidade, com bom gosto, que está a cozinhar para pessoas que nem conhece e que vêm de todo o lado. Os cozinheiros têm um trabalho muito importante na nossa vida social e na gastronomia.
Conquistar uma estrela Michelin é um sonho?
Não. Admiro quem trabalha para ela, mas nunca foi o meu sonho, nem a minha perspectiva de querer. Quando algum cliente me pergunta sobre uma estrela, digo sempre: ‘uma estrela? Tenho o meu restaurante cheio de estrelas’. As minhas estrelas são os meus clientes. Mas aprecio e dou os parabéns a quem trabalha para ter uma estrela Michelin. Eu trabalho para ter uma boa cozinha, deixar os meus clientes satisfeitos e ter uma clientela fiel, como tenho. Isso para mim é muito mais importante.
Qual o prato preferido dos seus netos confeccionado pela avó?
Há vários. os panadinhos, o cordon blue, os crepes de fiambre ou os bifinhos de frango. Peixe é mais difícil, mas faço o linguado. Os meus netos nem parecem netos de uma cozinheira. São um bocado complicados, mas estão a melhorar. Gostam muito das minhas sopas.
Carne ou peixe, o que prefere? E doces ou salgado?
Peixe. Salgado.