Uma vez por semana, em Leiria, António Aires Rodrigues, Álvaro Órfão e Vitorino Vieira Dias partilham uma refeição temperada com episódios, uns sérios, outros humorísticos, dos tempos de vida activa na política.
Foram deputados na Assembleia Constituinte pelo PS, órgão temporário que redigiu a Constituição da República Portuguesa, Lei Fundamental que rege a democracia.
O primeiro, embora natural do concelho de Soure, concorreu por Leiria. O segundo nasceu na Marinha Grande e concorreu por Leiria. O terceiro, embora morasse na Marinha Grande, é natural de Alburitel, no concelho de Ourém, e foi eleito por Santarém.
A notícia de que estava a acontecer um golpe militar, em Lisboa, chegou a Aires Rodrigues quando estava exilado em Paris. Tinha 29 anos, e dava aulas num centro social, que acolhia imigrantes portugueses e espanhóis.
Como as comunicações com Portugal cortadas, passou o dia a discutir política com os jovens, sempre com o coração nas mãos. Teve de esperar pelo 26 para falar com o pai em Portugal e saber como estava a família. Não esperou, contudo, tanto tempo, para reunir todos os bens que havia amealhado nos oito anos de exílio e regressar. “Coube tudo numa mala!”, brinca.
Apanhou um avião, o primeiro onde conseguiu lugar, e chegou a tempo de celebrar o 1.º de Maio. Participou em comícios em todo o País e até na terra natal, Alfarelos, no concelho de Soure, que foi o ponto de partida para uma carreira na política, que o levaria a ser um dos construtores da estrutura do PS na zona Centro.
Já Álvaro Órfão costumava estar pelo café Panorama, na Marinha Grande, até à meia-noite. Depois ia para casa e estudava pois cursava Direito, enquanto escutava a Renascença ou a Rádio Universidade. Aquela quinta-feira foi igual para o enfermeiro de 35 anos que recorda ouvir a canção “E depois do Adeus”, que deu início ao golpe, no programa “Tempo Zip”.
Às 8 horas, chegou ao posto médico, na cave da Guilherme Pereira Roldão, e começou uma manhã de orelha encostada ao rádio. A hora de almoço passou-a no Panorama de olhos na televisão. “Às 14 horas, fui para o meu segundo emprego, na SIVE. Só lá estava eu e o doutor Rui Couceiro. Ficámos a ouvir as notícias.”
À noite, pela praça Guilherme Stephens ainda passaram algumas pessoas para tomar o pulso do que se passava nas ruas.
A verdadeira manifestação popular, porém, só aconteceu no dia seguinte, com cerca de sete mil pessoas.
“Houve alguns oportunistas nas varandas da Câmara a fazer discursos com ‘ismos’ a mais. E percebi que aquele caminho não era para mim. A minha melhor recordação é de ver o meu pai – era um homem calado, muito ligado à igreja, que foi responsável pela Conferência de São Vicente Paulo – ao meu lado na manifestação.”
Do período, tem muitas outras lembranças, algumas que o fazem rir à gargalhada, como quando participou numa manifestação em Leiria e lhe vieram oferecer o cargo de responsável da Caixa da Previdência [Segurança Social]. “Recusei. Não alinho em golpismos desses!”
Haveria, porém, de ser escolhido para presidente da comissão que fundou as urgências da Marinha Grande. “Os médicos escolheram-me.”
O curso de Direito ficou para trás pouco depois, quando, num grande comício na Embra com comunistas e socialistas, ainda sob uma ideia de “unidade nacional” que acabaria por ser abandonada, Mário Soares o escolheu para fazer o “discurso do PS”. “A partir daí, fui sempre o ‘gajo da Marinha Grande’ para ele”, conta.
Vitorino Vieira Dias era professor de Economia, na secundária da Marinha Grande. “Na primeira aula da manhã, vimos um panfleto do PCP nas secretárias. Foi quando tomei conhecimento de que havia uma revolução em curso.”
Se o panfleto descrevia a versão dos comunistas, o professor, então com 29 anos, esforçou-se por dar aos alunos a democrática. Recorda esses tempos como “difíceis”.
Chegou a ser saneado por uma comissão organizada na escola pelo PCP, dias após o 25 de Abril, mas, ainda assim, conseguiu ser eleito para o Conselho Directivo, em eleições que os comunistas davam como ganhas.