Em menino, era dotado para as letras e as suas redacções eram elogiadas pelos professores, sonhava estudar História e ser arqueólogo, mas foi revolucionário, pacifista, poeta, anarquista, tocador de congas no metro e nas praças de vários países da Europa e do norte de África, terapeuta na Nicarágua e jornalista no JORNAL DE LEIRIA.
Não chegariam as páginas desta edição para contar a História de Vida de Damião Leonel. Qualquer relato, por mais extenso, será sempre curto e falhará por não conseguir transmitir todas as histórias dentro da sua história.
Nasceu em Gondomar a 15 de Fevereiro de 1956 e uma das recordações que guarda num local especial do coração é a do dia 25 de Abril de 1974, que viveu na Praça da República, no Porto.
O golpe de Estado que acabou com o Estado Novo apanhou um jovem Damião, com apenas 18 anos, no autocarro, a caminho das aulas. Em frente da sede da PIDE, na Rua do Heroísmo, o autocarro parou, impedido de passar pelos milhares de pessoas que ali se encontravam.
Damião apeou-se e juntou-se à manifestação. Ajudou a virar e a incendiar os carros da odiada força secreta. Foi dos dias mais felizes da sua vida. Nunca mais voltou à escola. Preferiu encetar uma vida de militância política na extrema-esquerda.
“Entrei numa febre revolucionária e comecei a frequentar as reuniões da LUAR, que era a favor da luta armada contra a direita reaccionária”, recorda e adianta “penso que a universidade da vida é o meu diploma.”
Acabou por abandonar a organização, porque não sentia que os interesses dos jovens estudantes fossem ali defendidos, e seguiu para as Brigadas Revolucionárias, de Isabel do Carmo.
“Por um lado, sentia-me revolucionário, por outro, sempre fui um pacifista e anarquista, inspirado por Nestor Makhno.” A luta contra o sistema acabou no dia em que o pai, dono de uma pequena fábrica de candeeiros, o enviou para o Rio de Janeiro, para casa de um primo.
“Fui mal recebido e zanguei-me com ele. Vi-me na rua, com duas malas na mão e sem saber o que fazer. Dormi uma noite em frente à casa de Marcello Caetano e fui socorrido por uns portugueses que tinham uma padaria, onde comecei a trabalhar.”
O trabalho era pesado e, um dia, apareceu um outro português que, vendo-o magro, lhe estendeu uma mão. “Era Jorge A., chefe dos contrabandistas de electrodomésticos em Portugal, antes do 25 de Abril.”
Cinco meses passaram e a criminalidade e violência, com mortos e feridos à mistura, levaram-no a regressar. Assim que chegou, embarcou em nova aventura revolucionária, na Herdade Estrela Vermelha, no Alentejo, para defender a Reforma Agrária.
Aventura de uma vida
Findo esse episódio, juntou-se ao amigo João Ventura, naquela que diz ter sido a grande aventura da sua vida. Partiram para uma viagem sem tempo, nem destino, pela Europa e norte de África.
Ventura tocava guitarra e Damião congas, para ganharem dinheiro e sobreviver. De mochila às costas, visitaram Espanha, França, Itália, Sicília, Tunísia, Argélia e Marrocos. Foram ardinas em Palma de Maiorca, tocaram nas ramblas de Barcelona, e foram ajudantes de um faquir francês em Roma.
Partiam garrafas, onde o faquir se deitava e Damião equilibrava-se em cima dele, enquanto Ventura tocava guitarra. Um dia, o gaulês desapareceu e a dupla seguiu viagem até ao sul de Itália onde viveram numa comuna de hippies.
Seguiu-se a Sicília, a Tunísia e a Argélia. Num café na cidade de Oran, encontraram um grupo de jovens argelinos que partilhou com eles haxixe.
“Fumar aquela droga fazia parte do dia-dia. Tocávamos inspirados pelas sensações que nos dava. Ficámos um mês com eles a conviver e a aprender lindíssima música árabe, com os nossos novos amigos.”
Damião ainda teve de fugir da filha do xerife (chefe político) da cidade de Tlemcen, que queria casar com aquele jovem de tez clara e olhos azuis como o mar, num dia sol.
“Apaixonou-se por mim, apresentou-me à tribo e tive de ir embora, antes que me metesse em sarilhos.”
Regressaram a Espanha, após passarem por Marrocos e fizeram várias viagens clandestinas de comboio. Uma delas ainda está viva na memória.
“Numa carruagem porta-automóveis, eu e o João percorremos 400 quilómetros a olhar o céu estrelado. Íamos, na estrutura em ferro, na posição de Cristo na cruz e sob a influência das drogas.”
Chegado a Portugal, caiu no vício das anfetaminas e do álcool.
“Andava sempre speedado. Parecia uma mota. Era um tóxico-dependente puro e duro”, admite.
Hoje, diz, “não fuma, não bebe, nem se droga”. É um homem limpo. É-o há vários anos, fruto de uma força de vontade férrea.
Não tem problemas em falar dos tempos de toxicodependência, especialmente, porque acredita que, dando o seu testemunho, pode ajudar outros a evitar as drogas.
O primeiro passo para acabar com o vício aconteceu quando os pais o internaram no Le Patriarche. Ainda hoje, é uma relação de amor-ódio. “Salvou-me a vida mas…”
Durante a desintoxicação fez trabalho escravo e conheceu as piores e mais brutais pessoas com quem conviveu na vida.
Um dia, soube que procuravam jornalistas para a redacção da revista Le Patriarche. “Agarrei a oportunidade com unhas e dentes.”
No novo ofício conviveu e aprendeu com um jornalista do El País e com um repórter do Paris Match. Foi jornalista durante quase cinco anos até que seguiu para a Nicarágua, onde foi terapeuta, no tratamento do alcoolismo, durante oito meses.
Aí, viveu aventuras ao lado dos sandinistas, de quem era apoiante, até que o recrudescimento da guerra civil, em 1990, o fez temer pela vida da mulher.
“Ela é uma âncora na minha vida.” Estava grávida de cinco meses e resolveram voltar para Portugal.
Em Gondomar, soube que mais de 20 amigos tinham morrido de SIDA e de overdose de heroína.
“A minha família implorou-me que fosse embora, para que não caísse na droga.” Foi para Leiria e bateu à porta do JORNAL DE LEIRIA, onde foi entrevistado pelo proprietário José Ribeiro Vieira.
“Contei-lhe a minha vida e ele partilhou a sua. Pediu-me que escrevesse um texto, a que dei o título O homem de Leiria.
Ele leu-o e, disse-me: ‘o senhor começa a trabalhar amanhã de manhã’.”
Foi jornalista durante 19 anos. Durante esse tempo, aprofundou a amizade com Ribeiro Vieira. Costumavam passear pela cidade, à noite, a falar de tudo e de nada.
“Quando ele morreu senti uma dor difícil de suportar. Senti a ausência daquele homem amante de cultura, das artes, capitão de Abril, empresário e político. Era pragmático e sonhador, dono do JORNAL DE LEIRIA e da livraria Arquivo, e um amante das letras”, lembra.
Recorda que, numa viagem que ambos fizeram a Paris o perdeu de vista. Encontrou-o sentado num passeio a ler um livro de poesia.
Chegou a ser o Grande Repórter do jornal, mas um dos seus grandes motivos de orgulho foi a redacção dos Ecos do Século XX, colecção de fascículos históricos sobre o distrito de Leiria, que compilou para o semanário.
Agora, reformado, dedica-se à investigação e à sua paixão pela história.
Recentemente, para celebrar a libertação do campo de extermínio de Auschwitz, organizou a mostra Um olhar sobre o Holocausto, na ACRENARMO, junto ao castelo de Leiria.
E agora?
“Agora, estou em reflexão sobre escrever um livro sobre a minha vida. Já comecei a escrever um outro intitulado O meu funeral. Falo na primeira pessoa. Estou num snack-bar e vejo passar o meu funeral. Acompanham o cortejo prostitutas, deputados, autarcas… ou seja, os vários tipos de pessoas que conheci, enquanto jornalista…”