Faltam só alguns dias para se completarem sete anos desde o grande incêndio de 2017 na Mata Nacional de Leiria quando Octávio Ferreira confirma, uma vez mais, numa visita ao terreno, o que considera serem “asneiras” inaceitáveis e incompreensíveis na recuperação do pinhal.
Do “falhanço nas plantações” ao “desperdício dos dinheiros públicos”, da “situação verdadeiramente absurda e muito prejudicial” em vários talhões com regeneração natural ao “problema grave de invasoras”, a avaliação que faz é, quase sempre, negativa: “erros técnicos”, “desleixo”, “falta de conhecimento”, “abandono”. Está tudo num documento com texto e imagens que enviou em Março ao presidente do ICNF – Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, a que o JORNAL DE LEIRIA teve acesso.
O incêndio de 15 de Outubro de 2017 destruiu 86% da Mata Nacional de Leiria e, sete anos volvidos, a gestão do pinhal (responsabilidade do ICNF) continua debaixo de fogo. “Veja bem este matagal, olhe os regos aqui. Isto não se compreende, está tudo coberto”, assinala o engenheiro silvicultor aposentado desde 2018, que continua a residir na Marinha Grande e tem 40 anos de experiência a trabalhar em florestas do Estado, incluindo, durante décadas, o Pinhal de Leiria, como técnico e gestor.
“O que eu critico é ter-se plantado e depois ter-se abandonado, pura e simplesmente”, diz ao JORNAL DE LEIRIA, quando a conversa decorre junto a um ta lhão já intervencionado. Segundo Octávio Ferreira, existem na Mata Nacional de Leiria “plantações com três, quatro, cinco anos” em que “não [se] vê um único pinheiro”, o que se vê “é mato”.
No relatório que endereçou ao INCF há sete meses (e até agora sem resposta) aponta que quase todos os talhões plantados desde o inverno de 2017/2018 estão abandonados, ou seja, não houve retanchas (substituição de plantas mortas ou que não vingaram) nem acções de limpeza. Alguns pinheiros secaram e desapareceram, outros encontram-se sufocados por matos, que crescem mais rápido e lhes roubam luz, água e nutrientes.
O antigo quadro do Ministério da Agricultura acrescenta, ainda, que as plantações foram feitas em regos demasiado profundos e em alguns casos os pinheiros ficam soterrados devido à chuva e ao vento que actuam sobre as areias. A alternativa seria fresar faixas (desbastar).
“Péssimos resultados”
“Erros técnicos graves”, de que resultam “péssimos resultados”. Octávio Ferreira adianta que a taxa de mortalidade das plantações na Mata Nacional de Leiria “parece ser um pouco superior” ao normal e avisa que “não basta [ao ICNF] dizer já plantei área ardida” e, depois, “não ter lá plantas”.
“Inaceitável”, acredita, é, também, o que observa em determinadas zonas com regeneração natural (onde os pinheiros nasceram de sementes que ficaram no solo e resistiram ao fogo) e com que confronta o ICNF no mesmo documento: pinheiros jovens, “muitas vezes às dezenas de milhar por hectare”, no meio de matos, “a definhar” ou “já com difícil recuperação”; outros, “em grande competição”, afastados entre si apenas centímetros, porque não se procedeu ao corte dos exemplares considerados mais fracos e desnecessários; falta de adensamento nos talhões em que a regeneração é insuficiente; e faixas limpas de matos, mas estreitas, em que a largura entre as linhas de pinheiros não permite a entrada de tractores ou carros de bombeiros.
Sobre o balanço que o ICNF apresenta, da intervenção na Mata Nacional de Leiria, Octávio Ferreira alerta: “Contabilizam a área intervencionada, não contabilizam a área que está recuperada”, que será “muitíssimo inferior”, estima. “Não sei se chega a metade”.
Invasoras fora de controlo
Há mais críticas. À cabeça, “um problema grave de invasoras”, provocado por acácias e, com expressão mais reduzida, erva-das-pampas. As acácias, “o que estão a fazer é cortá-las, a seguir rebentam, continuam cá”. Octávio Ferreira defende que seria mais adequado conter a propagação onde ocorrem manchas maiores e arrancá-las uma a uma nas zonas menos atingidas. “Uma dezenas de invasoras passados uns anos serão centenas e depois milhares”, realça. “Alguns talhões da Mata Nacional de Leiria apresentam acácias em vários hectares”.
O principal recado que o engenheiro residente na Marinha Grande envia ao ICNF, com o objectivo de estancar “asneiras que estão à vista de todos”, cabe num par de frases: “Suspendam-se por um ou dois anos as novas plantações, dê-se no ime diato prioridade ao tratamento das plantações já realizadas, limpem-se os matos, façam-se retanchas e adubações”. E, ao mesmo tempo, “aproveite-se para terminar o aproveitamento da regeneração natural”.
Em paralelo, Octávio Ferreira denuncia que “a rede divisional rectilínea da Mata Nacional de Leiria desapareceu em alguns locais, noutros encontra-se em ziguezague e invadida pela vegetação, situações que é preciso inverter”; sugere a beneficiação de estradas e caminhos que atravessam o pinhal e lamenta “o estado de abandono” a que estão votadas as árvores de interesse público da Mata Nacional de Leiria, como “o pinheiro bravo do talhão 271, com 207 anos”, e a falta de cuidado e preservação de locais históricos, como a fonte da Felícia, “desaparecida no matagal”.
“Ponham aqui na Marinha Grande um conjunto de técnicos, um serviço, com capacidade de decisão, com um orçamento próprio anual”, reclama, enquanto nota que, “neste momento”, o Pinhal de Leiria “está a ser gerido por Viseu”, de acordo com a orgânica do ICNF. “Continua a haver falta de conhecimento, desconhecem como é que isto no litoral deve funcionar”. Em suma, “o que está a falhar é [não] haver uma estrutura técnica aqui a funcionar. Puseram um departamento, na Marinha Grande, esse departamento é simbolizado por uma placa que está ali na parede. E mais nada”.
Outro modelo de gestão?
Ainda mais longe, vai o ex-presidente do Observatório Técnico Independente criado na Assembleia da República depois dos incêndios de 2017, para quem “a gestão” da Mata Nacional de Leiria “deveria ser partilhada” por outras entidades, além do ICNF, modelo que, assegura, “faz com que a mobilização de recursos seja bastante mais fácil” e “cria uma situação de muito maior equilíbrio entre as várias vertentes” do pinhal, incluindo a produção, o recreio, a cultura e a história. Experiências “com sucesso” já existem, argumenta Francisco Castro Rego. “Vale a pena utilizar parcerias e sobretudo a relação entre as entidades nacionais e as entidades locais, e a câmara municipal é, claramente, uma”, afirma. “Obrigaria a que a postura do ICNF fosse bastante diferente”, isto é, “menos autoritária” e “mais dialogante”.
Além das vantagens de um novo modelo de gestão da Mata Nacional de Leiria, que o Observatório Técnico Independente chegou a recomendar, Francisco Castro Rego relembra a importância da instalação, na Marinha Grande, do Museu da Floresta, formalmente criado em 1999, mas que continua sem sair do papel. “Tem havido , por parte do ICNF, uma postura de tomar decisões unilaterais, que me parecem ir completamente ao arrepio daquilo que poderia ser, pelo menos na minha cabeça, o Museu da Floresta”. E explica: “Deve ser um museu nacional” e “a câmara municipal tem de estar lá” mas “não deve estar sozinha”.