Estamos a meio de um ano de curadoria no projecto Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco. Vai mesmo sair no final de 2022? Está disponível para continuar?
Não tenho resposta, ainda. Está tudo em aberto, para um lado ou para o outro. A minha sensação pessoal é muito positiva. Receava que pudesse ter um peso na minha carreira enquanto artista, e, felizmente, não foi o caso, porque tem sido um trabalho de equipa. Enquanto director artístico tenho lidado sobretudo com a parte boa de um cargo destes, que é ter ideias, lidar com artistas e imaginar coisas que potenciem o lado artístico da cidade. E o feedback, tanto do ponto de vista da câmara como dos artistas, também tem sido muito positivo.
Até à data, estão a conseguir envolver, como desejavam, os artistas e o público?
Sim, acho que as nossas iniciativas têm tido bastante adesão e têm servido os eixos estratégicos da Unesco, nomeadamente, por exemplo, o Dia Internacional do Jazz, em que assumimos o desafio, com a direcção da Feira de Leiria, de fazer um concerto de jazz num contexto de uma feira, enfim, mais popular, e tivemos a Orquestra Jazz de Leiria e a Big Band do Orfeão de Leiria. Dito isto, claro que nos interessa envolver o público, mas não fazemos iniciativas pela quantidade de pessoas que vão assistir aos concertos, fazemos porque acreditamos e não temos medo de arriscar. Como, por exemplo, na Ronda Poética. Achámos que seria importante, enquanto Cidade Criativa, ter no nosso raio de acção a música contemporânea e ter aqui a presença do Luís Tinoco, a presença do Rui Vieira Nery. Não se compara com a quantidade de gente na Feira, mas nós acreditamos na relevância de ter um concerto de jazz no Dia Internacional do Jazz e acreditamos na relevância de ter um dos principais musicólogos e um dos principais compositores, mesmo para dezenas de pessoas. Não podemos embarcar em arco com uma lógica populista de fazer só multidões.
Esses vários registos que se encontram em Leiria, têm-no surpreendido?
Pela positiva. Sente-se uma grande necessidade de cultura e uma grande necessidade de ir a espectáculos. Vindos de uma ressaca de uma pandemia, é uma oportunidade de matar essa sede que o público tem. É muito gratificante.
Pode deixar ganhos para o futuro?
Sim, absolutamente. Será preciso esperar para ver, mas, de facto, as pessoas têm uma predisposição diferente para sair de casa que se calhar não tinham antes da pandemia. Há aqui uma oportunidade de impactar a vida das pessoas, sobretudo, os jovens, que estão na fase de perceber que caminhos querem trilhar. O facto de podermos oferecer concertos, mas, mais do que isto, até, o facto de podermos oferecer contacto com os músicos que cá vêm. Foi essa lógica que nos trouxe a fazer este workshop com o Joel Silva [oficina de percussão e improvisação com cerâmica da Bajouca].
Estão satisfeitos com o número de encontros de artistas locais com artistas nacionais ou internacionais e com o número de projectos de Leiria a circular fora, dois objectivos da Leiria Cidade Criativa da Música?
Estamos muito contentes. Tivemos a iniciativa O Som das Palavras, que trouxe compositores estrangeiros de renome mundial. E estamos a falar de um ensemble de sopros de Leiria que é o culminar de várias dezenas de anos de trabalho e de aperfeiçoamento de músicos que começaram nas filarmónicas. Temos 11 filarmónicas, o que envolve centenas e centenas de jovens e músicos de gerações diferentes. Se calhar, há 50 anos, talvez os jovens almejassem a ser professores de conservatório e hoje em dia começam a ver-se solistas a dar cartas a nível mundial que vêm das filarmónicas. O facto de se conviver cada vez mais cedo com músicos que foram cada vez mais longe na carreira potencia o aparecimento de ainda maiores talentos. Quando se tem um ensemble de 50 músicos, vê-se isso a acontecer em vários instrumentos diferentes, em várias filarmónicas diferentes. Para acontecer de forma consistente em massa é porque há um trabalho por trás de dezenas de anos. E que ocorreu aqui em Leiria. Depois, a internacionalização. Para estar à frente de uma instituição destas, não se pode ter enviesamentos estéticos, não se pode olhar para os músicos de rock ou jazz ou ópera com preconceito. Dadas as características do festival na Coreia do Sul, mas também no Central Park, pensámos em dirigir o convite a bandas dessa natureza [Surma e Whales] por uma questão de ecletismo e o feedback foi fabuloso.
Faz falta mais investimento na internacionalização da música de Leiria e dos músicos de Leiria?
Nós estamos aqui também para abrir essas portas. Por vezes, mais do que uma questão de dinheiro, é uma questão de diálogo e de articulação institucional que permite este tipo de intercâmbios. Obviamente, a Cidade Criativa da Música,através da rede Unesco, é um parceiro estratégico para qualquer músico, banda ou instituição. Por vezes somos procurados pelos agentes, por vezes somos procurados pelos organizadores no estrangeiro, tentamos responder de forma justa, equilibrada e eclética.
Disse na apresentação da programação para 2022 que é difícil, enquanto espectador, ter a noção da grandeza que a música representa no concelho. Como compara Leiria com outras cidades portuguesas?
A música e as artes em geral. Compara muito bem e de forma impressionante, até. Não temos proximidade geográfica com Lisboa e Porto, portanto, temos de fazer com o que há aqui. Ainda não somos verdadeiramente uma cidade onde um jovem licenciado do sector possa pensar em vir viver a tempo inteiro. Na música clássica, a maior parte dos jovens almeja a um lugar numa orquestra, que é uma coisa que é cara, que precisa de um público, precisa de um espaço para ensaiar regularmente e nós não temos ainda a capacidade para ter uma orquestra a funcionar como tem Lisboa ou o Porto.
Podemos ter?
Sem dúvida alguma, se houver um compromisso político e se houver umesforço financeiro. Isso pode acontecer em Leiria num futuro que não é assim tão distante.
O que distingue a Orquestra Jazz de Leiria e o ensemble de sopros da Associação de Filarmónicas do Concelho de Leiria dessa orquestra em que está a pensar?
Esses agrupamentos existem porque, primeiro, apareceu a qualidade dos músicos e eles uniram-se e formaram-nos. Uma orquestra profissional tem de ter uma organização institucional por trás, uma estrutura de suporte, financeira, admistrativa e de produção. A médio-longo prazo, não duvido que vai acontecer em Leiria. Existe um sector que está a formar músicos de grande nível e portanto ou os deixamos sair para irem dar cartas no exterior ou o país, nas próximas décadas, vai ter de perceber o potencial e começar a criar instituições que os amparem. Orquestras de música clássica, mas também orquestras de jazz. Replicar estes modelos a nível regional, nas capitais distritais.
A cultura é cara? Ou já não é desculpa?
Temos feito um bom trabalho para combater as desigualdades no acesso à cultura, a nível local e a nível nacional. O preço do bilhete não é desculpa. O principal problema no acesso à cultura tem muito a ver com a educação. Enquanto agentes culturais, temos de primar por um maior ecletismo e temos de trabalhar, falando em música, para expor as novas gerações, que serão os públicos do futuro, ao maior tipo de correntes musicais possíveis. A educação tem um papel central. Termos uma orquestra de jazz em Leiria é um trabalho extraordinário, ter um ensemble de sopros a fazer música contemporânea, mas também a Surma, os Whales, o David Fonseca, o Música Dá Trabalho a levar o rock às escolas, o Ópera na Prisão. Poder dizer “há uma obra de música contemporânea que foi estreada em Leiria, há uma orquestra de jazz que faz concertos de forma recorrente em Leiria”, tudo isto é sinal de grande progresso.
O que há de diferente nas cidades Unesco como Leiria ou Óbidos?
Existe um compromisso do poder político em potenciar as áreas das cidades criativas e áreas que se relacionem com elas. Em Leiria, temos uma cidade que não está só virada para a música, nem está só virada para o teatro, nem está só virada para a escultura, temos gente muito forte em várias áreas e um dos papéis que queremos ter aqui é pôr essas áreas todas a dialogar entre elas.
Enquanto pianista e compositor, o que é que o cruzamento da música com o cinema, nos filmes do João Botelho ou mais recentemente no projecto Vignette, lhe tem proporcionado?
É cada vez mais uma fonte de alimento. A relação com o João Botelho é daquelas coisas que não se aprendem na escola. Nós, músicos, vindos sobretudo da área da música clássica, somos tendencialmente conservadores quando comparados com artistas de outras áreas. Porque, e eu comecei a tocar piano aos cinco anos, tocamos música com 100, 200, 300 anos. E esse cânone tem um peso muito grande na forma de ver o mundo. Lidar com pessoas como o João Botelho, que é completamente livre e desprendido de ideologias ou preconceitos, também nos muda enquanto artistas e liberta-nos. O Vignette foi um exercício diferente. É um projecto que nasce de vários filmes do cinema português, um exercício de estar em casa, ver uma bomba atómica de filme e a seguir ir tocar piano. O Vignette nasceu desse estado de alma: levei um murro no estômago com este filme, deixa ver o que isto produz em termos de música.
A vida que tem como profissional de artes é a vida que imaginava quando começou a estudar piano?
Nunca tive expectativas. Nem nunca sequer se colocou a hipótese de ser outra coisa qualquer. Felizmente, já tive momentos na minha carreira, a primeira vez que vi o meu nome no grande ecrã, quando os Drumming estrearam o meu quarteto de marimbas ou quando toquei na Gulbenkian com a Liturgia dos Pássaros, em que tive a noção naquela noite que aquilo foi um marco, percebi que tinha sido mesmo especial. Embora hoje se tenha de fazer muita coisa em termos de produção e divulgação, há uma parte de mim que ainda acredita que se nos preocuparmos com a nossa arte, coisas boas vão acontecer.
A música dá trabalho, como se diz no título do projecto da Omnichord?
A música dá muito trabalho. A Espia foi a coisa mais difícil que alguma vez fiz na vida. No audiovisual, estamos ao serviço de uma história, de uma narrativa. Foram quatro meses a trabalhar 10 a 12 horas por dia, fisicamente e mentalmente desgastante. Agora, quando as coisas corriam bem, o retorno emocional também é indescritível. Estar em casa com a família a ver a estreia e no dia seguinte a produtora dizer que estiveram 800 mil pessoas a ver. Ou seja, dá muito trabalho, mas também dá um retorno emocional, mental, de realização e um sentido na vida que não imagino obter de outra forma.