Revi-a há uns dias numa rua anónima de Lisboa. As feições pareceram-me familiares, ainda que transformadas mais pelo cansaço do que pela passagem do tempo. Aproximou-se timidamente de mim e o timbre da sua voz completou o que faltava para compor a memória de uma circunstância vivida há mais de trinta anos.
Fora minha aluna numa escola da periferia de Lisboa onde eu dera aulas numa outra vida. Um trabalho inesquecível que me alargou a mundivisão a lugares inesperados.
A breve troca de palavras inicial transportou-me da rua anónima onde nos reencontrámos para a secretária à qual me encostava quando, depois das horas lectivas, lhe ouvia a ela e àquele grupo de adolescentes, confissões íntimas sobre os temores, as paixões, as quedas e as inquietações com a incógnita de um futuro medido pela métrica da necessidade e da economia dos sonhos.
Sintetizámos os trinta anos que passaram numa conversa de meia-hora. As escolhas, a geografia, os empregos, as decepções, as perdas e os amores possíveis. Uma conversa adulta já distante daqueles anos de aprendizagem adolescente.
A certa altura confessou-me que falou comigo muitas vezes, sem eu saber, durante a última década. Atendia regularmente os telefonemas matinais que fazia para o hospital onde o meu pai estivera internado em circunstâncias dramáticas.
Uma linha de som que me unia às palavras dos que me podiam relatar a sua condição débil capturada pela demência e não só. Horas de desespero vividas à mercê da disponibilidade apressada de equipas de enfermagem sem tempo ou mãos a medir.
Essa voz da minha outrora-aluna, que na altura trabalhava no call center do hospital, foi, durante aqueles anos, sem que eu tivesse percebido, o prenúncio de um consolo possível. Soube, naquele reencontro, que a matizava de uma cumplicidade calada.
«Sabe… eu tinha a certeza de que era a professora a ligar para o hospital durante aqueles dias de aflição. Queria muito ter-lhe dito isso, mas o gravador que nos vigia o trabalho não permite conversas demoradas sobre assuntos extra tarefas. Mas reconhecia-lhe a voz todas as manhãs. Espero que de algum modo tenha pressentido que tentei sempre que atendessem as suas chamadas no serviço onde o seu pai estava internado.»
Ela ainda trabalha no call center do hospital, o meu pai já não está vivo, e, trinta anos depois das aulas que dei àquelas turmas de uma escola profissional de Lisboa onde tanto discutimos a velhinha teoria da comunicação de Marshall McLuhan, o meio, afinal, não foi a mensagem.