Quando, em 2010, Luísa Pimentel se estreou com o livro de poesia De mim… ou talvez não, disse-lhe que ela tinha aberto uma ‘brecha no horizonte’. Não me enganei: professora na ESECS-IPL, profissional e academicamente não tem parado de aprofundar as suas investigações sobre gerontologia (já com vários livros publicados); atenta leitora de poesia, continua a partilhar com os outros – ainda que com pudor – alguns dos momentos poéticos que a vida a vai ‘forçando’ a escrever.
Na verdade, passados catorze anos, é esta ligação embrionária entre biografia/literatura, que as palavras da autora inscritas na contracapa deste último livro, Vestida de Vento – “[…] A tristeza e a mágoa são dominantes num livro cru, em que me apresento nua e sem vontade de me vestir. Escrevo emoção e solidão. Escrevo para me deixar viver.” – transportam para a leitura dos poemas como a principal chave de sentido. Se a inquietação e o sofrimento eram fundacionais em grande parte dos poemas de 2010, agora são os ‘destroços soprados’, com que a epígrafe da p. 7 obriga ou orienta o leitor a procurar na interpretação dos 48 poemas, corporizados juntamente com as irrepreensíveis e belas fotografias a sépia de vários lugares do mundo, da autoria da filha Ana Rita P. Mendes:
Se a espera nos prende / Nos afasta da estrada / Resta muito pouco / Resta quase nada
É sobre o impacto deste sopro, que empurra para trilhos inesperados, que os restos se transformam em destroços. Maioritariamente, o estilhaçar do sujeito poético e de grande parte dos sentimentos e emoções fundacionais, que tinha como certos e se revelam desfeitos, como nos poemas “Em Pedaços” (p. 8), “Sonho” (p. 14), “Aconteceu (1)” (p. 16), “Ponto por ponto” (p. 20), “Faltas em ti” (p. 23), “O último comboio” (p. 24), “Pássaro triste” (p. 26), “Que amor é esse” (p. 27), “Verdade” (p. 30), “Sou (1)” (p. 31), “Sou (2)” (p. 32), “Só solidão” (p.34), “Em cena” (p. 35), “Esperando…” (p. 37), “Suspensa” (p. 38), “Que é de mim” (p. 40), “Fundo” (p. 45), “Os Brutos” (p. 46), “Hoje morro” (p. 50), “Desperto” (p. 52), “Luto de um amor vivo” (p. 53); “Sufoco” (p. 54), “De mão estendida” (p. 57), “Torpor” (p. 58), “Apodrecemos” (p. 70), “Partir” (p. 71), “Aqui chegada” (p. 78). A última estrofe deste penúltimo poema do volume resume na perfeição a incerteza e inquietação provocada pela ‘ventania existencial’, que expõe o sujeito à derisão incómoda das contradições:
O que restou de mim / aqui chegada? / Não sei se tudo / se quase nada
Porém, mesmo quando tudo parece falhar e estar destruído, ou a entrar em cru processo de desagregação, ainda sobram lugares ou comunhão com os outros que permitem entrever uma ténue esperança de retorno ou continuidade ao antes do ‘sopro da mudança’. Vejam-se os poemas: “O melhor lugar do mundo” (p. 9), “Deste lado do mundo” (p. 11), “No meu abraço” (p. 13), “Aconteceu (2)” (p. 17), “O meu corpo” (p. 19), “Canto sufocado” (p. 22), “Ausência” (p. 28), “O vento não soprou” (p. 41), “Estórias no papel” (p. 47), “Quem ama” (p. 49), “Amarelo” (p. 59), “Poema inacabado” (p. 62), “Partem” (p. 63), “Em mim permaneces” (p. 64), “A tua luz” (p. 66), “Um mundo” (p. 67), “Sim” (p. 68), “Procura a saída” (p. 72), “Negrume” (p. 76), “Tempo pra’ amar” (p. 77), “Caminhos longos” (p. 79), em que a presença da amizade, dos filhos, do amor-próprio são o fulgor de uma luz pelas certezas firmes depois do vendaval. O último poema sugere a abolição do tempo e o encontro através da generosidade do sujeito poético:
Nem sempre / os caminhos longos nos levam para longe do passado / e mesmo as avenidas mais largas se atravessam / para abraçar o amigo / que passeia do outro lado / Quando me vires passear / atravessa / Vou gostar de te abraçar!
Mas, nada garante ao leitor que a generosidade do ‘tu’, referido no poema, seja da mesma ordem que a do sujeito poético… Aliás, uma das interpretações possível é que seja ele a origem do ‘sopro’ que veste/desnuda o poeta… Se biografia e escrita poética permanecerem entrelaçadas para Luísa Pimentel, talvez seja essa a temática do próximo conjunto de poemas.