Para o António
«[…] aquilo a que costumamos chamar amigos e amizades não passa de convivências e intimidades propiciadas por uma qualquer ocasião ou conveniência por meio da qual os nossos espíritos se entretêm. Na amizade de que vos falo, eles fundem-se e confundem-se numa mescla tão universal que os apaga e na qual não se identifica a costura que os juntou. Se me obrigarem a dizer por que o amei, sinto que apenas posso exprimi-lo respondendo: porque era ele, porque era eu.»
Michel de Montaigne
Há acontecimentos que redefinem a ordem tácita do calendário. Os meses passam a reger-se mais pelas histórias que os dias encerram e menos pelo real sistema de organização do tempo. Marcam um antes e um depois, e o fim de um tempo em que se era um e se passa a ser outro.
Demorei três anos a escrever sobre a morte do meu melhor amigo. Um amigo que me aconteceu no meio da vida quando já pensava dominar todos os contornos da definição de amizade. Conheci-o cheio de sonhos e esperança em dias mais luminosos. Cultivava os detalhes na vida que o rodeava. A casa, a família, os amigos, os livros, as viagens já feitas e por fazer, os objectos e uma liturgia de hábitos marcada por memórias de pessoas e de lugares.
Cruzámo-nos por causa dos livros e dos textos que tanto amávamos, e de uma certa de ideia de beleza que perseguíamos quase em linhas paralelas. Desprevenidamente, passamos a ocupar serões intermináveis a contar histórias e a narrar dois passados singulares como se quiséssemos fintar o tempo e a geografia que nos impediram que nos conhecêssemos mais cedo.
Trocámos os livros que a cada os filmes que por descuido ou pressa tínhamos deixado escapar das salas de cinema. Mostrámo-nos lugares e canções. Partilhámos memórias antes inconfessadas – eu de uma infância turbulenta, ele de uma cintilante. Empurrámo-nos para a realização de projectos que sozinhos não conseguiríamos ter iniciado. Criar um blogue, esboçar uma viagem ao Japão, abrir um pequeno negócio.
Fez-me sentir em família. Guardou com cuidado todos os textos que eu quis rasgar por insegurança, e leu-me timidamente, à mesa de um café anónimo, os poemas depurados que escrevia quase em segredo.
Adoecemos em momentos diferentes. Partilhámos medos na sala de espera do hospital e demo-nos a conhecer o significado da palavra aconchego. Nunca falhámos uma data de aniversário. A cada telefonema uma festa.
Demo-nos atenção e tempo. Nos últimos anos conversávamos muito acerca do medo do futuro e do pressentimento de uma solidão surda que parecia contaminar hipóteses de relações.
Nunca deixámos, contudo, de rir. Poucos minutos antes de ele entrar na sala de operações, falámos de livros e da alegria de saber que a irmã tinha um sonho prestes a concretizar-se. Passaram três anos. Entre a minha mensagem de WhatsApp de 12 de Outubro cujo estado teima em não passar a azul, aconteceu-me a morte violenta e abrupta de um amigo. E, no calendário, a marca indelével de um irreparável mês de Outubro.