A medicina, a escrita e o voluntariado preenchem grande parte do tempo de Helena Vasconcelos, que nasceu no Porto mas vive na Marinha Grande há mais de 30 anos. É directora do serviço de Gastrenterologia do hospital de Leiria e escreve regularmente crónicas no semanário Região de Leiria, parte das quais já publicou em livro. Além da licenciatura em Medicina, concluiu também uma licenciatura em Comunicação Social. Na Atlas, organização não governamental para o desenvolvimento em que é presidente da direcção, os projectos de intervenção na área social beneficiam, sobretudo, idosos e famílias carenciadas, em vários concelhos portugueses e também no estrangeiro.
Quantas pessoas beneficiaram da actividade da Atlas neste ano de 2024?
Cem pessoas (idosos) e 26 famílias carenciadas. Nós somos uma ONGD [organização não governamental para o desenvolvimento] e temos um projecto, que é o Velhos Amigos, que é o projecto mãe, em que a população beneficiária são idosos carenciados em isolamento. Estamos em Coimbra, Leiria, Pombal, Marinha Grande, Batalha e Alcobaça. Temos um projecto de solidariedade nas escolas, que é unicamente na Marinha Grande, onde nos agrupamentos escolares as famílias nos são referenciadas. Não conhecemos as famílias, que apoiamos mensalmente com cabazes personalizados de bens alimentares e produtos de higiene e de escola. Nesse projecto, que se chama Escolas Solidárias, fazemos também, por exemplo, entrega de óculos e consultas e outro tipo de coisas que nos são solicitadas. Fica-nos muito dispendioso e dá-nos pouca visibilidade, mas acho que é um projecto muito bonito, em que respeitamos a dignidade das famílias que necessitam e que não querem expor-se.
Já no Velhos Amigos, há uma relação mais próxima.
O Velhos Amigos nasceu em Coimbra, quando nasceu a associação. A maior parte desses idosos eram apoiados por IPSS’s [instituições particulares de solidariedade social] durante a semana e ao fim-de-semana ficavam sem comida e sem apoio, porque era suposto os filhos ou as famílias irem fazer esse trabalho. Como muitos não têm família, ficavam sem ninguém. Não comiam, não tinham quem entrasse na porta.
Com o envelhecimento da população, também estão a aumentar os casos de quem vive sozinho e socialmente isolado?
Socialmente isolados, muitíssimo. Do ponto de vista económico, o número tem-se mantido mais ou menos estável. O que é que nós fazemos? Vamos a restaurantes solidários, ao fim-de-semana, com voluntários. As técnicas só articulam, quem faz todo o trabalho são os voluntários. Muitos restaurantes cozinham até de propósito para os nossos idosos, nunca são as sobras. É comida fresca e fazem as quatro refeições para o fim-de-semana. E os voluntários recolhem e dois a dois vão a casa de dois idosos e são sempre os mesmos idosos para os mesmos voluntários. Os voluntários conhecem as duas pessoas que apoiam e fazem isso uma vez por mês, o que significa que cada equipa tem oito voluntários. Vamos lá no dia dos anos, se for preciso levar alguém ao médico, nós fazemos. Essas pessoas entram na nossa família e são nossos. Não é uma mera distribuição de alimentos.
Porque é que estão a aumentar muitíssimo os casos de isolamento?
Porque as famílias já não têm as mesmas características. Estamos mais distantes uns dos outros. Quanto mais evoluídos estamos, do ponto de vista social e até económico, mais sós estamos. Nas cidades estamos muito mais sós do que nas aldeias. O figurino das famílias alterou-se imenso. A forma tradicional, que não era, se calhar, um modelo, enfim, perfeito, provavelmente em termos de interajuda na velhice funcionava melhor. A carência económica é causa e resulta às vezes de um outro tipo de fatalidade social que tende a perpetuar este isolamento e esta distância entre as pessoas.
Sentem que, em todas as áreas em que a Atlas actua, podiam fazer ainda mais, com outros meios?
Sim. Como somos ONGD, vivemos de projectos e de mecenato, digamos, de donativos. Não temos um income fixo e portanto gastamos muita energia a tentar responder a este tipo de coisas. Por outro lado, o facto de não termos muita largueza mantém-nos genuínos e agregados. Vivemos com muitas restrições e com muito cálculo mental.
Há falhas que ficam sem solução no imediato?
Somos um péssimo país em termos de resolução social prática. Não somos rápidos a resolver, as coisas arrastam-se. E temos poucos meios de chegar com eficiência às pessoas. Às vezes, quando chegamos, já as coisas se degradaram. Não planeamos. Somos um país de pouco planeamento de antecipação dos problemas. Temos um projecto, que se chama Mexe-te, que é um projecto de educação para o desevolvimento, em que tentamos mudar as mentalidades dos mais jovens para que eles possam ser agentes de transformação da sociedade, porque esse trabalho ainda tem de ser feito, de combate ao idadismo, do preconceito em relação à idade, da postura social, da inclusão saudável das pessoas mais velhas, não doentia, não infantilizada.
Estamos a melhorar, como comunidade, na protecção e na valorização dos mais velhos?
Estamos mais atentos, estamos mais sensíveis, é um começo. Temos de fazer um longo percurso em termos de dignidade das pessoas mais velhas. Temos imensos preconceitos. Achamos que por serem idosos são infantilizados, são não válidos. A violência, por exemplo, doméstica em relação aos idosos é muito frequente. Dos vizinhos, dos familiares. Muitas vezes não é física, mas do ponto de vista psicológico é terrível. Na verdade, defendemos muito mais as nossas crianças do que defendemos os nossos idosos. As pessoas perdem com a idade a dignidade, que é uma coisa que não pode acontecer.
Um modelo de respostas sociais, que além dos serviços e dos apoios do Estado, depende das organizações não governamentais e das instituições particulares de solidariedade social, que é o modelo que temos, é um bom modelo? É o melhor?
Teoricamente, sim. Há uma diversidade de intervenção. Sou muito a favor da rede de intervenção e as autarquias estão a fazer esse esforço, de fazerem este aglomerado de associações e de não nos sentirmos a competir, mas sim a trabalharmos em rede. Devemos complementar-nos e acho que o modelo está bem pensado. Muitas vezes não funciona porque há má articulação, porque não há liderança, nas autarquias. Poderíamos ser mais chamados, cada um dos intervenientes sociais, a dar respostas. Muitas vezes não conseguem estabelecer as pontes necessárias entre as várias associações e pôr-nos a trabalhar mais em rede.
O Estado não consegue chegar a todo o lado?
Não consegue chegar a todo o lado e não consegue chegar com qualidade, é a minha opinião. Neste tipo de franja social, nos mais vulneráveis, mais do que oferecer serviços, é preciso dar alguma paixão. E é por isso que não abdicamos dos voluntários, porque os voluntários, tecnicamente, não serão tão perfeitos, mas em termos de doação pessoal superam os técnicos. É isso que as pessoas precisam, se calhar até mais do que a própria refeição. Temos muitos idosos que não são carenciados economicamente. São pessoas que vêm às nossas oficinas de trabalhos e que não precisam de apoio económico. Precisam de companhia e precisam sobretudo de se sentirem valorizados como pessoas.
A associação existe desde 2008. O que mudou nos vários territórios em que estão nestes 16 anos?
Cada vez temos mais idosos isolados. Do ponto de vista económico, temos vindo a melhorar um pouquinho. Do ponto de vista social, estamos pior. Estamos mais isolados.
Mais pobres? O risco de pobreza é maior? Ou os sinais são positivos?
Famílias carenciadas, sentimos cada vez mais que têm aumentado. Nos escalões mais baixos, cada vez nos pedem mais coisas. Em relação aos idosos, apesar de tudo, a Segurança Social de agora está mais atenta do que a Segurança Social de 2008. As coisas funcionam um bocadinho melhor.
A população imigrante, pelo menos parte dela, é especialmente vulnerável?
Na Marinha Grande, que é uma zona de muita imigração, não conheço bem o perfil das famílias, mas penso que não serão os imigrantes, ainda. Eles não se queixam. Na Marinha Grande, temos alguns voluntários imigrantes. Foi uma tentativa de inclusão social. E dão apoio aos nossos idosos. Para nós, é muito importante que os nossos idosos não os discriminem.
Também é assim que se confronta a xenofobia.
A proximidade cria pontes e tolerância. É uma coisa que queremos fomentar e é importante também para os outros voluntários, sentirem que eles estão incluídos e que fazem parte. Foram muito bem aceites pelos idosos.
Estamos a precisar, mais do que nunca, desse tipo de pontes?
Estamos. Tem a ver com chamar as pessoas para o nosso lado. Dignificar quer aqueles a quem prestamos apoio quer aqueles que estão ao nosso lado e perceber que são pessoas culturalmente, às vezes, muito distantes de nós, mas que na essência, no que é importante, somos muito, muito, muito iguais, todos. Quase sempre, o que nos faz feliz a nós é o que faz feliz o outro. Poucas diferenças existem.
Quantos voluntários agem através da Atlas?
Temos 378 voluntários, nos seis concelhos. Temos 68 restaurantes solidários.
É fácil atrair novos voluntários?
É fácil atrair, é difícil fidelizar. As pessoas entusiasmam-se e depois é como tudo na vida. Vamos ganhando alguma experiência de como fidelizar voluntários. Também se treina e também se profissionaliza isso. Com um programa do voluntário, criando redes de acolhimento, com um seguimento do voluntário, com acompanhamento do voluntário, com uma avaliação do voluntário. Tem de se descobrir o que é que o voluntário faz melhor, em que é feliz, e também a recompensa do voluntário. Tem de se sentir útil, tem de se sentir importante, porque é.
O que seria uma boa prenda de Natal para a Atlas?
Nós irmos ganhando os projectos a que vamos concorrendo. Gostava de ver crescer o número de beneficiários, gostava de diversificar as ajudas que estamos a prestar, gostava de incrementar o que já está a ser feito com o IPL [Politécnico de Leiria] e com as escolas, em que temos idosos e jovens a trabalhar em oficinas de co-criação. Tem sido muito boa para todos essa mistura de idades.