A Amsterdam Cannabis Store, em Leiria, aceita pagamentos em criptomoedas, e alguns clientes já estão a optar por esta forma de pagamento, em vez de utilizarem dinheiro físico ou cartão multibanco. A loja pertence a João Matos Cruz, 40 anos, um dos maiores especialistas do país em moeda digital, que assegura que, em Portugal, estas transacções comerciais ocorrem apenas num nicho de mercado. Na Madeira, esta prática está mais generalizada.
“Inicialmente, o objetivo era criar um instrumento de pagamento digital que não ficasse dependente de um banco ou de instituição financeira tradicional”, explica João Matos Cruz, empresário licenciado em Gestão e mestre em Economia. “A bitcoin foi a resposta a esse problema, ao possibilitar fazer transacções sem a intermediação de terceiros”, acrescenta. Desde então, surgiram “milhares de blockchain [registo digital de transacções], de operadores e de tokens [dispositivo electrónico que gera códigos]”.
À excepção da Madeira, onde os pagamentos com criptomoedas estão “bastante difundidos”, no resto do País os avanços têm sido mais lentos, mas João Matos Cruz, que é ainda vice-presidente da Associação Nacional de Instituição de Pagamento e Moeda Electrónica (ANIPE), acredita que é um mercado em expansão. O processo de pagamento é simples. O terminal do computador faz a conversão de 20 euros, por exemplo, para bitcoins, depois aparece um código QR, vai-se à carteira virtual de bitcoins, e o valor é descontado do saldo.
Para possibilitar esta operação, o empresário explica que, antes, faz-se um processo de crédito em euros, por transferência bancária ou através do cartão de crédito, que depois é convertido em moeda digital. “Ou se deixa os bitcoins naquela conta, como se fosse a do banco, sujeita aos mesmos perigos, ou se transfere para uma carteira própria, mantendo o formato digital”, acrescenta.
Combater a desvalorização
“Há pessoas cada vez mais conscientes da forma como o dinheiro é criado e gerado, e vêem as criptomoedas como uma maneira de combater a depreciação constante do dinheiro ditada pelos bancos nos Estados Unidos e na Europa”, justifica João Matos Cruz. “E percebem como isso as está a empobrecer.” Em contrapartida, diz que a moeda digital garante “estabilidade e preservação do valor, pois a emissão de 21 milhões de bitcoins é finita, conhecida, e pré-programada, sem intervenção de um governo ou de uma entidade bancária”.
O vice-presidente da ANIPE garante que “as pessoas olham para a bitcoin como um instrumento de segurança”. Aliás, recorda que esse foi um dos pressupostos quando foi criado no fim de 2008. “Não se pode alterar o ciclo pré-definido da blockchain, pois é imutável. É um mundo previsível, e que vive muito da confiança”, assegura. “Não confio no Banco Central para gerir o controlo da emissão monetária, mas confio num código imutável e transparente, que me permite ver todas transações nos blocos, mantendo o anonimato.”
“Começa a haver essa percepção de que esta revolução digital confere poder às pessoas, que querem ter uma voz activa no valor e na salvaguarda dos seus recursos financeiros, em vez de estarem sujeitas a decisões ad doc”, justifica João Matos Cruz. “A bitcoin vem questionar porque somos obrigados a viver num regime de monopólio do dinheiro”, afirma. “Até ao século XIX, havia bancos comerciais que faziam emissão do dinheiro, e podia-se escolher a moeda que se queria utilizar.”
O especialista aponta ainda como vantagens o facto de o espaço digital permitir um conjunto de operações que podem ser mais fraccionadas e mais baratas, garantindo a estabilidade do valor. Além disso, refere que o pagamento em criptomoedas é mais vantajoso para os comerciantes, pois evitam os custos com as transações com multibanco, que os leva, muitas vezes, a recusar essa forma de pagamento de valores até cinco euros, por terem intermediários por trás que ficam com uma parte desse montante.
“No mundo da Web3, com stablecoin [moeda digital que mantém os preços estáveis] posso cobrar cêntimos, porque o custo de transacção e processamento é quase zero”, revela. Embora esclareça que a bitcoin vale 60% do mercado de criptomoedas, e esteja no top 7 de activos mais valiosos do mundo, diz que a USDT e a USDC (stablecoins) são as mais populares no mercado. “Transfere-se um dólar e emite-se um token, que representa essa unidade na webchain. É um dólar a correr no espaço da Web3.”
Trump gera euforia
João Matos Cruz recomenda ainda a utilização de criptomoeda em países em que a movimentação de fundos com o exterior é mais difícil, ou cujas moedas desvalorizem bastante, como é o caso da Venezuela. “Em El Salvador é obrigatório aceitar bitcoins como instrumento de pagamento”, assegura. Desde que Donald Trump foi eleito presidente dos Estados Unidos, a 5 de Novembro, a bitcoin atingiu uma valorização de 35%, fixando um recorde histórico de 98 mil dólares (93 mil euros), a 21 de Novembro, de acordo com dados da agência Bloomberg. O candidato republicano prometeu tornar o país na “capital mundial da bitcoin e das criptomoedas”.
“A bitcoin está a caminho de uma avaliação fenomenal de 100 mil dólares [95 mil euros], impulsionado pela crescente confiança de que a administração Trump inaugurará uma era favorável à criptografia, e os especuladores estão a unir-se por trás desta narrativa, alimentando o frenesim do mercado”, explica Stephen Innes, analista da consultoria SPI Asset Management, citado pelo Jornal de Notícias. A criação de uma reserva estratégica, composta sobretudo por bitcoins apreendidas pela justiça, é uma das medidas aguardadas, e que poderá levar outros países a reconhecer mais legitimidade a esta moeda digital.
“Nos últimos três anos, a criptomoeda teve uma queda. Agora, estamos a entrar na fase da efervescência, do ruído, do ganho fácil”, alerta o especialista. “Todos os cuidados são necessários, porque há uma grande volatilidade e especulação. Tem de haver parcimónia quando se entra neste mundo”, sublinha. “Existem grandes riscos associados a projectos que aparecem sem robustez, e aproveitam estes momentos de euforia para vender a banha da cobra.”
E se Trump prometeu aliviar a regulamentação sobre moeda digital quando tomar posse, na Europa caminha-se no sentido oposto. “A actividade está regulamentada e em vigor desde Julho e, a partir de Janeiro de 2025, vai haver um novo enquadramento regulamentar (MiCA), que estabelece regras uniformes para os prestadores e emitentes de criptoactivos.”
Portugal como referência
O gestor esclarece, contudo, que em Portugal os operadores de activos digitais têm de se registar no Banco do Portugal, fazer relatórios, e prestar contas. “Somos equiparados a uma entidade financeira tradicional”, observa. Apesar de ainda haver um número reduzido de pessoas a usar criptomoeda no país, o especialista assegura que “Portugal é uma referência do universo cripto. Beneficia de muita visibilidade e credibilidade no contexto internacional.”
“Há empresas com operações muito grandes em Portugal”, revela João Matos Cruz. “Muitos dos fundadores destes projectos começaram a vir para cá, pelos benefícios fiscais, e Portugal acabou por se transformar quase num ponto de encontro de uma indústria global”, explica. “É um porto seguro. Temos recursos altamente qualificados, e empresas internacionais que lhes dão emprego”, adianta.
Independentemente de a moeda digital estar a valorizar ou mais na moda, o gestor considera fundamental perceber a importância desta indústria, pelo que é um dos quatro coordenadores do curso de pós-graduação “Web3, blockchain e criptoactivos”, cuja primeira edição teve início em Outubro, na Coimbra Business School. “Os temas são leccionados por profissionais que operam no espaço da criptoeconomia: advogados, administradores do Banco de Portugal, pessoas ligadas à web3, fundos de investimento e consultores.”
Ao desafio para ficarem a saber mais sobre web3, blockchain e criptoativos, que vieram “transformar a economia, os mercados, a fiscalidade e a contabilidade, criando novas oportunidades de negócio e optimizando a eficiência e a transparência nas operações”, responderam 20 pessoas, entre os 30 e os 40 anos, com experiência profissional e um perfil técnico: auditores, contabilistas, especialistas financeiros, compliances, programadores e uma arquitecta que quer “mudar de vida”.
Investimento volátil
Lígia Febra, docente de Finanças na Escola Superior de Tecnologia e Gestão (ESTG) do Politécnico de Leiria, manifesta reservas em relação ao investimento apenas em criptomoedas, por terem uma “volatilidade muito grande”. Na unidade curricular de Teoria de Gestão de Carteiras de Investimentos, que lecciona, é frequente os estudantes manifestarem a intenção de comprar moeda digital, ignorando os riscos, ao contrário do que sucede com as pessoas mais velhas.
“Se compararmos com outro tipo de títulos, como as acções, a bitcoin oscila muito. Por isso, é que atrai as pessoas menos avessas ao risco, como os jovens que não têm conhecimento de finanças”, justifica a docente da ESTG. “Podem investir em bitcoin, mas não de uma forma isolada, para minimizarem o risco de perder tudo. Se investirem em activos que não estão correlacionados, podem perder num, e ganhar noutro.”
“Como é que avaliamos se há risco em fazer investimentos deste género? Pela procura e pela oferta”, afirma Lígia Febra. “Mas é algo não palpável. Não conseguimos fazer uma avaliação fundamental deste activo. É mais por especulação”, esclarece. A este propósito, refere o impacto que a campanha eleitoral pró-criptomoeda de Donald Trump teve na valorização da bitcoin, “sempre a bater recordes”, após a sua eleição como presidente dos Estados Unidos.
A docente de Finanças defende que um dos riscos deste investimento tem que ver com a falta de regulamentação. “A segurança é bastante menor para o investidor. Os investidores não informados seguem o informados. A avaliação não é feita em fundamentais, mas em expectativas”, assegura. “Havendo a perspectiva de mais abertura para este tipo de investimento ou transacções, há uma expectativa positiva. Agora, não sei se haverá um volt face.”
“Podemos aproveitar a possibilidade para diversificar a nossa carteira de investimento, mas com algum cuidado”, alerta Lígia Febra. “É importante conhecer muito bem o mercado, as plataformas centralizadas e as corretoras intermediárias”, aconselha. “Se não tivermos conhecimento, a probabilidade de cairmos numa fraude é maior.”
Consciente de que “o futuro vai ser muito mais digital do que físico”, tendo em conta a evolução das novas tecnologias, e do sistema de pagamentos, a docente aconselha prudência, tendo em conta que “os valores das criptomoedas mudam sistematicamente”. As recomendações dirigem-se, sobretudo, aos jovens do sexo masculino, que são os principais investidores em criptomoeda.
Euro digital
João Matos Cruz integra ainda um grupo constituído pelo Banco de Portugal, que está a acompanhar o processo de criação do euro digital. “É o equivalente ao dinheiro em numerário, mas em formato digital”, explica. “Mas tenho sérias dúvidas que veja a luz do dia tão cedo, pois está dependente do Banco Central Europeu (BCE), da Comissão Europeia e do Parlamento Europeu”, confessa. “Há muitas reservas de vários países, porque o numerário permite o anonimato, e o dinheiro electrónico não”, revela. “Será que as pessoas vão abdicar do direito à privacidade, consagrado na Constituição?”
Favorável à existência de mais autonomia estratégica europeia ao nível dos pagamentos, a Associação Portuguesa de Bancos (APB), que representa o sector bancário, reconhece a necessidade de existirem novas formas de moeda e de pagamentos digitais, para suportar a digitalização da economia. “Contudo, quando falamos de Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDC) de retalho estamos perante um processo mais complexo, que interfere com os meios de pagamento electrónicos privados, e que exige um exercício aprofundado para equilibrar os diferentes impactos na economia, em geral, e na intermediação financeira, em particular”, refere no artigo “Os efeitos do euro digital na estabilidade financeira e no bem-estar dos consumidores”.
Com base num estudo da Copenhagen Economics, promovido pela Federação Bancária Europeia (FBA), há três áreas que poderão sofrer impactos negativos do euro digital. Uma delas é o risco de deslocação dos depósitos bancários, que poderá conduzir ao aumento dos custos de financiamento, à redução do crédito à economia, e a uma potencial incapacidade de substituir os depósitos perdidos no mercado, sobretudo em períodos de maior stresse.
O estudo da Copenhagen Economics concluiu ainda que o investimento e os custos recorrentes da adopção de um projeto tão complexo e de grande escala podem reduzir a capacidade de inovação e, por conseguinte, a competitividade dos bancos. Teme-se também que a sobreposição com os meios de pagamento existentes e a possível alteração do modelo da banca de retalho, com a consequente erosão dos fluxos de receitas conexos, possa afetar a rentabilidade dos bancos.
“Uma vez que o projecto do euro digital entrou agora na fase de preparação, a Federação Bancária Europeia [de que a APB é membro] considera fundamental prosseguir um diálogo construtivo entre os co-legisladores, o Banco Central Europeu e os bancos, para encontrarem em conjunto o equilíbrio que garanta o sucesso do euro digital, juntamente com a introdução de medidas de mitigação robustas para todos os riscos.”