Afirmou, na última peregrinação mensal de 2016 à Cova da Iria, que “Maria ‘é o melhor modelo’ para o Advento”. Num mundo cada vez mais marcado pelo pragmatismo e menos pela espiritualidade, de que modo podemos fazer uma interpretação das suas palavras?
A preparação do Natal exige uma preparação prática e todos temos consciência disso, mas mais importante é todo o caminho interior que somos desafiados a fazer. Nesse aspecto, Maria é, verdadeiramente, o modelo para a vivência do Advento porque, nela, contemplamos um conjunto de atitudes que nos ajudam a perceber o que é mais importante na preparação da quadra numa perspectiva cristã. É na mãe de Cristo, que encontramos a receptividade que é fundamental para nos preparamos para celebrar o Natal. É nela que encontramos a atitude de disponibilidade para acolhermos o deus que vem, porque é ele o centro desta celebração cristã. É neste sentido que Maria é, não apenas modelo, mas um desafio para irmos além desse pragmatismo que marca o dia-a-dia e que, tantas vezes, o empobrece.
O que significará a presença do Papa Francisco nos dias 12 e 13 de Maio, em ano de centenário das “aparições”, para o Santuário de Fátima?
Os dias 12 e 13 de Maio já seriam momentos particularmente festivos e relevantes na celebração do centenário das aparições, mas a vinda do Papa vem coroar a parte mais festiva do aniversário. É o centro da celebração. A vinda de Francisco é motivo de particular relevo e alegria da nossa parte, porque vem destacar esse centro da celebração litúrgica do centenário. É um momento relevante porque a vinda do Papa confirma a atenção especial que a igreja universal tem dedicado a Fátima, na qual reconhece que a mensagem de Fátima é um dom para a igreja universal.
Fátima vai estar nos principais meios de comunicação mundiais nesses dias.
A figura do Papa tem essa particularidade em termos de impacto internacional de Fátima. Vai ser um ano em que o santuário vai estar em relevo. Não podemos esquecer que a figura do Papa está profundamente ligada à mensagem de Fátima. A oração pelo Papa marca Fátima desde o seu início. Aliás, os pastorinhos tinham essa particular preocupação de rezar por ele. João Paulo II, quando veio em peregrinação quis agradecer expressamente à Jacinta, a mais pequena das videntes, os sacrifícios e a oração que fez pelo santo padre. Tenho de destacar ainda a voz profética que é Francisco, com os seus ensinamentos e palavras, capazes de nos surpreender. A sua vinda é também um desafio para estarmos atentos ao ensinamento e mensagem que quererá deixar num lugar tão significativo para a Igreja e para o mundo.
Uma visita de dois dias implicará uma noite em solo nacional. Como Francisco já confirmou que estará apenas em Fátima, irá dormir na Cova da Iria? Haverá medidas de segurança excepcionais?
O Papa Francisco pernoitará no santuário, o que obviamente, implica medidas de segurança tão excepcionais quanto as que exige a sua presença. De qualquer modo, não me parece que seja algo que cause particular impacto, tanto mais que o Santo Padre tem-se sempre destacado por procurar a proximidade dos fiéis e, certamente, terá a mesma atitude em relação aos peregrinos. Não se pense que o Papa vai ficar numa redoma, afastado dos seus fiéis, porque ele próprio jamais aceitaria essa postura.
Depois da festa, o que ficará para Fátima?
Tenho a expectativa de que muito do dinamismo que o Santuário assumiu para a celebração e se possa manter após a mesma. Procurámos começar a celebração com antecedência, aceitando o desafio lançado pelo Papa Bento XVI, em 2010. Começámos logo, no final desse ano, a celebração com um itinerário temático de sete anos, onde foram realizadas iniciativas e elementos festivos, que têm o seu coroamento em 2017. A minha expectativa é que possamos manter parte deste dinamismo e actividades passado 2017. Tenho também a expectativa de que o centenário atraia mais peregrinos e que o pós centenário não seja marcado pela entrada numa linha descendente da presença dos peregrinos, mas por uma persistência da sua procura por este lugar.
“Se hipotecarmos a nossa liberdade, em nome da segurança, estamos a dar a vitória ao terrorismo”
Denominado Ano Internacional do Entendimento Global, 2016 foi um annus horribilis?
Não terá sido um ano tão positivo ao nível do entendimento que possamos dizer que foi um sucesso. Esse título dado pela ONU serve, acima de tudo, pelo desafio que nos fica. Foi marcado por alguns acontecimentos políticos particularmente relevantes e que, de alguma forma, abalaram o nosso mundo e o nosso entendimento dele. Foi o caso do Brexit, que surpreendeu a Europa, a percepção que temos dela e da coesão dos países que entenderam ser a sua união o caminho para a paz e desenvolvimento. Este ano, sentimos que o projecto europeu começou a ser posto em causa. Também as eleições nos E.U.A., com toda a ameaça que significou a vitória do populismo, não apenas ali, mas por tudo o que significa a adesão que aquela forma de discurso populista vai tendo pelo mundo. Isto manifesta fundamentalmente um grande desconforto dos cidadãos em relação àquilo que eram as classes e o discurso político mais habitual. Não diria que foi um annus horribilis. Penso é que 2016 é um ano que nos deixa particulares preocupações.
De que modo vê a Igreja e um local de paz, como Fátima, o aparecimento de extremismos e de ódio para com o semelhante, e de correntes de pensamento que já julgávamos erradicados da mentalidade ocidental?
A Igreja vê com preocupação estes extremismos e, neles, abordaria duas questões. Por um lado, o crescendo que os partidos políticos da direita radical vai tendo e, por outro lado, a ameaça terrorista que paira sobre a Europa. Não se pode deixar de olhar com muita preocupação para essas manifestações. Em relação ao terrorismo, o Papa Francisco tem sublinhado que é absolutamente blasfemo matar em nome de Deus! É inaceitável esta postura, quando procura ter uma justificação pelo lado da fé, seja ela qual for. Por outro lado, tem de nos chamar a atenção para o perigo de cairmos depois no outro extremismo, o securitário, aquele que se manifesta internamente, e que acaba por olhar com desconfiança todo aquele que vem de fora, todo aquele que é estranho. A Europa viveu este ano este drama. A Europa, que cresceu com a marca do Humanismo e encontrou sempre no acolhimento do outro, a manifestação da sua matriz mais genuína, começa a ver pulular manifestações de xenofobia que pensávamos já afastadas. Ou seja, por um lado, temos o crescendo dos partidos políticos da direita radical. Por outro, temos o crescimento do terrorismo, em especial, o islâmico, e o perigo de não sermos capazes de acolher os refugiados que chegam às suas fronteiras. Um estudo feito à receptividade a quem vem de fora, demonstrou que o nosso País tem uma grande receptividade a acolher refugiados, mas que, por outro lado, manifesta um desconforto muito grande para com os migrantes. O que não deixa de ser contraditório. Fomos sempre um País de migrantes. Sempre saímos e fomos acolhidos. E o drama é este que nos mostra que agora somos nós que não acolhemos, quando somos convidados a acolher. Temos de perceber que o outro não é uma ameaça, mas um desafio aos nossos melhores sentimentos.
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