O trinado dos pássaros na Mata Rainha Dona Leonor começou a ser interrompido às nove da manhã, quando as primeiras pessoas compareceram no campo da bola para montar o estaminé.
O dia prometia ser de luz, apesar de o sol estar escondido entre densas nuvens. Pelo menos não havia previsão de chuva que pudesse pôr em causa a farra.
A festa do futebol, a Taça de Portugal, juntava dois clubes históricos do País. A Académica, a Briosa, o clube dos estudantes, visitava o Caldas Sport Clube, emblema que nos anos 50 do século passado militou no principal escalão do futebol português, em jogo a contar para os oitavos-de-final da competição.
O favoritismo era dos convidados, mas os da casa queriam continuar a surpreender. E se já tinham eliminado o Arouca, do segundo escalão do pontapé na bola, por que não haveriam de afastar uma equipa de semelhante nível?
José da Silva, ex-atleta do Caldas na altura em que o Campo da Mata “era dos melhores pelados do Campeonato Nacional”, foi dos primeiros a assomar. “Cheguei pouco passava das nove, para deixar o petisco e o fogareiro.”
“Foi diferente, muito emocional, bonito de se ver e de viver com os meus colegas. É um dia para não esquecer, em que contámos com o apoio de oito ou nove mil pessoas, que nos deram força”
Na mesa discute-se os jogos gloriosos, as exibições de luxo e os golos lendários de outros tempos, mas também as chances de passar em frente, os talentos de João Rodrigues e de Pedro Emanuel.
“Estou com um grupo de amigos, precisamente aqueles com que joguei neste clube”, explica o sócio, também presidente do Conselho Fiscal. Neste dia não há cargos, “são todos iguais”.
“É uma jornada espectacular, o ambiente é maravilhoso e até ao final acredito que vamos vencer. Mas isso não é o mais importante, importante é o Caldas ter chegado a uma etapa desta grandeza. Se ganhar, tanto melhor.”
As mesas estavam postas. Os churrascos e os fogões a gás já debitavam calor para este dia memorável. Na altura, todos pensavam que seria inolvidável pela moldura humana, pelo convívio, pelo lento renascer de um histórico e a vitória final não era mais do que um sonho difícil. Foi por isso, sim, e por muito mais.
O panorama fazia lembrar… o Estádio Nacional. Por alguma razão o Campo da Mata ganhou o epíteto de Mini Jamor. Os recintos até são contemporâneos, de finais dos anos 20 e princípios dos anos 30 do século passado.
O último e paciente espectador só entrou na arena após a primeira meia hora de peleja, já a equipa da casa se tinha posto em vantagem. O jogo estava entretido e dividido, quando, ao minuto 19, João Rodrigues controlou de peito e rematou para o fundo das redes adversárias.
Enquadrados por frondosas matas, que proporcionam o ambiente perfeito para uns apetitosos piqueniques, no formato têm também algumas semelhanças, apesar de a arena de Oeiras estar, nos dias de hoje, em bastante melhor condição de conservação do que o de Caldas da Rainha.
E se na final da Taça de Portugal, o arroz de frango, as pataniscas de bacalhau, o pudim e o garrafão de tinto fazem parte da ementa obrigatória, por que razão não poderia haver nos oitavos-de-final umas ligeiras alterações ao menu, com as belas das bifanas – com ou sem mostarda – a feijoada, o porco no espeto e as imperiais, servidos por 36 inexcedíveis voluntários, a saciarem os estômagos dos adeptos dos dois clubes?
O ambiente era saudável de partilha. Os clubes partilham as cores e, a priori, também partilharam o fair play. “Briosa! Briosa!” A chegada da Mancha Negra, claque academista, foi brindada com um abraço dos Caldas Sector 1916 e todos os adeptos, que lentamente foram chegando ao Campo da Mata, um antigo hipódromo, conviviam em sã harmonia, de cachecol ao pescoço e cerveja na mão.
As horas iam passando. [LER_MAIS] Muitas pessoas que não queriam perder o jogo por nada perguntavam onde se compravam os bilhetes. A miudagem da formação chegava com os pais, pois seriam eles a acompanhar os craques na entrada em campo e, alguns deles, assumiriam as decisivas funções de apanha-bolas. O presidente vivia numa azáfama, com tanta solicitação e pessoas importantes de visita.
“Um dos objectivos do Caldas era aproximar-se das Caldas”, admitiu Jorge Reis. “No ano passado comemorou o centenário e fizemos questão que fossem 'cem anos, sem dívidas'.
Nestas alturas há sempre quem opte por sair do campo, com medo que o coração não aguente as emoções. A Académica começou por não acertar no alvo e não mais voltou a recuperar.
Atravessou uma fase difícil e falou-se inclusivamente de mudar a denominação, porque tinha muitas dívidas. Em boa hora o anterior presidente, Vítor Marques, pegou no clube e saldou o passivo. Se tivéssemos mudado o nome, não teríamos cem anos e não estaríamos, com certeza, aqui.”
Na multidão estavam muitos ilustres caldenses, que nunca tinham sido vistos a apoiar a equipa de futebol da terra. O jogo, espera o responsável, será a “alavanca” que faltava para levar mais assistência aos jogos e mais fichas de associados preenchidas na secretaria. “O clube mais representativo de um concelho com 50 mil habitantes, não pode ter apenas 1.200 sócios”, salientou.
Jogaço
Os relógios davam as 14:30 horas. Não que o movimento em torno das bancas da cerveja e da bifana tivesse diminuído, mas cada vez mais as pessoas se encaminhavam para as entradas do estádio. No campo, as equipas já aqueciam ao som das músicas da moda. Lentamente, as bancadas iam ganhando movimento.
Muito mais, até, do que os próprios responsáveis esperavam. Os adeptos continuavam a entrar muito para lá do apito inicial e havia até gente pendurada nos muros, parecia que o Campo da Mata tinha andado quatro décadas para trás.
O estádio tem 8.232 lugares sentados. Terão sido oito, nove ou dez mil os presentes, um número que não se via desde o tempo em que um grande fez um jogo-treino naquele recinto, já lá vão quase duas décadas.
O último e paciente espectador só entrou na arena após a primeira meia hora de peleja, já a equipa da casa se tinha posto em vantagem. O jogo estava entretido e dividido, quando, ao minuto 19, João Rodrigues controlou de peito e rematou para o fundo das redes adversárias.
O estádio veio literalmente abaixo. Pelo menos, parte dele. O jogador de Óbidos foi festejar com os adeptos e a envelhecida vedação que segurava o ímpeto da claque não aguentou tanta emoção.
O apoio estava dividido. Os dois mil adeptos da Académica não paravam de incentivar os seus jogadores a dar a volta ao marcador. A proximidade da bancada com o relvado fazia aumentar a pressão sobre os jogadores caldenses, menos habituados a ter milhares de pessoas naqueles degraus habitualmente despidos de calor humano.
As senhoras – que eram bastantes – elogiavam os cabelos de Ryan, enquanto os homens preferiam analisar a qualidade de pés de João Rodrigues, a intensidade de André Simões e Militão, a voz de comando de Rui Almeida e a segurança das mãos de Luís Paulo.
Todos eles rapazes da terra, das redondezas e absolutamente amadores: professores, estudantes, empregados de balcão, assistentes operacionais e, infelizmente, até desempregados.
O que é certo é que à beira do intervalo o treinador da Académica, frustrado com o resultado, foi expulso, mas Farinha, jogador do Caldas, seguiu-lhe os passos logo de seguida, após ver dois amarelos em três minutos.
A jogar com dez, a segunda parte foi um tormento para a equipa de José Vala e poucos vaticinariam um final feliz para esta história.
Foi então que os seis ou sete mil adeptos da casa ganharam uma importância inaudita. A Académica assumiu de vez as rédeas da partida, mas a cada falhanço dos visitantes, mais as pessoas acreditavam, mais se entusiasmavam, mais gritavam e batiam palmas a compasso.
E foi preciso que o Caldas estivesse momentaneamente reduzido a nove unidades, por lesão de Juvenal, para a Briosa chegar ao empate, por Mike, aos 68 minutos.
A partir daí, a equipa dos estudantes pressionou, rematou, cruzou, mas o Caldas, mesmo em inferioridade numérica, manteve-se organizado e aguentou, aguentou, com o guarda-redes Luís Paulo em destaque.
E, sem perder o norte, teve a ousadia de lançar alguns contra-ataques que podiam ter ferido de morte a Académica.
“Caldas! Briosa! Caldas! Briosa!” As bancadas gritavam ao desafio, compassados, a puxar por emblemas diferentes. A diferença de escalões, essa, não se notava. Uns estão na luta pela subida à 1.ª Liga, enquanto os outros tentam afastar os fantasmas de uma eventual despromoção aos distritais, o que seria inédito.
Quando o prolongamento chegou, todos temiam a quebra física da equipa amadora. Não aconteceu. Roíam-se unhas e comprava-se nougat, que estava em promoção.
E pronto, com tantos e tantos mil a puxar para o mesmo lado, os 30 minutos passaram sem a Académica desatar o nó. Nas grandes penalidades, quiçá pela primeira vez, todos sentiram que era 50% de hipóteses para cada um.
Nestas alturas há sempre quem opte por sair do campo, com medo que o coração não aguente as emoções. A Académica começou por não acertar no alvo e não mais voltou a recuperar. Quando Simões concretizou e fechou as contas, houve lágrimas e sorrisos, muitos abraços, duas mini invasões de campo, gritos de alegria e momentos de introspecção.
Ressaca
Aos jogadores custava-lhes acreditar no que lhes tinha acontecido e que o esforço imenso tinha sido recompensado. O presidente, que viu o jogo sentado nas escadas ao lado do líder da Académica – porque lhes tinham ocupado os lugares – realçou o desportivismo do adversário, que lhe deu “parabéns”, com um “fair play extraordinário”.
Já Militão cumpriu um sonho sucessivamente adiado ao longo dos 17 anos em que enverga aquela camisola: “jogar naquele campo, o seu campo, “completamente cheio”.
“Foi diferente, muito emocional, bonito de se ver e de viver com os meus colegas. É um dia para não esquecer, em que contámos com o apoio de oito ou nove mil adeptos, que nos deram tanta força. Estava a dar as últimas e da bancada ouvia as pessoas a darem-nos alento. Foram muito importantes para o nosso triunfo.”
O sonho prossegue, intacto. E vai ganhando terreno. Agora, nos quartos-de-final, o adversário será o Sporting Farense, equipa que também milita no terceiro escalão. O jogo é já na quarta-feira, dia 10, e o telefone do presidente não pára de tocar com tantos pedidos de bilhetes.
Emerge, pois, um sonho chamado final, acredita Jorge Reis. “Se dissesse que não acalentava essa esperança estava a descredibilizar a mensagem que transmito aos atletas. Os outros não são melhores do que eles, dentro do campo é que se vê e espero chegar ao verdadeiro Jamor.”