Aos 8 anos já tinha explicações. Agora, no 5.º ano, obter nota 5 a todas as disciplinas é o seu principal objectivo. As dores de barriga, o sistema imunológico em baixo e o stress passaram a ser uma constante. As brincadeiras foram substituídas por horas de explicações. “Agora já não está na moda ser rebelde. Temos de ser os melhores.” O desabafo foi feito por uma aluna e retrata o que se passa em muitas escolas de Portugal. A escola é o espelho da sociedade.
Esta pode ser uma verdade La Palisse, mas é uma realidade. A competitividade que se vive na sociedade transpôs os muros dos estabelecimentos de ensino e a luta pela nota mais alta e em mostrar que se é melhor passou também a fazer parte da vida de muitos estudantes.
Desengane-se quem pensa que a exigência que pais, professores e os próprios alunos se obrigam é apenas no ensino secundário, onde cada décima pode fazer a diferença para se entrar no curso pretendido no ensino superior.
A pressão para se ser o melhor começa logo no 1.º ciclo. “Essas problemáticas são muito frequentes na infância e na adolescência. A entrada em qualquer fase de avaliação é potencialmente causadora de ansiedade. Diria, neste caso, ansiedade positiva que muito facilmente se transforma em ansiedade negativa”, afirma Paulo Costa.
O psicólogo especialista em crianças e adolescentes admite que estas situações, se não forem bem geridas, podem levar o jovem ao médico ou até à urgência hospitalar. Falta de apetite ou voracidade alimentar, alteração do padrão do sono, ataques de pânico, ficar demasiado reactivo e entrar em conflito constante com os pais, perturbações emocionais ou até perder a locomoção são algumas das somatizações manifestadas pelos jovens que sucumbem à pressão.
Paulo Costa recorda uma jovem que deixou de andar. Foi ao hospital, realizou vários exames e fisicamente estava tudo bem. “Era ansiedade”. São vários os casos relacionados com a incapacidade de saber gerir a pressão com a escola que chegam às consultas de psicologia.
Perturbação obsessiva ou compulsiva é uma das situações que podem aparecer e que afectam um jovem do secundário, que está a ter acompanhamento psicológico. “Associado a um estilo muito rígido e ao facto de ser muito perfeccionista e querer controlar tudo tornou-se obcecado com determinados rituais. Se vai fazer um exame tem de levar as mesmas calças ou os mesmos sapatos que anteriormente lhe deram sorte. O problema é que este tipo de obsessão vai redundar noutro tipo de mecanismos primitivos”, constata.
O seu dia-a-dia começa a ser influenciado por estes rituais. As actividades que possuía foram reduzidas “porque lhe retiram tempo de estudo” e só as faz mantendo o mesmo tipo de rituais. Desta forma, “não está a tirar partido de algo que até é prazeroso”.
A escola é um local para adquirir conhecimento, onde aprender deve ser um prazer e onde cada criança e jovem devem usufruir dos momentos de camaradagem, amizade, convívio e troca de experiências. No entanto, actualmente, isso vive-se pouco, lamenta Cristina Marques. A psicóloga do Agrupamento de Escolas Domingos Sequeira, critica a competitividade desenfreada dos jovens, que os faz esquecer, por vezes, o seu lado humano, e aproveitar a vida.
“Temos as metas e os rankings, que são a maior anormalidade. O aprender por aprender, para adquirir conhecimento praticamente não existe. Tudo é feito com o objectivo de alcançar as metas. Há a pressão para entrar na universidade e os pais que querem mostrar ao vizinho as notas dos filhos”, adianta Cristina Marques, criticando o facto das notas estarem “hiper mega valorizadas”.
Segundo refere, “nem sempre há a preocupação em olhar e ver se o filho sabe partilhar, se é ‘humano’, se tem amigos, se colabora nas tarefas em casa ou se tem projectos futuros”. “Ele até pode não ter nada disto, mas se tiver 18 e 19, o futuro está garantido.” Os psicólogos constatam que os pais “exercem muita pressão sobre os filhos”, alguns “mesmo sem se aperceberem”.
Cristina Marques revela que há estudantes que “desatam num pranto” quando tiram 17 ou 18 valores. “São as tais metas, a excelência que têm de ter na produção. Não interessa se somos bons ou maus colegas.”
Paulo Costa acrescenta que são jovens “perfeccionistas” e que têm pais “que impõem esse tipo de metas ou exigência”. “Isto revela alguém que é até incorrecto na forma de apreciar o seu desempenho e não saberá certamente gerir emoções noutras áreas. Comparativamente com outros alunos que se satisfazem com uma nota mais baixa até é bastante feio”, diz o psicólogo, salientando que por trás destes estudantes estão quase sempre “pais que são muito rígidos, altamente coercivos e a trabalhar para os resultados, o que vai interferir no funcionamento dos miúdos e depois não sabem gerir isso”.
É pela procura incessante do sucesso que excelentes alunos procuram apoio extra. Cristina Santos, explicadora de Físico-Química, admite que a maioria dos estudantes que a procuram são precisamente aqueles que têm notas superiores a 16. “A pressão é grande porque têm de obter médias e os alunos de Ciências são aqueles que maior pressão sofrem. A carga lectiva é grande e ainda a reforçam com explicações de Matemática, Físico-Química e Biologia, as disciplinas de exame. Alguns ainda têm também inglês nos institutos de línguas.”
A docente considera que a carga horária é “muito grande” e muitos “não fazem mais nada no seu tempo livre além de estudar”. “É preciso uma maturidade muito grande. Por um lado, os pais fazem com que sejam pequenos mais tempo, protegendo-os, mas, por outro, as notas pressionam-os noutro sentido e são obrigados a crescer à força”, salienta.
Cristina Santos evidencia a diferença que existe entre o ensino básico e o secundário. “Quando chegam ao 10.º ano, os alunos são confrontados com uma maior exigência e não têm hábitos de trabalho. Falta-lhes alguma maturidade, o que leva a que alguns, confrontados com essa discrepância, no primeiro período, mudem de área.”
Nas explicações, constata que são as raparigas quem mais sofre com as notas. “Andam tristes, parecem deprimidas porque não conseguem atingir os objectivos. As matérias são cada vez mais difíceis e começam a ter dificuldades em dormir, estão muito ansiosas e algumas recorrem a medicamentos, como vitaminas ou o Valdispert [tranquilizante à base de extrato de valeriana]”, [LER_MAIS] revela.
Nos últimos tempos a procura por ser melhor tem vindo a aumentar e alguns pais são os principais responsáveis por esta pressão. Cristina Santos nota que a sociedade impõe determinadas metas. “Os pais vêem a realidade dos cursos e das universidades que têm maior empregabilidade e insistem com os filhos para terem as melhores notas para puderem ter uma maior escolha”, reconhece.
No entanto, Cristina Marques adverte que os encarregados de educação “devem tentar perceber como se estão a sentir os filhos e dizerem-lhes que não estão à espera de nada”. “Devemos trabalhar mas não devemos esquecer o outro lado da vida. As competências sociais são extremamente importantes para os nossos jovens. A pressão vem da sociedade que quer que todos sejam bons a todo o custo e a qualquer preço e há pais que desresponsabilizam os filhos de tudo e tentam imputar única e exclusivamente à escola a culpa do insucesso.”
A psicóloga faz o retrato da escola de hoje: “alargou-se o ensino obrigatório até ao 12.º ano e não se arranjaram alternativas aos jovens que não gostam de estudar, porque eles existem. Os cursos profissionais não são alternativa, porque têm também determinada exigência.”
Cristina Marques acrescenta: “temos professores envelhecidos, amargurados e em profundo sofrimento, que são humilhados e é muito difícil trabalhar nestas condições. A escola está formatada para agir em conformidade com todos da mesma maneira, quando as pessoas são diferentes. Mas não é possível fazer diferente, com turmas de 30 alunos. E depois fez-se da escola uma linha de montagem.”
Admitindo que os docentes acabam por exercer pressão, Cristina Marques lembra que “as escolas são avaliadas e os programas são estupidamente grandes”. Os professores são “pressionados” e, “obviamente, também pressionam os alunos”.
“A escola acaba por reflectir todo o sofrimento psicológico que se está a passar na sociedade e acabou por permitir que esta competitividade desenfreada pudesse surgir”, diz. “Claro que sempre houve alunos exigentes, mas se não houvesse aquela exigência imposta pelas metas, os miúdos iriam encarar a escola de uma forma mais tranquila. O princípio básico da educação é formar, potenciar conhecimento e competências o mais vastas e abrangentes possíveis. Não é para tornar especialistas em coisa nenhuma”, destaca Paulo Costa.
Segundo refere, “a maturidade psicológica e cognitiva não é igual para todos”, pelo que há exemplos de “miúdos que não eram muito bons alunos e que depois se tornam competentes no ensino superior e há outros que têm excelentes notas, mas depois não se adaptam, não são sociáveis, não têm outras competências que são tão ou mais importantes como por exemplo gerir emoções ou ser autónomos”.
Considerando que os alunos necessitam de tempo para si, Cristina Marques aconselha a que pais e estudantes se juntem para reavaliar o futuro antes que a pressão seja causadora de consequências negativas. “Nos cursos cientifico-humanísticos é possível anular disciplinas e fazê-las no ano seguinte para melhor suportar as exigências e pode haver um reencaminhamento vocacional.”
No entanto, esta não é uma decisão fácil de tomar, porque “há o peso social”. “É dizer que o filho vai retroceder ou vai ‘repetir’ o ano. Chumbar é só mais um patamar, muitas vezes, para amadurecer. Mesmo do ponto de vista cognitivo, pode amadurecer a perspectiva com que se encara a aprendizagem, os projectos de vida, pessoais ou profissionais”, afirma Cristina Marques, garantindo que “as pessoas têm de perceber que nem todos partem do mesmo patamar”.
A psicóloga recomenda brincar como receita. “Aprende-se muito brincando. Os jovens devem festejar tudo o que é para festejar e sem adições. Muitos deles usam-nas para os tornar mais confiantes, relaxados. Quem o é por natureza não precisa nada disso. E façam o favor de ser felizes.”
Mais vale prevenir que remediar
Portugal tem um rácio nas escolas de um psicólogo para 1.700 alunos, segundo referiu o bastonário da Ordem dos Psicólogos à Lusa. Francisco Miranda Rodrigues salientou que a contratação de 200 psicólogos que estariam previstos iria colocar o rácio em 1.100 alunos por profissional. “Esses 200 seriam um reforço para aproximar Portugal dos rácios internacionais”, adiantou.
No entanto, esse é um número que ainda está longe das necessidades das escolas. Em quase todos os agrupamentos, cujo numero de alunos supera e muito os 1600, há apenas um psicólogo e ainda há casos em que este especialista não existe.
Cristina Marques não tem dúvidas que mais psicólogos nas escolas iria “prevenir” evitando “remediar”. A psicóloga do Agrupamento de Escolas Domingos Sequeira lembra que o trabalho que pode ser desenvolvido poderá poupar muito dinheiro ao Serviço Nacional de Saúde quer em medicamentos quer em consultas e até na prevenção da criminalidade.
O psicólogo Paulo Costa acrescenta que a falta de psicólogos nas escolas faz com que, por vezes, sejam feitos “maus processos de orientação vocacional”, porque os técnicos que existem “não têm mãos a medir e não conseguem fazer esse trabalho de forma individualizada”.