O David Fonseca que há uns anos, em Leiria, não saía de casa sem levar a máquina fotográfica a tiracolo, ainda existe?
Existe ainda um bocadinho dele. Agora, não saio tanto de casa e nem todas as vezes levo a máquina, porque já sei que, muitas vezes, quando vou trabalhar, não vou ter oportunidade de fotografar. Aprendi com a idade a escolher as minhas batalhas. Não vale a pena querer fazer uma coisa que, depois, não irei ter tempo para fazer. Mas continuo a ser uma pessoa que pensa em fotografia quase todos os dias. Se não fotografo, pelo menos, penso nisso.
O que significam 20 anos de carreira na música para um "miúdo" dos Marrazes?
Fala-se nos 20 anos de carreira… mas 20 é um número como outro qualquer. A minha área profissional vive muito dessas efemérides e andaram a falar-me disso na Universal e na minha agência de management há uns tempos. Para mim, 20 é como 21 ou 15. É tudo igual, porque não vivo muito daquilo que está atrás, mas daquilo que estou a fazer. É claro que fico contente por já ter feito 20 anos de carreira e de a música ser a minha profissão. Em 20 anos, deu para perceber que esta é uma profissão muito dura e que deixa muita gente pelo caminho. Só o facto de ainda estar a fazer isto é uma vitória.
Então, Radio Gemini, o seu mais recente trabalho, não é um álbum comemorativo?
É um álbum… mas não é comemorativo dos meus 20 anos de carreira. Recordo- me que a ideia que estava em cima da mesa era fazer um best of… que ainda não está fora da mesa, mas, como tinha muitas ideias para um novo disco, achei que não valeria a pena arriscar essas ideias desaparecerem só para ter um disco comemorativo. Como sempre, fiz aquilo que me apetecia e gravei o Radio Gemini, que é uma coisa nova, que mostra o artista que sou.
A timidez, disse-o recentemente à Blitz, foi um dos catalisadores para o início da sua actividade como letristas, depois compositor e músico…
É possível que a timidez me empurrasse um bocadinho para a autocontemplação. E isso faz-nos escrever e mais uma data de coisas, embora, com o passar dos anos, o exercício da escrita não pode só estar fechado nisso. Hoje, escrevo, recorrentemente, porém, quando comecei a fazer música, não sabia que ia ser músico. Escrevi porque sim, mas, quando se faz da música profissão, ela torna- -se uma espécie de problema que é preciso resolver. Dantes escrevia quando me apetecia, mas, agora, é um desafio permanente. Será que consigo fazer outra coisa? Será que esta ideia dá para transformar num disco?
Diz que Radio Gemini é o teu trabalho “mais experimental” e que foi gravado em estilo road album, em quartos de hotel, comboios e aviões…
É experimental ao nível de tudo. O processo foi radicalmente diferente e a sonoridade também. Para o fazer, tive de recorrer a sintetizadores e a sons que, por norma, não utilizo nas minhas canções. A maior parte das vezes, uso uma guitarra acústica ou um piano. Quando estou longe desses dois elementos e só posso compor com auscultadores e sons digitais, a forma como a canção soa é alterada. Nesse sentido, foi tudo experimental porque fui a locais onde jamais pensei que as minhas canções pudessem ir. Fui a 21 sítios diferentes, que correspondem também a 21 canções, com várias pontas de lança, algumas coisas esquisitas e outras mais costumeiras no meio.
Espera-o um ano complicado, em termos de digressões?
Lancei o disco e esta digressão só engrenará para o final do ano e durante 2019. Foi tudo muito rápido. Só avisei a editora um mês antes de editar o disco. Ainda vou a Vilar de Mouros onde irei partilhar o palco com os dEUS, com o John Cale e com vários outros grandes artistas que ainda não foram anunciados. Já lá toquei várias vezes. Duas vezes com os Silence 4, acho eu, como banda principal. Hoje, é difícil perceber bem o que é uma banda principal. Acho que é aquela que actua logo a seguir ao jantar e antes que toda a gente esteja muito bêbeda. Estou a brincar, obviamente! É curioso tocar em Vilar de Mouros porque é raro darem o palco principal a uma banda portuguesa. Aliás, se se olhar para os cartazes dos grandes festivais, não há bandas portuguesas nos palcos principais a tocar no horário principal. As bandas estrangeiras é que fazem parte do slotprincipal e as nacionais começam pelas 20- 20:30 horas… Em Espanha, há sempre uma banda espanhola no grupo de bandas principais. Sempre! E sempre com um público gigantesco. Temos bandas para fazer isso? Temos. Temos público? Temos. Temos programadores capazes de o fazer? Já não sei. Em Vilar de Mouros, estão a olhar um pouco mais à frente e a dar o palco principal a bandas que têm tanto ou mais impacto do que algumas bandas internacionais.
Com tantos músicos de qualidade em Portugal e com tanta música original, o que falta para que os artistas portugueses sejam mais conhecidos no estrangeiro? Editoras com maior pujança?
É um conjunto de factores. Também acontece na Polónia… ou na Bélgica! Há países do norte da Europa, como a Suécia ou Noruega, que conseguem, efectivamente, lançar as suas bandas para fora de fronteiras. Têm tradição que vem do tempo dos Abba, têm escolas de músicapope uma indústria que indica o caminho para a internacionalização. Nós não temos nada disso e não temos força financeira e isso é fulcral. Já fui quatro vezes ao South by Southwest, no Texas, um festival onde os artistas mostram os seus projectos a agentes de outros países, jornalistas, editores… Fui sempre pelo meu pé. Fui eu a apostar em mim próprio. Logo no primeiro ano, conheci duas jornalistas norueguesas que eram de uma "Leiria lá do país" delas e que tinham vindo apoiar 12 bandas que tinham sido patrocinadas pela autarquia da cidade, para irem mostrar a música local, numa tentativa de internacionalização e chamariz turístico. A Câmara não apenas levou esses 12 projectos, de géneros musicais diferentes, como tinha um dos maiores expositores. Tinham até um dia da Noruega, com uma festa para onde convidaram toda a gente. Ao ver aquilo, disse ao meu manager: "não consigo competir com isto". Nem eu, nem português algum! Vi a Amy Winehouse na primeira edição desse festival e ela estava a tocar num clube para 150 pessoas, mas, junto com ela, estavam 11 músicos e deu 11 concertos em quatro dias. E ninguém sabia quem ela era. Não quero desiludir ninguém, mas por mais que a música seja interessante, é preciso estratégia financeira e específica para o mercado internacional.
O fenómeno Salvador Sobral fez com que muita gente voltasse a seguir o Festival da Canção. É uma competição que interessa aos músicos?
Fui convidado para participar no ano passado, quando se alterou o modo como o festival foi feito e não aceitei. Não gosto da noção de uma canção ir a votos. É uma coisa estranha. Além disso, o Festival da Canção também atrai o pior de muitas coisas, como toda aquela conversa dos plágios e os músicos a falar mal uns dos outros… É um território estranho e um discurso que nada me diz. Quando aconteceu aquilo [acusação de plágio a uma canção da IURD] ao Diogo Piçarra, enviei-lhe uma mensagem a dizer: "acho que te deverias borrifar e seguir com a tua vida! És um compositor e as pessoas gostam daquilo que fazes". Participei como jurado e fiquei muito contente porque era óbvio que havia ali três ou quatro canções interessantes e que ficaram no topo da classificação. Contudo, a canção vencedora foi muito tocada, mas as outras, que mereciam mais visibilidade, desapareceram. Pensava que, por terem ficado no topo, iriam chegar na mesma às pessoas. Não aconteceu! O Festival da Canção é um exercício inglório para 20 artistas e glorioso para um. E… no final, também não é assim tão glorioso. Há tempos, num programa de rádio, disse à Cláudia Pascoal que imaginava que ela estivesse já enjoada de tanto cantar a canção. Ela disse que, em dez dias, teria cantado O Jardim 90 vezes. Um dia até posso participar, se estiver para aí virado. Sou louco o suficiente para dizer que sim. Mas não é a minha praia.
Ainda faz sentido falar de "música de Leiria"?
A pergunta deveria ser: "alguma vez fez sentido"? Faz sempre sentido falar de música local, mas não faz sentido fazê-lo, como se houvesse ali uma espécie de um aquário impossível. Assim, é fácil ser-se o peixe-rei do aquário. Complicado é pôr o peixe fora do aquário. Não devemos olhar para a música local e eleger heróis. Tem de se olhar para aquilo e visualizar um aquário um bocadinho maior. Importa falar da música local porque é a que fala sobre nós e é tocada ao nosso lado, na nossa rua, por pessoas que conhecemos, mas não se pode confundir as coisas. Por vezes, os projectos locais não têm força para serem nacionais. Ponto final. É preciso uma força fora do comum para sair de um sítio e ir para outro. Uma banda de Lisboa pode ter uma conotação nacional facilmente, devido aos media. Se a cena local musical de Leiria estivesse toda "incrustada" em Lisboa, já teriam um megafone nacional, porque os media que os veriam seriam "nacionais"… Apareceriam no Público, no Diário de Notícias, no Expresso… Mas todas as bandas, até as de Lisboa e Porto, só sabem se resultam quando saem dos seus locais. Alguém de Lisboa, que vai tocar ao Music Box com casa cheia, deveria ir tocar em Viseu, numa primeira parte, antes do Abrunhosa. Aí é que iria saber quem está do seu lado e só a sua música valerá. O fenómeno da música local também está ligado ao público, que vai ver a banda, apenas porque é uma banda da sua terra. Isso aconteceu com os Silence 4, quando fizemos o primeiro concerto no Terreiro, que encheu porque a banda era de Leiria.
Não era suficiente para encher a praça?
Quando se passa de fenómeno local para nacional, já não são os nossos amigos a irem ver-nos. A música tem de contar, independentemente de sermos os maiores na nossa aldeia e que o espectáculo tem de ser cativante. Uma vez toquei com uma banda, que tinha tudo para resultar, num festival de rock fora de Lisboa e nunca vi um grupo tão às aranhas como aquele. Ao fim de 15 minutos, sem saberem o que fazer, borrifaram-se no público que não reagia. Em Lisboa, sempre que subiam ao palco, eram deuses na terra. A música local tem de sair dessa ideia local. Aprendi isso com os Silence 4, à força e, numa segunda fase, no South by Southwest, onde vi como é ser artista num mundo moderno. O do it yourself está muito impregnado. Quando comecei, só havia uma banda em Portugal a fazê-lo que eram os The Gift. Só dependiam de si, auto-agenciavam- se e geriam tudo.
O que lhe passou pela cabeça, quando soube que Leiria estava a considerar candidatar-se a Capital Europeia da Cultura?
Qualquer pessoa que esteja ligada aos aspectos culturais da cidade, acha isso um pouco estranho. É óptimo que se candidate, só não percebo como pode considerar tal coisa uma cidade cuja movimentação cultural está, praticamente, toda assente em gente amadora de boa vontade, que não está ligada a objectivos políticos, mas que tem gosto de organizar eventos na sua terra. Serem os privados a promover a cultura é uma espada de dois gumes. É bom, por um lado, porque envolve a população, mas a cultura, tal como todas as outras áreas, deve ser profissionalizada e ponto final! Uma boa prática cultural deve ter atrás de si bons profissionais e não pessoas que, após os seus dias normais de trabalho, dedicam as poucas horas livres que têm, para tratar destes assuntos. Não estou a desvalorizar o seu trabalho, pelo contrário, é de valorizar, mas é papel da classe política profissionalizar pessoas para estarem ligadas às áreas culturais de interesse para as cidades. O que tenho observado em Leiria, porém, é que, cada vez menos, esse papel está entregue à Câmara Municipal e seus agentes. Está entregue a quem tem vontade de fazer: às associações sem fins lucrativos que estão ligadas ao cinema, música e teatro, e que são "apoiadas" pela autarquia – e ponho muitas aspas neste apoio, porque conheço algumas histórias em Leiria, que dão vontade de rir, tal a forma ridícula como as coisas são feitas. Há trabalho cultural fabuloso e devo realçar, na área da música, o que o Carlos Matos e a sua equipa da associação Fade In, têm feito. O Entremuralhas é absolutamente excepcional! São festivais destes que deveriam ter muito mais apoio político, porque os políticos retiram dividendos políticos desse trabalho. A política das cidades pode ou não ser virada para a cultura. São escolhas. Não deve haver pessoa que fale mais com vereadores da Cultura de todo o País e o que vejo é que Leiria está muito atrás de outras cidades do País. Resumindo, acho bem que Leiria concorra a tudo, mas, em comparação com outras cidades portuguesas tem alguma hipótese? Desejo muita sorte, mas não. Leiria não tem hipóteses de ser Capital Europeia da Cultura.
Experimentar coisas novas
É um dos mais conhecidos músicos nacionais da actualidade e, aos 45 anos, está a dobrar duas décadas de um carreira que iniciou com os Silence 4. David Fonseca tornou-se, em 2003, artista [LER_MAIS] em nome próprio consolidabdo-se caso sério de popularidade na música nacional. Um feito obtido a custo e fruto de muito trabalho para um jovem que, até aos 18 anos, viveu nos Marrazes (Leiria) e que acalentava o sonho de se dedicar ao cinema.
Completou o bacharelato em Cinema, variante de Imagem, na Escola Superior de Teatro e Cinema, e chegou a frequentar a Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, mas a música foi o canto da sereia que, definitivamente, o conquistou.
Sempre que edita um novo álbum, impregna-o de aspectos inusitados e de novas linguagens musicais e visuais. Nos anos recentes, viu os seus álbuns serem considerados Álbuns do Ano, participou no projecto Humanos, dando voz a inéditos de Variações e criou um tributo a David Bowie – Bowie 70– quando o músico faleceu.
Este ano, lançou Radio Gemini, o seu “trabalho mais experimentalista”, embora a experimentação jamais esteja muito longe do trabalho que faz.