Dedicou toda a sua vida profissional e académica às questões do ordenamento. Partilha da opinião de que em Portugal tem faltado eficácia ao ordenamento do território?
Portugal tem nove séculos de história e nem sempre se assistiu ao laissez faire, laissez passez. Em determinados momentos, houve uma preocupação muito grande com o ordenamento do território. Nos últimos 30 anos, que coincide com a entrada na União Europeia (UE), temos tido melhores práticas, devido ao normativo comunitário, que obriga ao cumprimento de determinadas normas que têm, por exemplo, que ver com a água, com a energia ou com as acessibilidades, áreas muito importantes para o ordenamento do território. Ao nível das acessibilidades, tivemos bons e mais resultados.
Pode exemplificar?
O exagero que houve na rodovia foi muito pernicioso para o bom ordenamento do território. As auto-estradas faziam falta, mas, para as fazermos, desinvestimos na ferrovia. O abandono da ferrovia é uma das grandes tragédias do País. Espanha está a caminho de ter uma rede totalmente de alta velocidade e nós não temos. Ficámos isolados da Europa, não só ao nível do transporte de passageiros, mas também de mercadorias. Esta é uma das grandes fragilidades do País. É o efeito colateral da opção pela rodovia, uma opção que favoreceu a indústria automóvel e teve efeitos tremendos no ordenamento do território. A ocupação das cidades, o tipo de crescimento urbano e a maior dispersão urbana só foi possível com a generalização do acesso ao automóvel. Podíamos ter optado pela recuperação da ferrovia em vez do seu abandono. É criminoso o que se fez à ferrovia em Portugal.
Referiu que, nas últimas décadas, tem havido uma preocupação “muito grande” com o ordenamento do território. Que melhorias destaca?
Houve um grande avanço no ordenamento do território ao nível municipal, que é a chave de um bom ordenamento. Por muitas críticas que façamos, temos de reconhecer as melhorias. A situação é hoje muito diferente do que era há 40 ou 50 anos. Temos hoje uma cobertura generalizada do País com todos os instrumentos de nível municipal. Há erros, mas estes não resultam tanto da prática urbanística, mas sim de disfunções do sistema, em grande parte comandadas pela corrupção. Num país que não tem muitas formas de produzir e distribuir riqueza, a valorização artificial do território, ao nível dos loteamentos e das expansões urbanas, provoca muito desordenamento. Não podemos também ignorar as características da propriedade, com o predomínio do minifúndio e a dispersão rural. Isso orienta para um crescimento mais desordenado. Se uma pessoa tem um terreno, com acesso a uma via, é normal que, por questões afectivas e até económicas, queira que o filho faça ali a sua casa. A componente cultural do nosso território também tem contribuído para algum desordenamento. Há uma série de características do território que favorecem a urbanização difusa.
Quando se fala em desordenamento, os autarcas aparecem, muitas vezes, como os 'maus da fita'. Temos hoje autarcas mais sensibilizados para as questões do ordenamento? [LER_MAIS]
Os autarcas são, muitas vezes, apontados como os maus da fita, porque são eles que têm de responder pelo que de bom e de menos bom se passa no seu território. Não significa que sejam eles os promotores desse desordenamento, mas, sem dúvida, que são responsáveis. Também é verdade que, muitas vezes, os instrumentos de ordenamento do território não propiciam as ferramentas para uma defesa política das soluções. Um PDM [Plano Director Municipal] tem propostas, cuja lógica a população pode não compreender. Primeiro que tudo, é preciso demonstrar às populações que aquele é o caminho correcto para a comunidade. Compete aos municípios, que promovem os planos, ter essa componente de comunicação e de demonstração da bondade desses instrumentos. O que acontece é que, para evitar sofrer as consequências nas eleições, os autarcas cedem a pressões que, do ponto de vista do ordenamento, são menos racionais. Neste momento, estão a avançar uma série de planos para mitigar e prevenir os efeitos das alterações climáticas, que são fundamentais para validar todos os instrumentos de ordenamento do território. Todos esses instrumentos tinham definidos leitos de cheia, mas nem sempre o poder central e local respeitavam isso. Muitas das infra-estruturas públicas foram construídas em leito de cheia, em REN ou RAN. Agora, pia mais fino.
Há a questão do medo.
Exacto. O medo é fundamental para o ordenamento do território. Se não vamos pela via do racional, vamos pelo medo.
Planear as cidades e os territórios tendo como pano de fundo a problemática das alterações climáticas é um dos desafios que se coloca hoje ao ordenamento?
É um domínio essencial. Hoje, não é possível pensar o planeamento à escala nacional. O País deve prever, a médio e longo prazo, qual vai ser o seu posicionamento internacional. Isto também é ordenamento do território. A nossa produção agrária vai modificar- se. As nossas oportunidades no turismo também sofrerão alterações. Há uma grande oportunidade que resulta do facto de a coisa pública adquirir mais responsabilidades. E isso vai sendo assimilado pelas populações, o que pode funcionar como uma oportunidade para melhorar a qualidade do ordenamento do território. Mas também temos ameaças fortes. A questão demográfica é uma delas. Sem gente, é muito difícil conseguirmos um bom ordenamento do território.
Há formas de contrariar o despovoamento do interior ou essa é uma dinâmica inevitável?
Não gosto da expressão interior. Olhando à escala da Europa, Portugal é uma faixa litoral. O que se chama interior são áreas de baixas densidade e em declínio económico, que também existem no litoral. Há municípios costeiros que têm grandes dificuldades em fixar população, porque também não conseguem atrair empresas e criação de emprego. É sempre possível chamar gente para esses territórios. Grandes crises mundiais, como as dos anos 20 e 30 do século XX, levam a uma redução do comércio internacional. Os países tendem a fechar- -se sobre si próprios, reduzindo as importações. Isso leva à valorização dos produtos internos, situação que pode favorecer a recuperação demográfica, porque é preciso gente, mas é também uma situação de depauperamento social. Num cenário de crise mundial muito forte, de fecho do mundo, essas áreas recuperam, mais ou menos, em função da capacidade produtiva que ficou. Se a população está muito envelhecida, há mais dificuldades em recuperar. Só com recurso à imigração se conseguirá activar todo o potencial produtivo que existe, seja para a agricultura, para o turismo ou para a indústria. Se conseguirmos um crescimento alométrico da imigração, em que as comunidades vão crescendo proporcionalmente, Portugal pode ter uma imigração sustentável, do ponto de vista cultural e social, com resultados positivos para a nossa economia e para o ordenamento.
Também na questão da imigração tem faltado ordenamento?
Tem. A imigração não tem sido orientada. Ando há 40 anos a chamar a atenção para a necessidade de os municípios terem as suas próprias políticas migratórias, articuladas com uma política nacional, que também tem escasseado. Políticas municipais para a imigração ou para a natalidade são raríssimas e funcionam como medidas pontuais. Há um presidente de Câmara que se lembra de dar 500 euros por cada criança que nasça ou criar condições especiais para os imigrantes. Uma política migratória séria tem de ser para atrair os melhores. Para isso, é preciso criar condições que, muitas vezes, não se dão aos locais. A população não gosta disso e, depois, não dá o seu voto. Percebo a dificuldade política de implementar medidas de apoio à imigração. Temos hoje uma imigração controlada por máfias, com a exploração de mão- -de-obra, mas, como interessa a todos, fecham-se os olhos. De tempos a tempos, há uma operação das autoridades, fala-se muito disso, mas depois cai no esquecimento, para que não deixe de haver essa corrente de mão-de-obra errante. Do ponto de vista do ordenamento isto é fatal. Veja-se o que se está a passar com o olival no Alentejo: há uma aumento da produção sem haver aumento da população. Esta diminui e envelhece. Mão-de-obra não é população.
Portugal está a desperdiçar a oportunidade de combater o inverno demográfico que atravessa pela via da imigração?
Está, esquecendo que a política de imigração não permite só aumentar população, mas também recuperar o comércio local ou os serviços públicos, que são subutilizados. Permite valorizar o investimento público e privado e recuperar a energia reprodutiva da população. Se a população está envelhecida, se quem vem de fora fica apenas uns meses e não se fixa, nunca se conseguirá recuperar a capacidade reprodutiva. O mais importante na fixação de imigrantes é conseguir atrair pessoas que venham com projectos de família.
Como é que isso se faz?
Pensado que isso tem um custo e que todos temos de pagar esse custo. É um grande benefício para o País que essa gente venha com um projecto de vida. As políticas de apoio à imigração e à natalidade não são consensuais, porque grande parte da população não beneficia directamente delas. É preciso que a população perceba que isso é fundamental para o futuro de todos, que é indispensável favorecer a imigração e a natalidade. Os países escandinavos têm sofrido mudanças em termos sociais e políticos, mas há uma linha da qual não saem e que está relacionada com a demografia, com apoios fortes à natalidade e às políticas migratórias. Por isso, têm conseguido aumentar a sua população. A Suécia, por exemplo, tem apostado no acolhimento de refugiados políticos, de pessoas oriundas de zonas de conflito, de diferente credos e valores sociais e culturais, que tem conseguido integrar na sociedade. Por outro lado, a população local tem condições de reprodução, o que favorece o aumento da natalidade. Por exemplo, as licenças de maternidade e de paternidade são muito mais extensas do que as nossas.
Os valores societários também têm influência?
Claro que sim. Em Portugal, o dilema para um jovem casal é, muitas vezes, ter um filho ou ter casa própria. Entre a primeira gama do BMW ou ter o primeiro filho, opta-se pela primeira gama do automóvel, passo o exagero.. Estive recentemente em Copenhaga, onde estudei durante algum tempo e onde já não ia há uns anos. Uma das grandes mudanças que encontrei foi a proliferação de triciclos, acoplados às bicicletas, para os pais transportarem os filhos. Essa simplicidade de intervenção individual é demonstrativa dos valores dominantes, nomeadamente os da sustentabilidade demográfica. Vêem-se muitos pais com duas ou três crianças nos triciclos. Isto numa metrópole como Lisboa. Se formos para fora, isso ainda é mais nítido. Em Portugal, é o contrário. Saímos de Lisboa e o domínio do automóvel é ainda maior, porque tudo foi feito em função do automóvel. A questão demográfica é essencial. Portugal caminha para o suicídio pela via demográfica. Qualquer comunidade viva, seja animal ou vegetal, tem limiares críticos, abaixo dos quais já não há capacidade de recuperar. É verdade que, ainda não há muito tempo, Portugal tinha oito milhões de habitantes, mas eram jovens e com capacidade produtiva e reprodutiva. Como será o País com oito milhões de pessoas, muitos dos quais sem capacidade para se mexerem?
Coleccionador de arte
“Apoiar jovens artistas é algo que me fascina”
É um dos promotores de um projecto artístico no Alvito (Alentejo) que inclui residências artísticas e a produção de exposições. O que o levou a abraçar esse projecto?
Não há nada na primeira pessoa. Não só na arte como em todas as outras coisas que fiz na vida. Fui eu com as pessoas que trabalham comigo. O projecto do Alvito é feito com a minha mulher e com a minha filha. O gosto pela arte contemporânea nasceu no quarto ano do liceu. Tive um professor extraordinário, Fernando Fernandes, que fugia um pouco à chatice do desenho geométrico e do desenho artístico, onde eu era um nabo. Mostrava-nos muitas coisas dos grandes pintores. A determinado momento, comecei a coleccionar serigrafias e outro tipo de obras de arte.
Como é que da colecção de arte partiu para o projecto artístico no Alvito?
Desde a minha tese de doutoramento sobre Évora que fiquei muito ligado ao Alentejo. Nos finais dos anos 80, eu e o meu irmão tivemos a ideia de criar uma exploração agro-pecuária, sector que estava na nossa matriz familiar. No processo de procura de herdades fui a Alvito e, por um acaso, encontrei uma casa em ruínas, pela qual a minha mulher se apaixonou. Acabámos por a comprar para casa de segunda habitação e fizemos a exploração noutro lado, projecto que, entretanto, abandonámos. Na altura, já tínhamos uma colecção razoável de obras de arte. A casa de Alvito começou por ter a função de exposição dessas peças. Perto havia uma antiga oficina de automóveis, que também recuperámos. Percebemos depois que não fazia muito sentido ter ali a colecção se outros não pudessem usufruir dela. Começámos a mostrar a colecção, mas parecia- nos narcisista e redutor. Interessava-nos alimentar o projecto continuamente. Daí, nasceu a ideia das residências artísticas. É uma forma apoiar a jovens artistas, que é algo que me fascina, também porque tenho pavor de ambientes só com idosos. Quando me aposentei, o que mais me fez falta foi o contacto com os jovens.
O contacto com os jovens artistas ajuda a suprimir essa falta?
Em parte sim. Houve uma altura em que andava delirante. Percorria sítios alternativos. Conheci espeluncas inacreditáveis, onde se criava arte. Adorava esse contacto. Hoje, já não faço isso, mas com o projecto do Alvito, mantenho o contacto com jovens artistas. Além da vertente da exposição e das residências artísticas, também organizamos conferências.
Discípulo de Orlando Ribeiro
Em criança queria ser engenheiro, mas acabaria por enveredar pela geografia, especializando-se na área da geografia humana, doutorando-se com a tese A área de influência de Évora – Sistema de funções e lugares centrais, um tema que escolheu a conselho do “mestre” Orlando Ribeiro. Jorge Gaspar, 77 anos, participa, desde 1968, em planos e estudos de ordenamento do território nacionais, mas também internacionais, nomeadamente, em Angola, Argélia e Macau.
Foi consultor da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) e fundador do CEDRU (Centro de Estudos e Desenvolvimento Regional). Leccionou e colaborou em várias instituições do ensino superior nacionais e internacionais e foi vice-reitor da universidade de Lisboa (1989/90).