Comemorou, este sábado, 50 anos de sacerdócio, com direito a homenagem. Sempre quis ser padre?
Sempre. Tomei essa decisão aos dez anos. O meu pai emigrou para a Venezuela quando eu tinha dois anos e só o conheci aos 16, quando ele veio a Portugal. Aos dez anos vim para Fátima. Um padre passou na minha paróquia e falou com o meu prior, que me encaminhou para aqui [seminário dos Monfortinos]. Mal entrei no seminário, a minha mãe emigrou também para a Venezuela, com o meu irmão. Fiquei sozinho.
Foi difícil?
Não me queixo. A decisão foi minha. Fiquei ao cuidado de uma tia, com quem estava nas férias. Fui fazendo o meu percurso em Fátima.
Durante o seu percurso vocacional, houve momentos de hesitação?
Acho que não. À medida que avançava, ia descobrindo que era um caminho que me agradava. Aos 17 anos, a congregação mandou-me para França estudar Filosofia. Meteram-me no comboio. E lá fui eu, com as malas às costas. Fui para Reine, onde fiquei dois anos. Depois, segui para Roma, para fazer Teologia. Em 1969, terminei o meu percurso e fui ordenado em Fátima. E aqui me fixei, como professor e prefeito dos alunos. O seminário tinha, então, cerca de 120 estudantes.
Foi nessa altura que surgiu o convite para jogar no Centro Desportivo de Fátima.
Exacto. Certa noite, a Direcção do clube veio ao seminário falar comigo. Tinham ouvido dizer que eu jogava bem. Era uma revolução, um padre jogar futebol. Eu gostava muito, mas receava que os meus superiores não concordassem. Pelo contrário, fui incentivado a aceitar. Foi uma decisão que marcou a minha vida. A grande revolução da minha vida foi entrar para o futebol.
Por quê?
O futebol tirou-me do esconderijo. Meteu-me entre as feras e eu habituei-me a conviver com elas. Revolucionou a minha maneira de ser e marcou a minha maneira de estar. Tornei-me uma pessoa conhecedora do ambiente de Fátima, uma pessoa da praça, que saiu da sacristia para a rua. Isso ajudou-me profundamente. Fui também um dos fundadores do CEF [Centro de Estudos de Fátima]. O estar no colégio e no futebol fazia com que, quando havia um problema, as pessoas me fossem bater à porta. [LER_MAIS] Foi assim que nasceu o CRIF [Centro de Reabilitação e Integração de Fátima], a partir do desafio feito por pais de filhos deficientes que me conheciam desses dois mundos [futebol e o ensino]. Ainda resisti à ideia. Além das actividades que tinha, estava a fazer uma licenciatura em Coimbra (Filologia Românica). Sentia-me um pouco assoberbado.
Como conciliava o futebol com o desempenho da vida paroquial, uma vez que os jogos e a missas eram ao domingo?
Dava as missas mais cedo e às 11 horas já estava despachado. Quando os jogos eram mais longe, no final da última missa tinha um carro à minha espera. Um dia, fomos jogar perto do Cartaxo. Naquele dia, estreámos o carro do presidente, um Mercedes. Íamos um pouco depressa, para chegar a tempo. A certa altura, apanhámos um abaixamento na estrada. O carro bateu e ficámos a pé. A sorte, é que vinha outro carro do Fátima atrás e levou- -me. O treinador começou o jogo só com dez atletas, à espera que eu chegasse. Quando cheguei, o jogo já levava 10 minutos. Os adeptos da outra equipa assobiaram- -me e chamaram-me nomes. Mas, mal agarrei a bola, marquei golo. Estava cheio de genica. Ainda marquei outro. Ganhámos dois a zero. Era avançado centro e fazia, em média, um golo por jogo. Corria muito e era alto. Os defesas eram implacáveis. Havia sempre dois em cima de mim.
Como é que as pessoas reagiram a essa sua dupla actividade?
Houve um artigo de duas páginas no jornal Mundo Desportivo pelo facto de eu ser o primeiro padre federado em Portugal. As reacções fizeram-se chegar. Recebi muitas cartas de pessoas insatisfeitas, que consideravam uma vergonha um padre jogar à bola. Às vezes, havia mensagens positivas, de quem via isso como um sinal de abertura da Igreja e de proximidade com as pessoas. Joguei até aos 35 anos, sempre no Fátima.
Chegou a ter convites de outros clubes?
Quando o Tomar esteve na 1.ª Divisão, chegaram a falar comigo. Nessa época, jogava lá o Eusébio e o Simões e todas as semanas fazíamos um treino conjunto. Mas eu não tinha vida para ir para o Tomar, que então era uma equipa profissional.
Aos 41 anos e já depois de abandonar o futebol, foi para os EUA.
Tive um convite da comunidade portuguesa de Long Branch [Nova Jérsia]. Falei com os meus superiores e pedi um ano sabático. Quando aterrei em Nova Iorque, 'desviaram-me'. Levaram-me para uma paróquia em Elizabeth [Nova Iorque]. O padre de lá pediu-me para ficar. Abracei o grupo de jovens. No final dos nosso encontros tínhamos sempre um momento de convívio, fosse na pizzaria ou geladaria, onde algum deles trabalhava. Aos domingos, no final da missa, fazíamos grandes passeios. Dinamizávamos muitas actividades, como vias-sacras e encenações. Desse grupo, três foram ordenados. Foi uma experiência muito marcante. Estive quatro anos nos EUA.
Regressou depois a Fátima?
Antes, ainda estive um ano em Itália a fazer reciclagem na área da pastoral juvenil e mariologia. Voltei a Portugal por volta de 1990, mais ou menos decidido a regressar à América. Mas quando cheguei a Fátima, pediram-me para ir para o Alentejo, para Ourique e Castro Verde. E eu lá fui, desencantado. Encontrei a igreja vazia, pessoas muito distantes, não havia catequese. Um dia, agarrei numa folha e fiz uma lista de coisas que me propunha fazer. Fui às escolas, inscrevi-me como sócio em todas as equipas de futebol e arranjei uma carrinha. Ia pelos montes isolados distribuir bens que pedia na Cáritas. Algumas escolas abandonadas foram transformadas em igrejas, com o apoio da Câmara. Pusemos um altar e, um vez por mês, celebrava missa. Aproveitava esse momento para levar mais alguma ajuda. Foi o melhor tempo da minha vida. Gente tão boa, tão generosa. A igreja que estava morta, encheu-se de vida. Em Ourique, construiu-se uma igreja nova. Pedi ajuda a pessoas de Fátima, que corresponderam. Até equipas de pedreiros foram daqui. Depois dessa experiência, elegeram- me superior provincial [dos Monfortinos]. Em 2001, fixei-me em Fátima até hoje. Já se tornou a minha casa.
Ao longo do seu percurso tem trabalhado muito com jovens, seja na igreja, no ensino ou no futebol. Como vê o afastamento dos jovens da igreja?
A Igreja não tem hoje vitalidade suficiente. Não tem padres jovens suficientes e com dinamismo para captar outros jovens. Por outro lado, os tempos são diferentes. Os jovens têm hoje muitas solicitações e ocupações. O mundo mudou muito e a Igreja ainda não entrou neste mundo.
O celibato é mais um entrave?
O celibato tem as suas vantagens. Torna-nos muito livres e disponíveis. Mas não me admirava que a Igreja tomasse outras opções, mantendo o celibato. Que tipo de opções? Permitir que pessoas casadas, com provas dadas e devidamente preparadas, pudessem exercer o ministério da Igreja. Há também padres que saíram e que casaram e que podiam regressar com bastante utilidade. Estamos numa fase em que a balança pode cair para cada um dos lados. As necessidades vão obrigar a tomar decisões.
Acaba de ser reeleito presidente do Centro Desportivo de Fátima. Que futuro vê para o clube e para a SAD?
A última época foi difícil. A SAD não funcionou bem. O futebol sénior passou grandes percalços, devido a dificuldades financeiras. O essencial tem sido pago, mas não atempadamente. A formação, que envolve cerca de 300 crianças e jovens, encontra-se excelente. Temos uma equipa muito boa a trabalhar nesta área. Os iniciados e juvenis estão nos nacionais e no futebol de sete temos tido grandes sucessos em termos distritais. Investimos agora num novo sintético e vamos tentar ter um outro na próxima época.
Na última época, o Fátima SAD teve problemas com salários em atraso e saída de jogadores. Como é que conviveu com isso?
Não havia razão para isso, porque os jogadores sabem que ele [responsável da SAD] se atrasa, mas paga. A verdade é que o clube não tem capacidade para tomar em mãos o futebol sénior. Há uma concorrência enorme. O futebol sénior está hoje entregue às SAD. Duvido muito delas. A maioria das SAD é muito pouco fiável, mas investem e tornam o futebol muito competitivo. Só com a prata da casa, não se consegue entrar nessa competição. Há hoje uma grande concorrência de jogadores estrangeiros, a meu ver exagerada, que acaba por dificultar ou mesmo impedir a entrada dos jovens da formação nas equipas principais. No distrito de Santarém há equipas formadas quase só com jogadores de fora. O futebol tornou-se uma competição de interesses. Temos jovens formados no Fátima a jogar em Ourém ou em Santa Catarina da Serra porque não têm lugar na nossa equipa sénior. Gostava de criar no clube uma equipa sénior, só que isso tem custos. E o clube está carregado de dívidas. Os erros do passado, deixaram-nos à deriva. Enquanto não nos libertarmos do peso das dívidas não podemos sonhar muito. Estamos constantemente a ser ameados com insolvências.
Já se arrependeu de ter entregue parte do clube à SAD?
Não tínhamos outra hipótese. Se não tivesse aparecido este investidor, tínhamos fechado a porta. Tínhamos muitos dívidas. Também porque fomos enganados por um patrocinador brasileiro. Inscreveu jogadores como profissionais, não nos deu nada do que tinha prometido e foi-se embora. Involuntariamente vimo-nos numa situação quase impossível de resolver. Foram anos duros, com insolvência e o PER [Processo Especial de Revitalização]. Temos pago como podemos, mas ainda nos faltam umas centenas de milhares de euros.
Teme pelo futuro do clube?
Estamos a conseguir dar a volta por cima. Também com a ajuda de jogadores que saíram daqui e que estão em grandes equipas, o que nos traz benefícios. Na última selecção nacional tivemos o Nelson Semedo, o Willian Carvalho e o Mário Rui, que passaram pelo Fátima. Temos mais dez jogadores na 1.ª Divisão. De vez em quando, recebemos umas gotas das suas transferências. Do Nelson Semedo devíamos ter recebido mais de 100 mil euros, mas ainda não nos pagaram. Há um diferendo com o Benfica.