Paulo Carneiro é bem recebido em Bostofrio. Como um filho da terra. Mas nem todos os habitantes da povoação perdida no mapa para lá de Vila Real estão interessados nas perguntas que ele tem, o que resulta em diálogos tão risíveis e ternurentos como carregados de sentimentos sérios.
Logo no início do documentário, por exemplo, Casemira descarta a curiosidade do realizador como quem foge ao diabo. Ouve os pontos de interrogação, mas não quer quebrar o segredo sobre a relação entre Domingos e Profetina, vivida longe dos olhares, nos montes e pastagens, em horas clandestinas, fora do casamento.
Já lá vão décadas, só cá estão os descendentes. Três homens, registados à nascença como filhos de pai incógnito. São a prova de um tempo que já lá vai, mas, de alguma maneira, permanece. Como o afecto escondido entre Domingos e Profetina, de que todos sabiam, afinal. Como um país inteiro que cabe numa única aldeia. E que ainda existe. O chamado país real, o Portugal profundo. E outro país, reconhecível nas entrelinhas: o Portugal da ditadura e da lavoura, do medo e da miséria, da emigração a salto, da fé católica e da crendice, numa vivência que é pagã e da igreja ao mesmo tempo. A frase de Teixeira de Pascoaes resume tudo no último segundo do filme: “Deus e o demónio são incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal”.
No som há outra história
Bostofrio – Où Le Ciel Rejoint La Terre chega hoje, 7 de Novembro, ao Cinema City de Leiria. No próximo domingo, o realizador Paulo Carneiro, que é formado em Som e Imagem pela Escola Superior de Artes e Design de Caldas da Rainha, está em Leiria, pelas 19:30 horas, para um encontro com o público, antes da projecção do filme, que tem direcção de fotografia de Pedro Neves, cineasta natural de Leiria. Antes de alcançar o circuito comercial, numa estreia que acontece esta quinta-feira em mais seis salas a nível nacional, o documentário percorreu os festivais. Tem somado prémios e boas críticas.
A longa-metragem baseia-se na investigação de Paulo Carneiro, que vai à procura da história dos avós. O realizador torna-se personagem, no ecrã, em conversas ao lume ou nos campos de pasto e de lenha. Pelo meio, capta as rotinas dos 30 habitantes. Regista a interacção com o meio, com a luz e com as estações do ano. Com a terra, o gado, a floresta. Cede ao bailado entre o céu e a montanha, namora a cor uniforme das casas em granito, viaja pelos fios de água nas encostas.
“A aldeia também é personagem”, ouve-se “o respirar” de Bostofrio, comenta o antigo aluno da ESAD.CR. Um ritmo mais lento, entre o silêncio e o que diz a Natureza. “É um tempo diferente e o som trabalha esse tempo”, afirma, explicando que “no som está outra história”. Os planos são muito abertos, gerais, os protagonistas estão ao longe “e é o som que traz as pessoas para o espectador”.
Paulo Carneiro garante que nunca quis apresentar o interior como um cliché exótico, porque “o paraíso rural não existe”. E lembra que “é preciso uma força psicológica muito grande para viver ali”. O frio é agressivo, a vida é dura e o isolamento é real. Daí saírem os novos – para Lisboa, para o estrangeiro, para qualquer outro lugar – e ficarem os velhos.
Numa das cenas, interrompe um concerto de música pimba, o Radikal Show, para explicar, no palco, que está em busca das raízes do pai, nunca perfilhado. E informa que há 150 mil portugueses filhos de pai incógnito. “Queria fazer este filme para ver o meu pai chorar”, conta ao JORNAL DE LEIRIA. “É um filme para o meu pai e para agradecer. Eu ofereço o filme ao meu pai”.
Um Portugal riquíssimo
A demanda de Paulo Carneiro permite-lhe “perceber uma série de elos familiares”, ou seja, ajuda-o a resolver enigmas pessoais, a encontrar “questões identitárias”. Parece contradição, mas é por aqui que comunica com o público, num efeito de espelho. “É muito meu, mas, ao mesmo tempo é um filme em que as pessoas se revêem, porque pode fazer reflectir”, acredita. “Vou à procura do meu avô e depois ramifica-se e fala sobre muito mais coisas”.
Por exemplo, “uma sociedade que desvalorizava completamente a mulher”. Ou “um Portugal riquíssimo”. Teixeira de Pascoaes “andava nestas aldeias à procura do ser português e eu acredito que Portugal está muito aqui”, assinala o realizador. Alguém disse que “no cinema andamos todos à procura do pai” e o pai “pode ser diversas coisas”. Para Paulo Carneiro, “fazer um filme é um acto de romantismo”. E em Bostofrio, assegura, encontrou amor.
O filme
Com 70 minutos, Bostofrio – Où Le Ciel Rejoint La Terre é a primeira longa-metragem de Paulo Carneiro, também responsável pelo argumento. Passa-se numa aldeia do concelho de Boticas, Trás-os-Montes, à procura da história dos avós do realizador. O documentário tem fotografia de Pedro Neves, que é natural de Leiria. Estreia esta quinta-feira, 7 de Novembro, no Cinema City de Leiria (19:30 horas) e em mais seis salas a nível nacional, antecedido pela curta-metragem Cinzas e Brasas, de Manuel Mozos. No domingo, 10 de Novembro, depois de mais uma sessão às 19:30 horas, Paulo Carneiro encontra-se com o público no Cinema City de Leiria para uma conversa moderada por Álvaro Romão.
O realizador
Paulo Carneiro, 29 anos, natural de Lisboa, é um antigo aluno da Escola de Artes e Design de Caldas da Rainha. Estreou-se em nome próprio com Água para Tabatô (2014), média metragem sobre o naufrágio que viveu ao largo da costa ocidental de África. Depois de Bostofrio (2018), segue-se outro documentário, com o automóvel como ponto de partida.
Os prémios
Menção especial do júri no festival IndieLisboa, prémio da imprensa nos Caminhos do Cinema Português, melhor documentário português no festival Filmes do Homem, entre outros galardões. Bostofrio já passou por 16 festivais em 10 países.
A crítica
Sobre Bostofrio, o cardeal, poeta e teólogo José Tolentino Mendonça escreveu: “Maravilhoso objecto que explora as possibilidades que o cinema tem para revelar as identidades submersas, sejam elas singulares ou colectivas. Paulo Carneiro assina um impressivo retrato de Portugal, abrindo o espectador de forma meticulosa e comovida à visão das entranhas de um país em grande medida por reconhecer”.