Foi no Texas Bar que Surma deu o seu primeiro concerto. Aliás, os principais projectos musicais de Leiria, quando a “música de Leiria” estava ainda a dar os primeiros passos, encontraram ali um palco de abrigo.
É a família Clemente – Filipe, o pai, Paula, a mãe, e os filhos Telmo e Frederico – quem governa este território musical na aldeia de Barreiros, na freguesia de Amor, a apenas seis quilómetros do centro de Leiria.
Em 2019, receberam muitos, muitos músicos, daqueles que, por norma, só passam por Lisboa ou Porto. Porque o final do ano apresta-se a listas dos Melhores do Ano, os responsáveis pelo espaço elegem para o seu top artistas o rapper Allen Halloween, o cantor, compositor e produtor brasileiro Cícero, os também brasileiros Boogarins, as australianas Stonefield, que partilharam o palco com os Stone Dead.
“Dificilmente teremos um concerto que supere o dos americanos Moon Duo. Foi o melhor concerto que já cá houve. Nem reconheci o espaço quando entrei”, recorda Frederico Clemente.
Nem só rock, nem só indie, nem só metal
“Sonho ter muitos grandes artistas aqui, neste palco, e também já tive a sorte de ver muitos desses sonhos tornados realidade”, brinca Frederico Clemente. O espaço recebe cada vez mais bandas estrangeiras, mas não nega um espaço às formações portuguesas de qualidade, que necessitem de um palco. “Todos os dias recebemos dezenas de pedidos e temos de fazer uma triagem”, afirma Filipe Clemente que adianta que o estabelecimento tem vocação para acolher “todo o género de eventos” e não apenas música.
“Pelo nosso palco, até já passou standup. Isto é uma sala de espectáculos e, há dias, tivemos mesmo uma proposta de uma banda suíça para gravar um álbum aqui.”
O facto de o Texas ser fora de uma cidade, por vezes, provoca reacções engraçadas nos músicos. Especialmente quando o GPS os envia pela estrada que atravessa os férteis campos do Vale do Lis.
“Chegam cá a perguntar-se onde foi que desembarcaram. O brasileiro Silva achou que estava no Brasil, quando viu as hortas e sentiu o cheiro a vacas assim que se saiu do hotel em Leiria.”
Mais espesso do que sangue
O amor pela música corre tão espesso e quente quanto sangue nas veias da família Clemente. Filipe que fundou o Texas com o irmão, Rui, chegou a ir ao primeiro concerto ao vivo dos Pink Floyd, ao volante de uma carrinha de nove lugares. Com ele, além de alguns amigos, ia Paula, a esposa, de mapa na mão.
Hoje, é ela quem manda na cobrança de bilhetes. Já Frederico, propôs uma Prova de Aptidão Cultural, completamente voltada para a divulgação das bandas de Leiria. Chamou-lhe Leiria Acústico, um concerto esgotado, onde tocaram First Breath After Coma, Nice Weather for Ducks, Team Maria e António Cova.
Entre muitas outras bandas e artistas de referência, Frederico e o irmão, Telmo, cresceram a ouvir Bruce Springsteen e outros grandes nomes do rock, por influência de Paula e Filipe.
Pai e filho contam que há grupos que ficam de boca aberta. “Dizem-nos que nunca tocaram numa casa como esta, com estas condições acústicas e bons equipamentos de som”, diz Frederico.
“É uma das maiores salas, em formato pub, em Portugal”, assegura o pai, ilustrando com a segunda sala do Texas, mesmo por debaixo do recinto principal.
“O Music Box ou o Maus Hábitos são mais pequenos do que nós. Já cá recebemos espectáculos como o Rumble in the Jungle, dos Linda Martini e Legendary Tigerman, e o Texas foi das salas com maior lotação.”
Uma das razões pela qual o espaço faz parte do circuito música nacional e ponto de paragem obrigatório de muitas bandas estrangeiras, durante as suas digressões europeias é o seu ecletismo.
“Nem só rock, nem só indie e alternativo, nem só metal. Todos os fins-de-semana tentamos ter um estilo de música diferente.” É uma visão e um modo de estar que tem raízes nos gostos musicais de Filipe e de Paula, melómanos incorrigíveis, que passaram nos genes o gosto pela primeira das artes aos filhos.
E, para 2020, a família Clemente já tem em vista novos projectos musicais, com especial atenção para o rock e para o hip-hop, de referência. “Sempre fui um pouco reticente em relação ao hip-hop, mas a minha forma de pensar tem mudado. Há pessoas que gostam de metal e de rock que aqui se deslocam para conhecer artistas como o Allen Halloween e que estão abertas a estes projectos novos”, justifica Frederico adiantando que a música portuguesa tem imensa oferta neste momento.
O Texas também continua a abrir as portas aos projectos locais. No passado fim-de-semana, no âmbito da X Embarcação do colectivo Capitão, que nasceu no ambiente da casa de espectáculos, embora não esteja directamente a ele ligado, actuaram os Meia Unha e os Ayamonte Cidade Rodrigo, grupos de Leiria.
“No Capitão, gostamos de trabalhar a contra-cultura, apresentar o que não é apresentado e mostrar o que as pessoas não conhecem. Somos um projecto que usa o espaço para os nossos eventos, onde há música, arte, teatro, ilustração e literatura, porque não conseguimos condições melhores noutro local”, diz Frederico, que também faz parte do colectivo e que insiste em separar as águas. Ao Texas o que é do Texas e ao Capitão o que é do Capitão.
Primeiro, eram os covers
A história do Texas Bar começou há 27 anos. O espaço ganhou o nome pelo aspecto de então, marcado por um espírito de fronteira do Oeste, exacerbado pelo uso de madeiras, portas de vaivém, na decoração.
Tudo começou quando, por volta de 1992, os pais de Filipe e de Rui Clemente, resolveram abrir um mini-mercado, a loja da Florinda, que ainda hoje se mantém de portas abertas ao lado do Texas, e reservaram parte do espaço para que os filhos fizessem lá “alguma coisa”.
Como para Filipe, desde pequeno, a música era a sua paixão, a ideia de negócio foi abrir um bar onde pudesse haver música ao vivo. Na época, eram os covers das bandas do momento quem liderava as preferências.
“Era um espaço pequenino do qual resta ainda um dos palcos”, diz, apontando para um dos cantos da sala de espectáculos. Convenceu o irmão e lançaram-se no empreendimento.
Claro que, para abrir uma casa como aquela numa aldeia é preciso atrevimento, mas o salto no escuro compensou. À época, em Leiria, a [LER_MAIS]animação nocturna dividia-se pelos bares do Terreiro e por discotecas como a Night Sound e o Alibi, com muita música enlatada, conservada em ritmos “pão-com-queijo”.
A banda que abriu o primeiro concerto no Texas, nem sequer era uma banda. “Foi o Zé Praia. Ele movimentava muita gente. Cada vez que cá vinha, a casa ficava a abarrotar. Tocava [e toca] todos os estilos. Do rock ao blues e à música popular, estrangeiros e portugueses. É multifacetado”, conta o fundador.
O Texas continuou a apostar durante mais alguns anos na música ao vivo, mas sempre covers, porque bandas que tocassem temas originais, naquele tempo, havia poucas. A determinada momento Filipe viu-se numa encruzilhada. O bar era uma actividade pós-laboral e o “laboral” começou a exigir mais e mais tempo.
“Tinha de decidir. Ou uma coisa ou outra. Acabei por desligar a ficha e afastei-me por cerca de cinco anos.” Rui ficou a governar todo o Texas, a solo. O bar reduziu as bandas e limitou-se a ser isso mesmo; um bar, sem música ao vivo.
“A música era ambiente, mas sempre primou pela qualidade e bom gosto”, conta Frederico Clemente, nascido também há 27 anos. Assim que teve mais tempo disponível, Filipe encetou a caminhada de regresso, com a mochila carregada de ideias, para o Texas.
“Em 1999, investi no karaoke, uma novidade na época. Quase nem havia coisas em Português, era tudo em Inglês. Foi um boom”, recorda. O Texas voltou à popularidade do início da década e todos os dias havia Chuva de Estrelas, nos Barreiros.
“A minha ideia sempre foi ampliar o espaço para poder ter outra oferta, regressar à música ao vivo e trazer as bandas de que eu gostava.” Passados cinco anos, chegou o momento de colocar esse plano em prática. Filipe cortou, com pesar, o cordão umbilical ao karaoke e abriu as portas às bandas.
Primeiro o Texas recebeu os colectivos que tocavam covers, mas, rapidamente, se tornou em pouso para as, cada vez mais, bandas portuguesas de originais que estavam a aparecer no seguimento do desabrochar da “nova música portuguesa”, na primeira década do século XXI.
“Tudo o que aqui está foi pensado por mim e feito de raiz. Nada foi adaptado”, diz Filipe, não sem uma ponta de orgulho. Algumas bandas fazem pedidos incomuns quando chegam, havendo até quem solicite escovas de dentes, prontamente, fornecidas pelo mini-mercado da mãe do fundador, a dona Florinda.
Aliás, a loja até já serviu de sala de concertos e cenário para vídeos para os Birds Are Indie e Sensible Soccers. Devem existir poucas famílias mais melómanas do que os Clemente.