Neste período de Estado de Emergência, as equipas de rua da Novo Olhar II continuam a dar apoio aos utentes? Estas pessoas não desapareceram apenas porque nos refugiámos dentro dos nossos lares…
É verdade. Nos 14 anos que também levo à frente do Centro Socio-Sanitário Porta Azul, na Marinha Grande, pude ver mudanças de paradigma nesta sociedade de consumos, de pobres e excluídos. Se, no início, nos chegavam prostitutas e toxicodependentes, neste momento, entra o idoso que ganha uma pensão ridícula por mês e que vai lá porque não tem outra maneira de comer um prato decente, entram os sem-abrigo que ocupam casas abandonadas e até entram as trabalhadoras sexuais que estão em apartamentos. O paradigma inicial daquela estrutura, para trabalhar com toxicodependentes e prostitutas, está muito longe do actual. Vão lá doentes mentais… e temos cada vez mais pessoas com duplos diagnósticos, além da patologia tóxica, têm também problemas mentais gravíssimos. Há esquizofrénicos, borderliners ou bipolares… É óbvio que estas pessoas não desaparecem porque foi declarado o Estado de Emergência e até estão mais vulneráveis do que anteriormente. Isto é uma coisa inédita. Ainda hoje fui aos Serviços Farmacêuticos dos Hospitais da Universidade de Coimbra e as técnicas farmacêuticas que lá estão têm pânico e desconhecimento na face. Quando tudo começou, tivemos directrizes para fechar o centro na Marinha Grande, mas não o fizemos. No concelho, a Associação Novo Olhar está a assegurar às segundas e quartas- feiras, das 10 às 13 horas, os serviços de higiene. Às terças e sextas, as equipas de rua, distribuem, no domicílio – alguns destes domicílios são casas abandonadas -, cabazes de alimentos, luvas, toalhetes, desinfectantes, máscaras, material de redução de danos e informação sobre a Covid-19 e medicação aos doentes com VIH e Hepatite B. Estamos a acompanhar 240 pessoas. Temos pessoas que vêm de Alcobaça e de Leiria e nos pedem apoio. Temos 200 utentes na Porta Azul e as equipas de ruas Santana, ajudam mais 200, e a linha SARA – Serviço Anónimo de Rastreio e Aconselhamento, que apoia trabalhadores e trabalhadoras sexuais, está a acompanhar 40 pessoas neste momento. Temos ainda duas linhas telefónicas de apoio, disponíveis 24 horas por dia, para a Porta Azul e equipas de rua Santana.
Os invisíveis da sociedade tornaram-se ainda mais invisíveis? Até agora contavam com apoio de vizinhos e conhecidos, mas estes fecharam-se e mantêm o distanciamento social.
Elas são a face da moeda que a sociedade preferiria não ter. Recordo-me de, há uns anos, falar com um presidente da Câmara da Marinha Grande, devido a uma notícia num jornal, onde falávamos da quantidade de sem-abrigo que havia no concelho e ele ficou indignado. Disse-me: “como é possível haver 40 indivíduos em situação de sem-abrigo na Marinha Grande? Não vejo ninguém quando passo.” Respondi-lhe que não via ninguém porque o conceito de sem-abrigo dele, provavelmente, seria muito restrito e ligado aos que dormem com as estrelas por cima. Tive de lhe dizer para ir dar um giro comigo, à noite, para lhe mostrar onde dormem. “Perto da Câmara Municipal, está lá uma casa antiga, depois dos semáforos onde vivem uns seis indivíduos.” A invisibilidade destas pessoas é o reverso da medalha do progresso. Ninguém quer ter estas pessoas, nesta pobreza extrema, à porta ou na sua autarquia. Há 45 anos que não vivíamos uma situação destas e as pessoas têm medo! Têm mais quando estamos a falar de quem tem comportamentos de risco, associados às toxicodependências ou falta de limpeza, por viverem na rua. O povo português é solidário, embora a Marinha Grande, por ser uma comunidade de gente trabalhadora, não aceite muito bem as toxicodependência e os rendimentos de reinserção, mas é certo que, na hora da verdade, muitos vão à Novo Olhar deixar alimentos, produtos de higiene e roupa, e ajudam os sem-abrigo, especialmente aos fins-de- semana, pois nós não damos apoio nesses dias… mas essas pessoas estão assustadas. A solidariedade, agora, é para si e para os seus. Não diria que os invisíveis estão invisíveis. Estão mais visíveis, mas menos apoiados.
A Covid-19 é um vírus que faz engenharia social? Ataca os idosos, os doentes, os excluídos. Limpa a sociedade dos menos válidos?
Já pensei nisso. Trabalho há quase 20 anos com reclusos e ainda é uma agonia sentir as portas a fechar e as chaves a rodar nas fechaduras. Hoje, estamos fechados nas nossas casas, mas muita gente não terá casa para estar confinado ou, tendo-a, ela não será das melhores para se estar fechado este tempo todo. De facto, está a haver uma limpeza na sociedade. O ser humano abusou dos consumos que fez, abusou dos recursos, abusou do planeta, abusou dos mais fracos e isto criou um excedente humano que é mais vulnerável ao coronavírus. Sempre que vejo notícias sobre a Índia, aflijo-me. Aquilo é uma bomba relógio. O vírus meteu-nos perante a urgência de pensar todo o nosso comportamento ao cimo da Terra. O Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD) e a Comissão Nacional de Luta Contra a Sida, há 20 anos, que só querem saber de dados. Só querem dados, dados, dados. Número, números. Se não alcançarmos os números, no ano seguinte, cortam-nos o orçamento. Mas se conseguirmos fazer com cinco, também conseguirmos fazer com quatro. Há uma enorme falta de respeito para connosco, os técnicos, que estamos meses sem receber, porque a DGS está em articulação com a Santa Casa da Misericórdia e são os Jogos da Santa Casa que pagam alguns destes projectos. Como em Janeiro, fazem a avaliação do ano transacto, nós não recebemos. O mesmo se passa com os utentes; se não tivermos dinheiro para comprar leite, não o podemos comprar. Temos de reinventar muitas coisas todos os dias mas, sem ovos, não se fazem omeletas. Em cima da mesa, está sempre uma questão economicista. Estamos a lidar com seres humanos que sofrem!
Mesmo com tantos avisos, ainda há, no público quem corra riscos, desvalorizando o impacto que pode ter na vida dos outros. Como se explica isto?
Vivemos numa sociedade tão informada e desinformada ao mesmo tempo. Nunca houve um momento com tanta informação, contra-informação e falsas notícias. Temos de ter muita cabeça e bom-senso para fazer uma triagem naquilo que ouvimos e lemos. Nos grupos de Whatsapp e Messenger estamos a receber porcarias a toda a hora e precisamos de discernimento para escolher o que realmente interessa. Os jovens, por exemplo, têm um acesso privilegiado à informação pela internet e custa-me que os miúdos ponham as suas vidas em risco após saberem todas as indicações dadas sobre a necessidade distanciamento, sobre o perigo de contágio. Perdoo mais facilmente aos meus utentes, que têm a cabeça muito ‘frita’, andarem a passar charros e garrafas, do que aos jovens que o fazem. É de uma irresponsabilidade e infantilidade tremendas. É falta de referências, é falta de tudo.
Da escola dos “betinhos” para as ruas frias
Fará 45 anos a 1 de Junho, Dia Mundial da Criança, numa data que sempre lhe agradou. Carlo Melo nasceu e cresceu em Coimbra, e estudou na Escola Secundária Dona Maria, actualmente classificada como um dos estabelecimentos públicos que atinge melhores resultados a nível nacional. “Era a escola dos ‘betinhos’ e eu sempre fui um bocadinho rebelde”, brinca. Depois disso, licenciou-se em Serviço Social, no Instituto Superior Bissaya-Barreto. Mais tarde, fez uma pós- -graduação em Economia Social, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Em 1994, recebeu um convite de João Guerra, um dos coordenadores do projecto Stop SIDA – Centro Laura Aires. “Eram equipas de rua, que percorriam as zonas de tráfico e consumo de drogas de Coimbra. Devido à minha ‘rebeldia’, o João acreditava que eu tinha potencial para ajudar aquelas pessoas, fazendo primeiros contactos, a trocar seringas ou a distribuir preservativos. E lá fui eu, com o João Guerra, a Joana Amaral Dias e o João Rodrigues. Eles estiveram na base da construção da Associação Novo Olhar, em Coimbra, em 1994.” Carlo sentiu que podia ajudar os outros e tomou o gosto pela missão. Em 2000, foi formada a Associação Novo Olhar Leiria – Marinha Grande. “Desbravámos as ruas de Leiria; as zonas perto da Rodoviária, de mochila às costas com kits de seringas e preservativos”, recorda. Ainda passou com idosos, reclusos e “adictos em abstinência”. “Não gosto da expressão ex-toxicodependentes.” Foi eleito presidente da Novo Olhar II há três anos. É também coordenador do Centro Socio-Sanitário Porta Azul.
Na edição da semana passada, o JORNAL DE LEIRIA dava conta de que há prostitutas que continuam a trabalhar e que não usam protecção.
Estamos extremamente preocupados. Existe prostituição de vários tipos: a de rua e estrada onde a prostituta faz algum dinheiro, vai drogar-se e volta para a rua. Fá-lo pela droga. Temos a prostituição de luxo… temos todos os tipos de prostituição, da que vai dos 20 aos 30 euros na rua, a valores superiores numa casa, depende dos serviços que as meninas ou os meninos prestam. Mas a todos é transversal uma coisa: se não trabalharem, não há dinheiro. E ainda há o proxeneta, que recebe parte do dinheiro e que paga o apartamento, a comida, a água e luz. Se a fonte de rendimento não trabalhar, ele terá de reinventar o trabalho. Esses indivíduos sem escrúpulos, que tratam estas prostitutas, que não têm rede de apoio, que são estrangeiras, especialmente brasileiras, romenas e portuguesas, como carne para canhão, voltam-se para outro tipo de clientes; alcoolizados, com problemas psicológicos, que querem sexo sem preservativo, porque acham que incomoda a erecção e a virilidade, e, desde sempre, dão mais dinheiro por sexo sem protecção. Na associação, temos feito um trabalho contínuo, a dizer às utentes que a vida delas vale mais do que 20 euros. Elas respondem que não têm dinheiro. Temos levado cabazes de alimentação a algumas porque não já têm comida. Tentamos travar isto com informação, com apoio e apelos ao bom-senso. Mas elas estão em casa com os proxenetas e são obrigadas a prostituírem-se sem protecção. Isto vai provocar um retrocesso no trabalho de décadas no combate à SIDA e às hepatites.
A manter-se o panorama actual, esses problemas de falta de trabalho e de comida na mesa, voltarão ao quotidiano dos portugueses. Prevê tempos especialmente difíceis?
Estamos numa situação que vai ter repercussões dantescas na economia, na família, no bem-estar e na sociedade. Prevejo uma série de mudanças extremamente bruscas. O desemprego vai explodir. Há empresas que já não conseguem pagar ordenados. Ninguém sabe quando as coisas voltarão à normalidade. Haverá pessoas em situações delicadas a procurar-nos. Quando a crise da Covid-19 passar, muitos estarão num desespero tremendo, com uma mão à frente e outra atrás.
É possível voltar ao “normal”, com livre circulação de pessoas e de bens, com a vida como era dantes?
A espécie humana tem uma enorme capacidade de dar a volta às coisas. Em África e no Médio Oriente as coisas são, eram e serão ainda mais catastróficas, mas nós já passámos pela I Guerra Mundial, pela II Guerra Mundial e estamos a viver a III Guerra Mundial. Apesar de estarmos entrincheirados em casa, é um conflito invisível e sem trincheiras e iremos dar a volta a esta pandemia. Não gosto da palavra “normalidade”, mas acredito que voltarei a abraçar quem me é querido, embora agora não o possa fazer. Há três semanas que não abraço a minha mãe. A minha tia, hoje, fez anos e ela chorou quando fizemos uma vídeo-chamada… sei que as voltarei a abraçar. Sei que as relações vão mudar e que os nossos comportamentos também, mas voltarei a abraçar