Com o País inteiro a preparar-se para dar respostas ao ensino à distância e com o primeiro-ministro, António Costa, a garantir publicamente que nenhum aluno “ficará para trás por não ter acesso a computadores e internet”, há, no concelho de Porto de Mós, dezenas de jovens que irão, na prática, ficar para trás.
Não é caso único em Portugal, mas São Bento é paradigmático de um Portugal que, por questões de auto-regulação de mercado e ausência de política de serviço público no acesso às comunicações, aprofunda cada vez mais o fosso social nas zonas de interior.
A pandemia deixou à vista uma situação que, há décadas, se verifica em mais de 20 aldeias do concelho, mas que, no caso de São Bento, se estende a mais de 90% do território.
Ana e Teresa são duas alunas do 2.º Ciclo que, todos os dias, têm de ir a casa de um vizinho, que pagou do seu bolso amplificadores de rede e antenas direccionais, para usar a pouca rede GPRS que ali chega, para descarregar o material de estudo.
É um demorado processo, que não lhes permite aceder às aulas por vídeo. Ana e Teresa têm sorte. O vizinho não se importa de pagar do seu bolso os dados extra necessários para o ritual diário.
Outros jovens vivem na escuridão tecnológica, sem aulas, desde a sexta-feira, 13 de Março, data do início do confinamento, devido à pandemia de Covid-19.
É uma freguesia inteira quase sem telefone fixo, praticamente, sem rede de telemóvel e muito menos banda larga, para descarregar os pesados vídeos e conteúdos enviados pelas escolas.
“Temos um terminal de fibra da Meo no centro da aldeia, mas é só para as empresas, que têm de pagar a ligação desde o local onde estão até lá e há uma antena de telemóvel da Meo, mas está orientada para o Multibanco, no centro de São Bento”, diz o presidente da Junta, Tiago Rei, que lamenta que as pessoas fiquem para trás nas prioridades das operadoras, especialmente, quando já existe infra-estrutura instalada.
O JORNAL DE LEIRIA questionou a Altice/Meo, NOS e Vodafone sobre a ausência de acesso das crianças e jovens à internet, mas apenas a primeira, que adquiriu a Portugal Telecom, respondeu.
“Actualmente a freguesia dispõe de uma cobertura de rede 4G muito próxima dos 100%, o que permite viabilizar o acompanhamento das aulas online por parte da comunidade escolar da região”, considera a operadora. População e autarcas dizem que não é verdade e que bastaria visitar a freguesia para o verificar.
Em Novembro, um grupo de moradores enviou uma carta à Assembleia da República e à Comissão Europeia alertando para a discriminação das crianças de São Bento, face às que vivem a apenas sete quilómetros noutras freguesias.
Os vizinhos da freguesia de Serra de Santo António, Alcanena, têm acesso a telemóvel e internet pelas três operadoras. “Recebemos respostas politicamente correctas, mas o resultado foi nada.” Também foi feito um abaixo-assinado às operadoras com a mesma resposta.
Entretanto, o agrupamento escolar de Porto de Mós informou os pais que deveriam ir levantar um hotspot da NOS, uma rede que, garantidamente, não tem cobertura no território, para aceder às aulas online. Tiago Rei questionou a vereadora da educação, Telma Cruz, que lhe respondeu “foi o que nos deram”.
“Pouco depois fui contactado pelo agrupamento de escolas que me informou que nem sabiam que não havia rede de telemóvel aqui”, conta o autarca.
O presidente da Câmara, Jorge Vala, assegura que o município está a fornecer em papel as aulas aos alunos que não têm acesso à versão online com um professor.
Entre 2020 e 2021, a Altice garante que fará um investimento que permitirá a “cobertura de fibra óptica superior a 80% da população do concelho, e mais de 95% da população na freguesia de São Bento”.
“Factor económico” é quem mais ordena
“O factor económico sobrepõe-se ao resto. São alunos que têm os mesmos direitos do que os outros”, refere Jorge Vala, que, por várias vezes, tentou intervir sem sucesso, junto das três operadoras Altice/Meo, NOS e Vodafone.
A explicação é sempre o baixo interesse comercial.
“Recebi, há dias, um e-mail da Altice a informar que 90% do concelho tem 4G. Isso é como dizer que tenho 95% com água canalizada e esquecer os 5% que não têm um bem essencial.”
São Bento, no coração do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros é um território condicionado, sujeito a regras de protecção da natureza.
Conta com cerca de 800 habitantes, muitos deles idosos e o isolamento que outros decidiram por si, ao negar-lhes o acesso ao mundo, baseados nas “leis do mercado”, irá baixar muito mais este número.
“Não há condições para captar novos habitantes, nem para manter os que temos e os jovens são obrigados a ir para a sede de concelho”, diz Tiago Rei, lamentando ter poucos eleitores e que o serviço público ali não chegue.
Para onde foi a responsabilidade social?
Jorge Vala recorda que o anterior Executivo municipal acordou com a Vodafone, ao abrigo de um protocolo de responsabilidade social, a instalação de banda larga no concelho e nas aldeias da serra.
“Já com o documento assinado na mão, a Vodafone não cumpriu. Colocou uma antena que nem 2 G deve ser na Barrenta e, quando os contactei, após assumir o cargo, disseram-me que ‘cobrir aquele território não é vantajoso comercialmente’. Sugeriram-me que a autarquia pagasse 35 mil euros para equipamentos. A Câmara não pode subsidiar o lucro das operadoras.”
Feitas as contas e promessas aparte, todo o território de São Bento e parte de Alqueidão da Serra e Arrimal ficaram de fora do século XXI, da banda larga e da rede de telemóvel.
O JORNAL DE LEIRIA questionou as três operadoras sobre a ausência de acesso das crianças e jovens à internet, mas apenas a Altice respondeu. Leia o comunicado, na integra, em baixo.
“Em primeiro importa referir que o investimento da Altice Portugal é privado, voluntário, autónomo e não tem qualquer comparticipação de entidades públicas ou instituições europeias. Por outro lado, são diversas as regiões do País, principalmente as mais desfavorecidas e desertificadas, em que apenas a Altice Portugal decidiu fazer investimento em redes de fibra óptica, nunca tendo sido secundada por mais nenhum investidor privado do sector.
No que respeita à cobertura de rede na freguesia de São Bento, a Altice Portugal esclarece que actualmente a freguesia dispõe de uma cobertura de rede 4G muito próxima dos 100%, o que permite viabilizar o acompanhamento das aulas online por parte da comunidade escolar da região. No que respeita a fibra óptica, a Altice Portugal é o único operador que garante actualmente cobertura de rede na região, abrangendo mais de 70% da população do município de Porto de Mós. Este é um investimento que prevê novas vagas, ainda em 2020 e 2021, que permitirão uma cobertura de fibra óptica superior a 80% da população do concelho, e mais de 95% da população na freguesia de São Bento.
A Altice Portugal mantém a sua ambição de cobrir tecnologicamente o País com fibra óptica de última geração, pretendendo atingir mais de 5,3 milhões de lares e empresas com vista a contribuir para o desenvolvimento de regiões que têm sido esquecidas por outros.
Importa uma vez mais realçar o carácter totalmente voluntário deste investimento unilateral e privado protagonizado indistintamente em todo o território nacional pela Altice Portugal, sendo impraticável a responsabilização da única entidade que tem activamente levado a esta e a outras regiões do nosso País soluções, através de investimento seu, sem qualquer comparticipação do Estado ou Europa, que contribuem para a igualdade de oportunidades e para dinamização das economias locais.”