O dia 17 de Junho de 2017 dificilmente será apagado da memória dos portugueses.
No pacato concelho de Pedrógão Grande a data nunca será esquecida.
O incêndio que deflagrou há três anos em neste concelho do norte do distrito de Leiria e que alastrou a concelhos vizinhos provocou a morte de 66 pessoas e 253 feridos, sete dos quais graves, e destruiu cerca de meio milhar de c asas e 50 empresas.
Mais de dois terços das vítimas mortais (47 pessoas) seguiam em viaturas e ficaram cercadas pelas chamas na Estrada Nacional (EN) 236-1, entre Castanheira de Pera e Figueiró ou em acessos àquela via.
Três anos depois a EN 236-1 tem as faixas de gestão de combustível limpas.
Tudo parece normal, não fossem os pequenos ramos de flores deixados em homenagem a quem perdeu a vida.
Em muitas zonas do IC8 está-se agora a proceder à limpeza das bermas, mas olhando para toda a floresta de Pedrógão Grande, sobretudo, e dos seus concelhos vizinhos, verifica-se que pouco se aprendeu com a tragédia.
A Comissão Técnica Independente, que avaliou os factos relativos aos incêndios de Pedrógão Grande, Castanheira de Pera, Ansião, Alvaiázere, Figueiró dos Vinhos, Arganil, Góis, Penela, Pampilhosa da Serra, Oleiros e Sertã, deixou sugestões que se deveriam aplicar na reflorestação.
“Das estratégias de prevenção destacam- se alguns princípios de silvicultura que se relacionam directamente com a gestão de biomassa florestal. As tipologias ‘mosaico’ e ‘rede primária de faixas de gestão de combustível’ devem ser trabalhadas nessa perspectiva”, lê-se no documento elaborado por vários especialistas.
Segundo refere o relatório estas opções, entre outras, “passam pela promoção da compartimentação das manchas florestais puras através de plantações novas, ou reconversões, ou ainda adensamentos, com outras espécies arbóreas ou arbustivas, nas redes de defesa da floresta contra incêndios ou em manchas mais alargadas a elas associadas”.
Domingos Xavier Viegas, um dos espec ialistas responsáveis pelo relatório, admite ao JORNAL DE LEIRIA que “houve algum trabalho na EN236, no IC8 e na vegetação junto às casas”.
Uma situação “que ac abou por melhorar um pouco por todo o País”. “O que se nota de diferente é a gestão da floresta nas áreas ardidas , com árvores queimadas e a regeneração do eucalipto. Passados três anos, boa parte da região exibe matagais, que podem resultar numa situação complicada”, alerta.
O também director do Centro de Estudos sobre Incêndios Florestais (CEIF) da Associação para o Desenvolvimento da Aerodinâmica Industrial sublinha que a “regeneração foi completamente desordenada”, verificando- se “a proximidade de árvores e de ramos, o que resulta numa vegetação quase impenetrável”.
[LER_MAIS]A falta de ordenamento é “uma falha” de quem gere a floresta, aponta Domingos Xavier Viegas, que considera que o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e o Governo não estão isentos de culpas. “O ICNF tem a gestão estruturante e deveria dar indicação para se cumprir o que existe na lei e criar descontinuidade no coberto florestal para, perante um incêndio, conseguir travar” as chamas. A falta de ordenamento florestal deve-se também “à falta de vontade política”.
“Dizer que não há recursos não pode ser desculpa. A União Europeia disponibiliza recursos financeiros para estas situações, que depois não são aproveitados. Há falta de organização e vontade para cuidar destes aspectos”, critica o docente.
Domingos Xavier Viegas considera ainda que “há desleixo” do ICNF, que “deveria encontrar rec ursos para assumir” a gestão florestal, até porque é uma inter venção de “alguma envergadura”.
“Infelizmente na floresta acontece tudo muito lentamente e demora anos, por isso é necessário alguma resiliência no trabalho. Têm saído leis de reorganização do ICNF, mas os efeitos práticos não são visíveis”, acrescenta.
No terreno são visíveis a proliferação de espécies invasoras e do aparecimento de eucaliptos, ainda jovens. Domingos Xavier Viegas explica que “quando há incêndios sucessivos, aparecem espécies invasoras, como as acácias, que vão tomando o lugar de outras espécies que estavam naquele local, como as autóctones”.
Perante este cenário, o especialista não tem dúvidas que uma nova tragédia “é um risco real”.
“Vai voltar a surgir um novo incêndio só não se sabe quando. Agora, uma tragédia como a de 2017 com aquelas mortes não se pode deixar que volte a acontecer.”
Domingos Xavier Viegas acredita que o País está “melhor preparado” e terá uma “maior capacidade de resposta”, mas ainda “não há homogeneidade em todo o país e os recursos não existem em toda a parte”.
Perigo à espreita
A população que vive nas freguesias que foram fustigadas com o incêndio contam que o medo de uma nova tragédia continua presente.
“Eu tenho os meus terrenos todos limpos, mas os vizinhos não o fazem. Se houver um incêndio vai tudo”, explica um dos moradores. Um dos problemas continua a ser a desertificação. Muitos terrenos e habitações são de habitantes que não moram no concelho. “Só aparecem para vir passar férias ou aos fins-desemana e não estão para ter trabalho na limpeza dos terrenos.” Por outro lado, os idosos “não podem fazê-lo nem pagar a quem faça”.
Perante estes cenários, o perigo está à espreita. Disso também não tem dúvidas Augusto Arnaut, comandante dos Bombeiros de Pedrógão Grande, que é um dos arguidos do processo do incêndio, que está no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) de Leiria.
“Não aprendemos nada com o que aconteceu. O desordenamento continua igual ou até pior. Houve cortes de árvores para venda, mas as outras caíram e ainda estão no chão. Há mais carga e maior inflamação”, lamenta o comandante.
Passaram-se três anos, mas as memórias do fogo continuam bem presentes na memória de Augusto Arnaut, que confessa lembrar-se muitas vezes dos acontecimento quando tenta adormecer.
“São coisas que nunca se esquecem. Esta é uma situação que perdurará até morrer.” Além do desordenamento florestal, o comandante teme ainda pela falta de meios, que são cada vez mais escassos. “Tenho 36 homens no quadro de reserva. Há muito desemprego e as pessoas vão procurar trabalho noutros locais e deixam de ter disponibilidade para os bombeiros. O Município apoia com o socorro, mas não consegue fazer muito mais”, diz Augusto Arnaut.
O comandante considera que o um dos problemas é o ordenamento do território e facto de se ter deixado construir no meio da floresta.
“Em 2018, estive em França numa formação e verifiquei que têm faixas de contenção e não há casas no meio da mata. É um bom exemplo, mas não é a nossa realidade. A nossa prioridade são sempre as pessoas e os seus bens e, por vezes, perde-se, por isso, oportunidade para travar o fogo.”
Ricardo Vicente, engenheiro agrónomo e deputado eleito pelo círculo de Leiria do Bloco de Esquerda, reuniu- se na segunda-feira com a presidente da Câmara de Castanheira de Pera.
“As nossas preocupações são várias. Os incêndios de 2017 provocaram estragos que estão muito longe de estar ultrapassados. Muitas áreas florestais foram devastadas e muitas habitações destruídas. Se em relação às casas a situação parece estar razoavelmente resolvida, o mesmo não se passa com a floresta”, adianta ao JORNAL DE LEIRIA Ricardo Vicente.
Segundo o engenheiro agrónomo, “a paisagem está a ser retomada por eucaliptos e a floresta está ainda mais desordenada”. Se cada eucalipto “der origem a cinco ou seis, daqui a pouco tempo teremos muitos mais”.
“Na floresta continua tudo por fazer. Os planos regionais de ordenamento florestal devem ser regulados. A proliferação do eucalipto tem de deixar de ser prioritária e os proprietários e as entidades devem ser obrigados a diversificar a sua cultura”, avisa o Ricardo Vicente.
Limpeza, mas com critério
O deputado afirma ainda que por parte dos proprietários privados não está a ser aplicada a variedade na gestão florestal, acabando por se substituir as espécies autóctones, criando uma mata sem resiliência.
“Não há uma política pública para alterar esta situação e evitar que a tragédia se volte a repetir. As acácias estão a ganhar mais terreno do que outras espécies, o que é normal, quando nada é feito.”
Relativamente à limpeza, Ricardo Vicente defende que as pessoas “devem ter auxílios para as suas tarefas no cumprimento da gestão da faixa de combustível”.
“Existe legislação que obriga à gestão de combustível, mas a limpeza não pode ser feita sem critério e sem conhecimento ecológico. Não é preciso cortar tudo. Os cortes devem ser selectivos, eliminando o que não interessa e preservando a biodiversidade. A situação actual é cega. A limpeza total acaba por favorecer o aparecimento de plantas invasoras.”
Ricardo Vicente visitou, em Castanheira de Pera, a ribeira, que foi requalificada ao longo de 12 quilómetros para sul.
“Só houve intervenção onde foi alvo de incêndio. A zona norte não sofreu obras. No Inverno, a ribeira foi alvo de uma enxurrada e o Município não tem meios para uma intervenção de limpeza e de reparação. Foram disponibilizados meios para o município fazer a requalificação da zona sul, mas não se pensou na sua manutenção. Vamos colocar a questão ao governo”, afirma.
Segundo o deputado, “houve muita gente nesta região que perdeu tudo o que tinha e agora deparam-se com uma crise pandémica, com consequências que ainda se está a avaliar”. “Estas pessoas estão mais frágeis do que anteriormente aos incêndios e é preciso uma atenção especial.”
O JORNAL DE LEIRIA contactou os Municípios de Pedrógão Grande e de Figueiró dos Vinhos, mas não obteve resposta até ao fecho da sua edição.