Que respostas a arquitectura tem para um mundo condicionado por vírus?
Mal estaria o mundo se nós daqui para diante tivéssemos de viver sempre em confinamento. Esse cenário parece-me um pouco dantesco ou catastrófico. Por outro lado, as transformações das cidades e do habitar e das casas são processos lentos, não se transforma uma cidade de um dia para o outro nem de um ano para o outro. O que acho – e isso é mais importante – é que há uma mudança de mentalidade. Este confinamento forçado já está a ser muito mal tolerado, estamos a assistir a reacções violentas de desconfinamento. O que muda claramente é a percepção das pessoas em relação às limitações da pandemia. E as limitações são muito grandes e muito graves. As pessoas que são forçadas a viver em casa começam a descobrir coisas das próprias casas onde vivem, que no seu dia-a-dia não se tinham dado conta. Algumas coisas são boas e outras são más.
Será necessário repensar a organização das cidades?
Claro que sim. Mas esse pensar da organização das cidades – e até das próprias casas – é um movimento que já vem de trás e já vem claramente antes da pandemia. E podemos falar da importância dos arquitectos nessa mudança. Repare como, sobretudo a partir dos anos 90 e sobretudo a partir da Expo, que é o ano 98, a Expo de Lisboa, de repente as pessoas, mas não só, as próprias autarquias, os políticos, os governantes, um pouco por todo o lado, começaram a perceber como é importante as cidades disporem de espaços públicos vastos e qualificados. A influência da Expo 98 foi muito grande nesse aspecto. Percebeu-se que as cidades tinham potenciais que não estavam a ser usados e podiam melhorar imenso. E já nos anos 2000 surge o programa Polis. A Marinha Grande, por exemplo, tem uma requalificação de espaços públicos notável. Começa-se a desenvolver aí um movimento que vai crescendo cada vez mais. E obviamente esta qualificação do espaço público tem muito a ver com os projectistas dos quais os arquitectos estão no centro.
O próximo passo poderá ser um investimento maior em pequenos espaços verdes em zonas residenciais, em vez de grandes parques? Uma espécie de descentralização, desconcentração.
É uma questão de dispersão dos espaços verdes. Mas repare que por exemplo uma ciclovia é um espaço público muito importante que tanto pode atravessar a cidade como ir daí para fora. Tudo isso tem a ver com a forma de habitar. Um dos problemas do desconfinamento é que as pessoas ainda têm medo dos transportes públicos. Em Milão, quando começaram a abrir, perceberam que o número de bicicletas aumentou imenso. E houve uma adaptação, que se fez numa semana, porque se faz com uma pintura, que foi alargar as ciclovias em prejuízo dos corredores dos transportes públicos. Eu há pouco falava do longo tempo da cidade, mas há medidas de curtíssimo prazo que se podem também adoptar. Esta tendência que vinha de trás vai levar agora uma aceleração brutal. Mas não é por causa da Covid, é por outra razão, que também já vinha de trás, que é o facto de Portugal ter assinado o Acordo de Paris. Cria metas extremamente exigentes e rigorosas, por exemplo, até 2050 descarbonização total e a energia utilizada ser praticamente a 100 por cento energia renovável. Acabou de sair recentemente o documento que estrutura todas elas, que é o Acordo Verde [Green Deal] no Conselho Europeu. Quando se começa a esmiuçar todas estas estratégias vem-se por aqui abaixo e vai-se chegar à questão do espaço público, à questão da exigência de despoluir, de ter que interferir em tudo o que é transportes e mobilidades.
O modo como nos deslocamos entre cidades mas também dentro da cidade vai alterar-se.
Vai e fortemente. Mas esta transformação não é por causa da Covid, já vem de trás e vai ter de ser acelerada por razões políticas. O que é curioso é que vem ao encontro das descobertas, eu diria quase individuais, das pessoas. Há uma coincidência muito curiosa. Vem ao encontro de muitas das ambições das próprias pessoas depois do trauma da Covid. Esta vontade de sair de casa e ter um ar muito mais puro, sem poluição. Vai ter consequências enormes na construção.
Haverá uma pressão maior para reduzir a pegada ambiental dos edifícios e investir mais em construção sustentável?
Exactamente. Vai ter de ser. E por isso, na nossa candidatura [à Ordem dos Arquitectos] é um dos pontos mais fortes a necessidade, eu diria, de reciclar os próprios arquitectos e de [os] reeducar. Já há algum conhecimento mas vai ter de ser muito aprofundado porque vai ser um desafio muito grande. O mundo da construção é responsável por cerca de 40 por cento da produção de CO2, da pegada carbónica. Por trás da fabricação do cimento há emissões brutais de carbono. A demolição é um acto lesivo do ambiente. Cada vez mais se vai pender para reabilitar edifícios, reciclar materiais e mesmo na construção nova tentar evoluir para materiais com menor pegada ecológica.
Fala-se muito em Portugal na falta de qualidade térmica dos edifícios que habitamos e onde trabalhamos, mas imagino que na questão da qualidade do ar interior dos edifícios também há um caminho a percorrer.
E há muitos hábitos a mudar. A propósito da qualidade do ar, na altura do programa Parque Escolar estava em vigor uma norma [em] que era proibido abrir as janelas das salas de aulas. Tive dois casos de escolas em que bati o pé e disse: “não cumpro”. A norma dizia: “todos os espaços de aulas têm de ter ventilação mecânica”. É um absurdo total num País que tem uma estação intermédia que corresponde a metade do ano e que coincide com o ano lectivo, em que as condições térmicas se resolvem perfeitamente com uma ventilação natural transversal. Basta ter as janelas a abrir para não precisar de energia e condutas. Outra coisa que a Covid veio salientar: os prédios terem varandas generosas.
Espaços até de convívio com a vizinhança.
De socialização, mas também, para poder estar a apanhar sol. Que são fundamentais.
Concorda com programas de renda acessível, como estão agora a surgir, via alojamento local?
Sobretudo ao nível das autarquias principais, em Lisboa e no Porto, programas maciços que implicam investimento público mas também parcerias público-privadas, que no centro da Europa já se faziam há muitos anos e que em Portugal desapareceram. Com controlo de qualidade, com escolha de localização, muito deste programa de habitação acessível está a ser feito não em construção nova mas em reabilitação, o que é também bom porque os centros das cidades ficaram desertos. Um caso ainda hoje complicado é o centro histórico de Leiria, que é lindíssimo. Há uma entrevista muito interessante do ministro Matos Fernandes, publicada em Abril, em que ele anuncia os programas que resultam deste novo paradigma que vem da Europa. Estas medidas já estão a ser contempladas e parte dos fundos europeus vão ser investidos nisto. Não só para reabilitar o mundo da produção, mas [para] que a saída seja feita em condições que felizmente coincidem com o desejo das pessoas quando saírem da Covid, mas que, como digo, também já vinham de trás.
O teletrabalho e o ensino à distância podem acelerar o despovoamento dos centros urbanos e aumentar a pressão sobre as zonas rurais?
A crise de 2008, com o desemprego que gerou, teve um efeito muito curioso, além de ter aumentado a emigração, de gente jovem que resolveu voltar para o campo e até para sítios longínquos onde os pais tinham terrenos e tinham uma casa. E começar aí uma vida nova. É muito interessante o fenómeno porque essa vida nova tem uma sustentabilidade económica que é baseada no retorno, por exemplo, a uma produção agrícola, mas que não tem nada que ver com a produção agrícola dos pais e dos avós deles. O teletrabalho veio mostrar fundamentalmente que é possível mudar os hábitos do trabalho, dentro de certos limites. Não há nenhuma razão para que o sítio do trabalho seja no campo. As pessoas só não estão próximas do sítio onde trabalham porque as rendas são muito caras. Mas se não fossem caras não precisavam de viver no Montijo e trabalhar na baixa de Lisboa. Quero dizer que uma coisa é intensificar o teletrabalho, e a crise veio provar que o potencial do teletrabalho estava a ser sub-utilizado, outra coisa é um êxodo.
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Vamos ter habitações mais capazes de acomodar as actividades do trabalho, da escola, da actividade física e do contacto com a natureza?
Há programas desencadeados pela câmaras municipais através das SRU, que são as sociedades de reabilitação urbana, em que a ideia é pôr fogos disponíveis. Mas há normas para essas novas casas, quer de formatação dos edifícios, quer de tipologias das casas por dentro. Mas também lhe digo, já vinham antes da Covid. Por exemplo, uma das coisas, é dispor de varandas generosas, que até podem eventualmente ser fechadas no inverno e criar um buffer térmico para aquecer a casa, mas que ao mesmo tempo se podem abrir. Estamos a falar de habitações a custo acessível e controlado. E no caso de Lisboa dentro do próprio concelho, quer dizer, cidade compacta. Porque a cidade descarbonizada, a cidade do futuro, a cidade verde, a cidade com transportes e mobilidade e uso de energias renováveis, não vai ser uma cidade dispersa. O novo paradigma de cidade irá jogar a favor de uma densidade razoável. Há um livro muito interessante, que já saiu há uns anos, chamado O Triunfo da Cidade, que fala exactamente da miragem em que se podia viver num mundo de casinhas de baixa densidade e hoje percebe-se que esse mundo tem inconvenientes altíssimos, não só do ponte de vista da poluição, mas da proximidade – as pessoas precisam de proximidade. A cidade como fenómeno denso, de partilha e de convívio, não está em crise, em desaparecimento, antes pelo contrário.
“Este trabalho [de arquitecto] está reduzido à escravatura”
A profissão de arquitecto saiu muito fragilizada da última crise. Como vai ser agora?
O grande problema é a crise financeira que aí vem. Já está a ter impacto e vai ter sobretudo no desempenho da arquitectura que está em situação mais vulnerável. E há muita, infelizmente, sobretudo na gente nova, que tem estruturas mínimas.
Pequenos gabinetes ou pessoas que trabalham individualmente.
Há muita precariedade. E uma precariedade com efeitos de baixo para cima e de cima para baixo. Aceitam fazer trabalhos muitas vezes a custos que estão em dumping puro, em valores inferiores aos custos de produção. Qual é o efeito de baixo para cima? É que isto gera uma espécie de guerrilha, sobretudo com o modelo que hoje há de adjudicação dos trabalhos ao mais baixo custo [pelo Estado]. Há muita concorrência que está a funcionar neste mundo de desregulamento do mercado que o próprio Estado induziu. É terrível para quem tem outro tipo de ateliê mas também vai gerar precariedade em quem tem menos condições. Há dois indicadores positivos. Esta crise, apesar de tudo, tem uma luz que não é indefinida: eu diria que entre um ano e ano e meio estamos lá. A segunda coisa é que, de facto, quer o investimento público quer o investimento privado têm estado a dar sinais de uma atitude pro-activa em relação à crise. Estão a ser implementadas medidas que vão precisar de trabalhos de arquitectura.
Temos em Portugal demasiados arquitectos para um mercado que se tem vindo a reduzir?
Temos e esse é um problema complicado. É uma das questões que tem vindo a degradar o próprio ambiente do mercado. Há excesso de oferta. Tenho uma posição hipercrítica sobre toda a evolução do sistema de contratação pública da arquitectura e é um dos pontos centrais da nossa candidatura. O lema da nossa candidatura é “Isto só lá vai com todos”. Mas é mesmo com todos. E “com todos” quer dizer que temos de abrir portas. Não podemos pensar que é o tempo de dividir, temos de pensar que temos de abrir portas, derrubar barreiras. Primeiro, dentro do próprio mundo dos arquitectos. Porque, infelizmente, os que lá têm estado neste último mandato fizeram o contrário. Fecharam portas, criaram muros, dividiram a classe dos arquitectos e criaram uma espécie de relação privilegiada com uma clientela, utilizando inclusivamente métodos de fidelização de clientela, numa altura em que o que é preciso é o contrário. Este mundo de trabalhos de arquitectura não pode ser visto só ao nível da cidade, da região e do País, tem de ser visto ao nível da Europa e do continente. Qual é o problema da contratação pública? Estou a falar do Estado. É que o serviço da arquitectura cria mais-valias: melhoria do espaço público, da habitação, do território, etc. Estas mais-valias estão a ser completamente canibalizadas pelo encomendador, pelo promotor. Quer público quer privado. E cada vez mais o que resta para os projectistas, que são os intermediários para produzir esta mais-valia, são migalhas. Porque estão num sistema de adjudicação equivalente à contratação para comprar batatas.
Como é que se altera esse estado de coisas?
Abrindo canais directamente com o Governo, abrindo canais com a Assembleia da República, [aparecendo] com projectos construtivos. A nossa candidatura propõe-se não a abrir uma guerra, mas a abrir diálogo, diálogo fundamentado, com trabalho feito e estruturação. Há uma coisa fundamental na Ordem que é o apelo ao voto. Temos sido eleitos com taxas de abstenção gigantescas. A Ordem tem de ter voz activa e para isso tem de ter todos.
Está a defender honorários mínimos para prestação de serviços de arquitectura?
Não. Estou a defender a adjudicação com o custo justo do trabalho e da mais-valia desenvolvida. Não é uma questão só de preços mínimos. Propomos no nosso programa redescobrir a implementação de um sistema de cálculo do valor justo da adjudicação dos trabalhos da arquitectura. É um modelo informático que avalia o valor justo a partir dos custos de produção. Não é uma tabela de cálculo de honorários.
Será suficiente para acabar com as práticas de dumping?
É um serviço que pode ser importante para no diálogo com o Governo explicarmos que a desregulação do mercado com base no custo mais baixo está a induzir em dumping. Os projectos de arquitectura têm vindo a pedir cada vez mais especialidades, mas ninguém fez o cálculo do custo disto. Do ponto de vista da remuneração, este trabalho está reduzido à escravatura, praticamente, está reduzido a um mercado desregulado que está a provocar um mercado de precariedade, um mundo de insustentabilidade, sobretudo, nos arquitectos mais jovens e nos arquitectos mais vulneráveis. E a Ordem tem obrigação de se bater.
Há um défice de representação da arquitectura na sociedade e junto dos órgãos de decisão?
É pior do que isso. Há um decréscimo estatístico, claramente, que é contabilizável, de perda da presença da arquitectura, de perda da relevância da arquitectura junto até dos canais importantes, por exemplo, quando são tomadas decisões ao nível do planeamento territorial, dos programas da habitação. O próprio Governo já devia estar preocupado.
Perante esse diagnóstico, sentia-se desconfortável sem concorrer à liderança da Ordem?
Vou-lhe dizer: fui vítima de assédio para ser concorrente à Ordem, [de] uma série de amigos e colegas. Essa pressão existiu e eu fui sempre dizendo não. Mas a verdade é que a pressão aumentou tanto que eu disse: “OK, vamos embora”. Mas com uma condição: isto é um projecto colectivo. Isto para dizer que se ganharmos as eleições, de facto, quando dizemos todos, são todos, até os que perderem as eleições.
São Pedro de Moel: “É preciso ter atractivos”
Como olha para o momento de São Pedro de Moel, uma praia com que tem uma ligação tão forte?
Felizmente, São Pedro de Moel cada vez tem mais gente a habitar todo o ano. O grande problema de São Pedro de Moel, que se traduz depois na piscina, no hotel, e em muitas outras coisas, a grande questão é económica e financeira, é o grande problema de uma povoação que depende de uma economia sazonal, que tirando a praia não tem muito mais para oferecer. Mas é aqui que é preciso apontar estratégias. Se conseguirmos passar de dois meses para quatro meses já é um passo em frente, se conseguirmos passar para seis meses, já é um passo em frente, se conseguirmos passar para o ano inteiro, temos São Pedro vivo. É muito difícil chegar lá, mas há algumas linhas, uma delas é perceber que hoje em dia estes fenómenos não estão localizados num ponto mas funcionam muito em rede. São Pedro fazendo rede com Marinha Grande, matas nacionais, Vieira, Nazaré, Paredes, Pedra do Ouro. Agora, há pequenas âncoras. O projecto que se fizer na piscina não pode ser igual ao que lá está, tem de ter outras valências. Tem de pensar numa piscina como a de Pataias, por exemplo, que funciona o ano inteiro. E pode ter, se calhar, alguns apartamentos à volta mas era bom que tivessem uso o ano inteiro, portanto, podiam estar ligados a esta questão da vivência da terceira idade ainda com qualidade de vida. A estas terras que têm o problema da sazonalidade eu costumo chamar cidades-esponja. A questão é como se transforma uma cidade-esponja numa cidade normal. Para isso é preciso ter atractivos. É conseguir ter usos que possam chamar pessoas para além da estação balnear.