O cidadão português é um ser de hábitos e os hábitos, bastas vezes, podem ser contraproducentes.
Um dos mais curiosos e frequentemente apontados pelos visitantes estrangeiros é o facto de, tendo um clima agradável e convidativo para a vida ao ar livre, nos enfiarmos dentro de centros comerciais climatizados com ar condicionado.
Noutros países, menos mimoseados pelos beijos do astro-rei, qualquer raio de sol é utilizado para estender uma manta na relva, a fim de se tomar uma refeição, conviver, ouvir música ou ler um pouco. Parece, no entanto, que a pandemia de Covid-19, pela força das regras de segurança e de distanciamento físico a fim de evitar contágios, veio alterar um pouco o panorama.
De modo a salvaguardar empregos e empresas de restauração, ao mesmo tempo que se protege os cidadãos, as autarquias estão a criar novas zonas verdes e a permitir o alargamento do tamanho e a criação de esplanadas na via pública, a maior parte das vezes, sem quaisquer custos para os cafés e restaurantes.
O consenso é que a distância entre pessoas, fora dos espaços fechados impede a contaminação pelo coronavírus.
Mas será assim tão fácil e simples? Talvez não.
Esta segunda-feira, a Câmara de Leiria anunciou a instalação de mesas e bancos ao longo do Percurso Polis, a criação da Avenida Cultura Urbana na Avenida Heróis de Angola com alargamento de passeios, instalação de floreiras e arte urbana, no âmbito do programa Reflorir Leiria.
O objectivo é alargar o espaço público, sem taxas extra até ao final de 2020, de modo a que os cidadãos possam manter o distanciamento físico e, em simultâneo, regressarem à “nova normalidade” possível, dentro das limitações instauradas pela Direcção-Geral de Saúde, e compensar as mesas e cadeiras assim reduzidas nos estabelecimentos.
Ao Reflorir Leiria aderiram já 61 estabelecimentos de bebidas e restauração, não apenas em Leiria, mas em todo o concelho. “Temos de preparar a cidade para um ambiente onde o vírus convive entre nós, mas temos de manter a nossa actividade”, referiu, na sessão de apresentação, o presidente da Câmara Municipal de Leiria, Gonçalo Lopes, defendendo a necessidade de criar uma cidade segura no contexto Covid-19.
“Este investimento, embora seja rápido, táctico e emergente, tenta manter a coerência estratégica que temos seguido em Leiria”, indo ao encontro das boas práticas das cidades modernas, sublinhou.
O autarca explicou ainda que as acções serão adoptadas este ano e em 2021, com um orçamento controlado. Leiria vai ainda investir no programa de embelezamento Reflorir as Esplanadas, na instalação de Esplanadas Fitness, na limpeza de graffiti, instalação de mobiliário urbano ao longo do Polis – mesas com bancos e papeleiras -, e o reforço do acesso às redes wifi.
“Os clientes dizem que estão a gostar, que as esplanadas estão mais bonitas, mais confortáveis e maior privacidade”, avalia Carlos Dinis, proprietário do Praça Caffé, na Praça Rodrigues Lobo.
O espaço, mesmo com o alargamento de área de esplanada, teve de reduzir a limitação e retirar sete mesas do exterior.
“Um dos desafios que temos, quase diariamente, é ter de explicar às pessoas que existe uma lotação por mesa. E não são apenas os jovens. Há pessoas mais velhas que querem juntar as cadeiras para estarem com mais seis ou sete amigos, como antigamente. Há quem não compreenda e que diga que somos ditadores, mas são as regras da DGS.”
“Somos todos da mesma família”
Ana Silva, médica coordenadora do programa de Vacinação e responsável pela Consulta do Viajante em Leiria, é conhecida no meio por ser uma pessoa pragmática.
E a visão desta profissional de saúde é de que as esplanadas com mais espaço entre mesas – medida que aprova e defende – não resolvem nada.
A braços com centenas de testes por dia, por suspeita de contágio, a profissional de saúde é peremptória.
“A experiência que temos tido nos últimos dias mostra que essas medidas de distanciamento não resultam. Basicamente, porque as pessoas não querem seguir regras, não respeitam o espaço entre elas e não usam máscaras. É certo que há espaço suficiente entre as mesas de café para impedir que haja propagação de gotículas contaminadas por Covid-19. O problema é que o tamanho mesas é um metro quadrado e é comum ver quatro pessoas sentadas nelas e sem máscaras. Quando nós, profissionais de saúde, chamamos a atenção para tal, respondem: ‘somos todos da mesma família’. Obviamente, são pessoas que não fazem parte do mesmo núcleo familiar! Devem achar que somos tolos!”
Para que houvesse uma distância segura entre pessoas, a médica diz que os estabelecimentos de restauração teriam de juntar duas mesas de um metro quadrado e sentar um cliente em cada ponta, para evitar que a simples respiração e os aerossóis projectados na respiração, infecte a outra pessoa.
“Há dias, na sequência de uma denúncia, fui visitar um espaço onde se juntam jovens para estudar e estavam grupos deles sentados. Todos sem máscaras. Não me digam que vivem todos juntos e são da mesma família!”
Ana Silva diz que o desconfinamento deveria ter sido, para os profissionais de saúde, um momento de tréguas, onde pudessem respirar e recuperar [LER_MAIS]forças, contudo, não é o que está a acontecer. “A mensagem oficial foi muito clara: ‘desconfinamento com regras’. Mas constato que há muitos portugueses que não sabem o que são regras. A nossa liberdade termina quando colocamos em risco a saúde, liberdade e vida dos outros.”
Muitos dizem que a máscara incomoda e que não ouvem bem quando ela está colocada. Outros socorrem-se do argumento de que são asmáticos e não conseguem respirar, para justificar o mau uso deste equipamento de protecção.
“Se deixarmos, as pessoas vêm às consultas sem máscara. Ela incomoda? E os profissionais de saúde que têm de andar com elas o dia todo?”, argumenta.
São pequenos cuidados conscientes que não podem cair por facilitismo e por pressão de grupo, pois não há tratamento para a Covid-19, e, como cinco concelhos do distrito de Lisboa já sentiram na pele, as coisas podem voltar para trás.
Por fim, é preciso que esteja presente que as previsões mais optimistas para uma vacina têm esbarrado no desconhecimento desta nova infecção, prolongando no tempo a descoberta de uma cura eficaz.
“Ainda estamos na rampa de lançamento para chegarmos a uma vacina. Ainda nem sequer conseguimos perceber quanto tempo de protecção nos é dado pelos anticorpos e não sabemos que tipo de imunidade eles nos trazem. Quem já teve a doença e se curou não pode acreditar que agora está imune ao Covid-19”, remata Ana Silva