Em Janeiro foi escolhido para coordenar o grupo de trabalho a quem a Câmara incumbiu a tarefa de planear a estratégia de Leiria 2030. Aceitou o convite de imediato ou hesitou?
Hesitei. Pensei que, se era para fazer um plano estratégico nos modelos tradicionais, isso era tarefa para um sociólogo, um arquitecto ou um geógrafo e não para um professor de literatura. Só aceitei depois de conversar muito com o presidente da Câmara sobre o que se pretendia.
O que é que lhe foi pedido?
Pretende-se que eu seja capaz de ouvir, de falar com pessoas, de estar em debates, de colher ideias e, depois, escrever o resultado dessa reflexão, com ideias mestras para o desenvolvimento do concelho na próxima década. Exige-se de mim uma grande capacidade de ouvir, de estar calado, de interpretar as pessoas e de estudar documentos. Pareceu-me fascinante poder pegar em todas as ideias e informação recolhida, fazer uma síntese e projectá-la a dez anos. Estava longe de imaginar que daria tanta polémica.
Das críticas feitas à sua escolha, qual a que lhe custou mais ouvir?
Já lido muito bem com as críticas. Mas custa-me que as pessoas se agarrem a uma imagem de alguém sem se darem conta do tempo que passa. Não é justo que guardem no bolso a fotografia que tinham de mim sem cuidarem de saber qual o retrato actual. Já não tenho actividade partidária desde que sai de Leiria, em 2013, e nessa altura tinha pouca. Era presidente da Assembleia Municipal (AM). Não há, nos últimos anos, uma linha escrita por mim sobre questões de natureza politíco-partidária. Não se trata de uma travessia no deserto. Quem o atravessa, espera sair do outro lado para alguma coisa. Nem sequer é isso, porque não sou candidato a candidato a coisa nenhuma. É uma porta fechada. Ainda que eu tivesse alguma actividade partidária, isso em nada me diminuía o mérito profissional. Tenho uma carreira que fala por mim e um percurso que não preciso de defender em lado nenhum. É um bocado estranho que as pessoas olhem para isto de uma forma miudinha, embora perceba que a lógica do conflito político é essa.
Como está a desenvolver o trabalho?
Já ouvi pessoas de toda a natureza e dirigi convites, onde se incluem os líderes das bancadas da AM, os antigos presidentes da Câmara, com quem já falei, e os cabeças-de-lista ao Parlamento pelo distrito eleitos nas últimas legislativas. Já ouvi perto de 70 pessoas, mais de metade são os improváveis, aqueles que dizem que nunca ninguém os quis ouvir. Quero a opinião de pessoas que olham para a cidade andando no meio dela. Estas coisas costumam ser feitas ouvindo os institucionais, mas desses já sabemos muito do que pensam. Ouvi jovens arquitectos e professores do Politécnico que me deram ideias fantásticas.É de tudo isso que se vai fazer aquilo que vou escrever. Estou também a tentar obter a visão dos actores políticos.
Olhando hoje a fita do tempo, não terá sido imprudente ser mandatário de Walter Chicharro, nas eleições para a Federação do PS, ao mesmo tempo que aceitava o convite da Câmara?
Confesso que não pensei nisso. O convite de Walter Chicharro aconteceu antes do da Câmara. Se tivesse vindo depois, talvez tivesse declinado. Aceitei ser mandatário porque não sou de dizer que não e foi um gosto desempenhar as funções. Por outro lado, não era razão para recusar o convite da Câmara. Não vejo que as coisas sejam incompatíveis. Um mandatário é uma flor numa jarra. Nunca participei em acções de campanha. Já não tenho jeito para isso.
A que se deve esse fecho de porta à política? Desilusão?
Não é desilusão. Tudo o que fiz na política, como ser governador civil e presidente da AM de Leiria, deu-me prazer. Também fui autarca em Ourém e integrei alguns órgãos políticos. Nada me decepcionou. Vivo a vida por capítulos. O Dr. Laborinho Lúcio, o nosso senador mais senador que integra o grupo alargado responsável pela estratégia de Leiria 2030, dizia, quando integrou o Governo, que ‘estava’ ministro’. Ora, em todas as funções que desempenhei, também estive. Quando terminam, fecho o capítulo. Apenas fui professor. No resto, estive transitoriamente. Já não tenho muito jeito para retomar caminhos vividos. A mesma água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte.
O trabalho da estratégia Leiria 2030 está agora a começar, mas terá seguramente em conta o projecto Capital Europeia da Cultura 2027. Passaram agora cinco anos que foi anunciada a candidatura. Ficou surpreendido?
Confesso que fiquei um pouco. Não estava em Leiria e não vivi a transformação cultural que estava a acontecer. Por vontade própria, pus-me de fora. Queria ter a surpresa de regressar e de ver que a criança cresceu sem me dar conta.[LER_MAIS] Quando cheguei, vi uma transformação cultural profunda na cidade. Quando sai, havia O Nariz, o Te-Ato, o Festival de Música em Leiria, o Orfeão, a SAMP e pouco mais. Não tínhamos o Festival A Porta, o Entremuralhas ou o Há Música na Cidade, nem havia sete escolas de dança e tanta outra coisa. Leiria tornou- se num alfobre cultural prodigioso. Muita dessa transformação deve-se à acção do actual presidente da Câmara, enquanto vereador da Cultura, mas também dos agentes culturais e associativos. A Câmara deixou a cultura acontecer. Optou por a impulsionar sem a pilotar. Isto aconteceu sem que eu me tivesse dado conta. Por causa disso, fiquei espantado com a candidatura. Mas o meu maior espanto foi ver como é que o Paulo Lameiro conseguiu juntar 26 concelhos numa candidatura. Foi um trabalho notável. Eu não era capaz. Quer a candidatura ganhe quer não, já nada derruba o que está feito.
A par da cultura, também o Politécnico de Leiria sofreu uma transformação significativa.
Mudou completamente. O Politécnico de Leiria já merece ser universidade. Tem centros de investigação que produzem trabalho de qualidade superior ao que se faz em muitas universidades, bastante bem avaliados por peritos internacionais.
Se o merece, por que é que ainda não é universidade?
Porque isso mexe com muita coisa. Mexe com outros politécnicos, com as universidades, com ideias preconcebidas e com a vontade política. Eu estive do outro lado. Durante muitos anos, disse que este era um objectivo que não fazia sentido. Hoje, tenho a convicção profunda de que o Politécnico de Leiria merece ser universidade. É incontornável em Leiria. Se estamos a falar da estratégia para a próxima década, nada do que se projecte pode ser pensado sem o Politécnico.
Passaram 18 anos desde que deixou o Governo Civil de Leiria. O que sente por alguns dos problemas estruturais que a região tinha então, como a poluição da bacia hidrográfica do Lis e a situação precária da linha do Oeste, continuarem por resolver?
No caso das suiniculturas, que será um dos assuntos que terei de tratar nesta estratégia – não quero falar agora das soluções que vou apontar – houve falta de vontade, dos políticos, mas também dos actores no terreno. Tem de se encontrar uma solução. Leiria tem tudo para ser uma das grandes cidades do País, mas a questão ambiental destrói claramente a sua imagem. Basta uma sombra no sítio certo para nos tirar o luz do sol. A questão ambiental, sobretudo as suiniculturas, mexe, de facto, com a imagem de Leiria. Temos de ser capazes de a resolver, sem liquidar as suiniculturas, porque elas também pertencem ao tecido económico e empresarial do concelho.
No caso da Linha do Oeste, o que tem faltado?
Vontade política. Um dia irá perceberse que, se já tivéssemos mexido na Linha do Oeste há mais tempo, terse- ia evitado o actual entupimento da Linha do Norte. A ferrovia do Oeste é a única que, neste momento, permite mergulhar no coração de Lisboa, o Rossio. Também faria sentido pensar uma ligação das linhas do Oeste e do Norte nesta região. Perguntou-me como é que vejo o arrastar de problemas estruturais da região. Respondo: se não foi resolvido, vamos ter que resolver. Leiria sempre resolveu os seus problemas sem necessidade da intervenção do Estado. Se fosse possível fazer uma equação que relacionasse o desenvolvimento e a riqueza com a dependência do Estado, Leiria teria um saldo extremamente positivo. É aquela região que consegue ter maior desenvolvimento e riqueza com menor nível de dependência do Estado. Mas há problemas que não se resolvem assim e que dependem do Estado, porque, normalmente, estão associadas a fundos estruturais.
Já quando era governador civil, Leiria defendia a aviação civil na Base Aérea de Monte Real. É um projecto que faz, efectivamente, falta à região?
Durante muito tempo pensei que não fizesse falta, mas começo a pensar que faz. O mal de Portugal é ser especialista em fazer estudos. Já no tempo de Salazar se faziam estudos para o aeroporto de Lisboa. A solução já passou por alargar a Portela, construir na Ota, em Alcochete e agora no Montijo. Enquanto estudávamos, Espanha triplicou a área do aeroporto de Madrid e, hoje, parte do que seria o tráfego do outro lado do Atlântico para Portugal, deslocou-se para Madrid. Parece- me que ter aviação civil em Monte Real continua a fazer sentido. Tenho viajado muito e verificado o que são os pequenos aeroportos. Hoje, estas estruturas são uma forma de resolvermos a nossa vida com muito mais velocidade. Isto valia há três meses. Se continua a fazer sentido? Nem eu nem ninguém sabe. A vida vai mudar. Não sabemos o quanto, porque não sabemos o tempo desta pausa.
Só saberemos quando a vacina para a Covid-19 chegar.
Exacto. Uso uma metáfora para me referir aos tempos que atravessamos. Estamos numa viagem numa barca, como a de Noé. O dilúvio tem o nome de um bicho. Não sabemos onde estamos, nem quando ou onde vamos pousar. Olhamos à volta e não sabemos a situação da viagem. Sou optimista. Sei que vamos pousar. Só quando sairmos e olharmos para fora, podemos tomar as decisões certas. Muita gente vai perecer e todos temos de reaprender a viver.
O professor que fechou a porta à política
Terminou agora um trabalho de quase seis anos de tradução de Eneida, um dos maiores clássicos da literatura. Qual foi o principal desafio?
O grande desafio foi entrar naquilo a que nós, classicistas, consideramos território sagrado e vencer a resistência de me meter com Vergílio. Tenho a noção, e não sou só eu – vi recentemente que Frederico Lourenço, meu colega e amigo, tem a mesma opinião – que esta é a obra-prima da literatura ocidental. Meter-me com este texto é arrojado, ousado e perigoso. Ninguém penetra no sagrado sem o risco de sacrilégio. Depois, há o desafio de todos os dias, de esbarrar com uma palavra ou com uma frase para a qual se tem uma solução de significado, mas não do significante. O não conseguir encontrar as palavras certas para dizer o que lá está.
A poesia não é apenas palavras. Tem ritmos, sonoridades e musicalidade próprias que representam uma dificuldade acrescida para o tradutor. Como é que, neste caso, a contornou?
Como dizem os italianos, um tradutor é um traidor – ‘traduttore, traditore’. É verdade. Temos de assumi-lo. O melhor é, quando partimos para um trabalho desta natureza, ter consciência de que vamos trair o original. Depois, fazemos escolhas. De facto, é complicado, porque queremos manter a dimensão estética e a emoção do texto. E este, para uma epopeia, tem emoção a mais. Reproduzir a emoção e os sons, sabendo que a música do latim não tem nada a ver com a das línguas modernas, portanto, não se pode reproduzir, é dificílimo. Temos de adaptar à nossa musicalidade e depois escolher sempre a palavra certa. É um esforço permanente de se conseguir superar a si próprio.
Falou de Frederico Lourenço, outro grande tradutor de clássicos que se confessou “encantado” com a sua tradução Eneida. Depois da superação que o trabalho exigiu, ouvir estas palavras é...
Fico espantado, embora ele já tenha dito isso das minhas traduções de Ovídio. Houve um momento em que hesitei, porque soube que havia alguém em Lisboa com vontade de traduzir Eneida. Um dia cruzei-me como o Frederico e falei-lhe no assunto. Respondeu- me que não via razão para não o fazer, que não fazia mal haver duas ou três traduções do mesmo texto e que não conhecia ninguém capaz de fazer a minha tradução. Estas palavras de estímulo foram decisivas. Nunca na minha vida tinha feito algo tão difícil como a tradução de Eneida. É o desafio da minha vida. Acho que já posso morrer descansado.
Disse que o tradutor é um traidor, subscrevendo uma máxima italiana. É também um criador?
É impossível não deixarmos alguma coisa de nós numa tradução. Toda a emoção que está no texto, desde logo por Eneias ser uma figura espantosa. É um herói que não o quer ser, é filho de uma deusa, mas não assume essa filiação, foge do cumprimento da missão, mas vai cumpri-la e sabe que vai cumpri-la sem chegar ao fim, porque nunca verá nascer Roma. Tem também todas as características do antiherói. Eneias é uma pre-figuração de Augusto (Octávio), o primeiro imperador de Roma, o fundador do império. Não era propriamente magnânimo. Até chegar ao poder, foi implacável. Traçou friamente o seu percurso. Matou quem teve de matar, deixou cair quem teve de deixar cair. Desenhou metodicamente um caminho de ambição e de poder, um percurso de um homem frio com vista à conquista de um império. Esta junção dos dois – Augusto é Eneias e Eneias é Augusto – exige do tradutor uma consciência permanente do que está em jogo. Tenho a convicção de que este livro é a história do Ocidente.
De que forma?
Eneida é uma visão profética do Ocidente. É o desenho do primeiro grande império ocidental, a matriz de todos os impérios ocidentais, a história do império que funda a Europa. A Grécia é a inspiradora ideológica e cultural do Ocidente, mas quem desenhou a Europa foram os romanos. Isto é a nossa história. Ter consciência disto, mas não o poder dizer, porque não está escrito… Temos de intuir, de perceber e de ter sempre a noção de que o poeta só diz até onde quer e que não podemos ir mais além. Também foi por isso que pus poucas notas. Fazer o contrário seria estar a dizer aquilo que o poeta não quis dizer. Não tenho esse direito. O poema é assim. Às vezes, enigmático, outras vezes triste, outras modificador. Foi um exercício muito interessante. De alguma forma, realizei-me a encontrar o nosso passado. Todos nós temos muito de Eneias. Todos nós traímos, todos nós amamos, todos nós desistimos de alguma coisa, todos nós nos frustramos. E tudo isto está no livro.
A tradução de Eneida foi desenvolvida, em grande parte, durante o período em que esteve no Instituto Politécnico de Macau. Voltou do Oriente uma pessoa diferente?
Voltei. Já não sou a mesma pessoa, em tudo. Mudou a personalidade, mas também a visão que tenho do mundo e do País. O Eduardo Lourenço disse-me, várias vezes, que tinha de sair de Portugal para conseguir ver o País de fora para dentro. Hoje, percebo o que ele queria dizer. Olho o mundo de outra escala. Vivi num país [China] que, no futuro, será o maior do mundo. O contacto com a dimensão do mundo fez com que eu me apercebesse de que somos graozinhos. Senti que a Universidade [de Coimbra] de que tinha, e tenho, tanto orgulho em ser professor, passou a significar muito menos, porque conheci o mundo de outra forma. Depois, há o fascínio pela cultura chinesa.
O que mais o fascinou na China?
Não o regime, mas a China em si, com as suas contradições, as pessoas, a cultura, o imaterial, a filosofia, o culto do mérito, o respeito, que ao mesmo tempo se cruza com desrespeito, como o querer entrar no autocarro, com todos aos empurrões, e quem me empurrou e passou à minha frente, levantar-se e ceder-me o lugar, porque tenho cabelos brancos. Ou a jovem a quem dei duas horas de aulas e que me diz que sou o seu professor, porque na China há o entendimento de que professor uma hora, professor a vida inteira. Ler os ideólogos chineses antigos, como Confúcio, contactar com sabedoria milenar chinesa, perceber a capacidade que a China teve de construir a unidade do império ao longo de milénios, consciente de que é aí que está a raiz da manutenção da sua cultura…. Tudo isto me ensinou imenso. Não sou hoje a mesma pessoa, talvez por ter estado fora, talvez por parte desse tempo ter sido passado em solidão ou por andar permanentemente em viagem na China, por força da actividade do centro.
Conheceu a cidade de Wuhan, onde começou a pandemia?
Conheci e fico espantado com as barbaridades que se dizem de uma das cidades mais desenvolvidas da China, um exemplo de organização territorial e urbana, uma cidade lindíssima e moderna, uma smart city, com uma rede de transportes fabulosa e uma hotelaria fenomenal. E, depois tem o tal mercado. Mas será que não podemos fazer imagens dessas em Portugal?