A edição deste ano da Semana Europeia da Mobilidade teve como tema central Emissões Zero, Mobilidade para todos. Este é um objectivo utópico ou atingível?
Parece utópico, porque andamos há imenso tempo a falar em emissões zero e em mobilidade para todos e parece que continua tudo na mesma. Quando há 24 anos tive a minha filha percebi que não era possível andar na cidade com um carrinho de bebé. Na altura era engenheira de trânsito numa Câmara do Norte e vi que a minha missão só poderia ser eliminar barreiras urbanísticas e arquitectónicas. Ainda hoje, 50% do meu tempo é dedicado a promover cidades para todos.
O que são cidades para todos?
Falamos de cidades para pessoas com deficiência, mas também para crianças, para mães com carrinhos de bebés, idosos, pessoas que têm algumas limitações ou que tiveram um acidente. O importante de ver, e que é muito relevante, é que se somarmos a percentagem de pessoas que têm mobilidade reduzida estamos a falar de 60% da população. Se ignorarmos isto, estamos a projectar apenas para 40%. Quando se sai da universidade não se tem consciência de considerar estes grupos, que tendencialmente serão maiores.
De que forma a mobilidade pode contribuir para reduzir emissões?
Mais de um terço do dióxido de carbono libertado para a atmosfera advém dos transportes. Não se pode negligenciar a matéria da mobilidade. Não podemos continuar a não ter preocupações com o uso e abuso do automóvel. Foi ele que nas últimas décadas foi degradando a qualidade do ambiente. Há hoje cidades que estão engarrafadas durante horas, de manhã e à tarde. Tudo isto vem contribuir para problemas de saúde pública.
Como é que se incentivam as pessoas a usar transportes públicos se os horários e os percursos, na maior parte das vezes, não servem as necessidades?
É muito difícil. Todos falamos acertado, do ponto de vista conceptual, mas depois não se aplica nada. Na Europa há países que demonstram há muito tempo ter políticas muito assertivas nestas matérias. Mas nos países do Sul tem havido mais dificuldades, talvez pelo estilo de vida das populações, que não são tão dadas a regras. O que é preciso fazer? Tomar medidas políticas. Medidas técnicas há muito que estão referenciadas. Apontam a necessidade de inverter esta tendência excessiva de andar de automóvel. Há que perceber que 60% das deslocações são feitas para menos de três quilómetros. Para esta distância, deve-se andar a pé. Ou a pé e de transportes públicos ou de bicicleta.
[LER_MAIS] Tem-se incentivado o uso da bicicleta e têm-se construído mais ciclovias, mas a verdade é que as cidades ainda estão longe de ser ‘amigas’ dos ciclistas, e até dos peões. Estão pensadas sobretudo para o uso do carro…
Em Portugal temos um território todo desenhado em função do automóvel. O automóvel foi o rei da mobilidade durante décadas e todo o espaço da cidade entre edifícios foi pensado só para ele. Esse espaço vai ter de ser tratado, mas sem se perder um centímetro, porque é escasso. O asfalto tem de ser reduzido. Aliás, é isso que se está a fazer nas grandes cidades desde que saímos da quarentena. Faixas de rodagem estão a ser transformadas em corredores bus ou em ciclovias. Mas têm de ser criados também modos pedonais. A minha grande preocupação é que não vejo muito trabalho nessa área. Vê-se que a ciclovia está a ser uma aposta no país inteiro, mas infelizmente não tem havido planeamento da mobilidade articulado com planeamento urbano. Por isso, nota-se que grande parte das ciclovias que estão a ser feitas, e onde se gastam muitos envelopes financeiros, não vão ter o sucesso que deveríamos querer.
Porquê?
Porque são pensadas como medidas avulso. São pensadas para serem executadas porque estamos perante uma cenoura, ou seja, há dinheiro para isso. Só que quando deu dinheiro para as ciclovias, a Europa pensava que os portugueses tinham planos de mobilidade urbana sustentável. E que esses planos tinham sido feitos ao nível dos municípios. E esse dinheiro só vei para Portugal porque à Europa foi dada a informação de que tínhamos planos de acção de mobilidade urbana sustentável. Mas é um equívoco.
Não temos esses planos…
Não. Fizemos um documento que teve esse nome, mas não foi um plano de acção. Foi feito em três meses, numa folha de excel onde se injectaram medidas de todos os municípios, que numa correria desenfreada tiveram de remeter para as Comunidades Intermunicipais algumas medidas que gostariam de ver no seu território. Sem grandes reflexões, porque não houve tempo, sem participação pública, sem integrar essas medidas com os instrumentos de planeamento. Foi enviado um documento com esse nome e com medidas que sabíamos que eram o que a Europa queria ouvir. O dinheiro foi aprovado, mas muito pouco está executado ainda.
Porquê?
Muitos municípios têm consciência de que não sabem ainda o que vão fazer com o dinheiro. Não fizeram ainda pistas cicláveis porque não sabem onde as vão colocar, na medida em que não fizeram o trabalho a montante, de pensar o que é prioritário, qual o percurso a fazer. Porque o espaço não é muito nas cidades, integrar uma ciclovia com um sentido para cada lado, que ocupa quase quatro metros, implica que qualquer coisa tem de ser eliminada. Somos confrontados com a necessidade de adoptar políticas de trânsito, que passam por retirar estacionamento, mudar sentidos duplos para únicos, coisas que politicamente teriam de ser muito mais determinadas, mas que não são adoptadas devido ao receio do seu impacto na população. Que é responsável pelo mau trabalho que se faz, porque neste caso não exige, e também não perdoa que as câmaras mudem os caminhos. Os políticos sentem-se atados, presos, porque vão a votos e não têm coragem [de adoptar essas medidas].
Em muitos países europeus o automóvel é essencialmente um meio de transporte, há casos em que até a propriedade é partilhada. Em Portugal é uma questão de status. Esta mentalidade é difícil de mudar…
É. Para trabalhar a mobilidade há três vértices a considerar. Não chega trabalhar a parte do modo de transporte que se vai utilizar, há ainda a parte da infra-estrutura, que entra neste puzzle como um dos parâmetros mais relevantes. Toda a infra-estrutura pública está sob a alçada das Câmaras Municipais, daí a importância que têm as autarquias. Temos exemplos em Portugal de como com decisão política e determinação se muda mesmo. Lisboa mudou, o Porto está a mudar imenso. Na Galiza, Pontevedra deu nos últimos 20 anos uma volta completa, as pessoas andam a pé em toda a cidade, que é um centro comercial ao ar livre. Só que para isso não licenciou shoppings, criou bicicleta pública gratuita e fez estacionamentos gratuitos nas periferias.
E o terceio vértice?
É a atitude do cidadão, que tem de mudar. Vamos ter de deixar esse gosto enorme de exibição pública do BMW. Reconheço que quando acabei o curso o meu sonho era ganhar um bom ordenado para comprar um carro. Hoje os meus filhos não querem carro. Andam de transporte público, de bicicleta, a pé. É uma geração que pensa nestas questões das alterações climáticas e da sustentabilidade. O problema não está nas novas gerações, está na nossa e nas anteriores, que não estão a facilitar nada. E está também na geração de autarcas e políticos do Governo com mais de 50 ou 60 anos, que não estão a perceber que a infra-estrutura tem de ser redesenhada, porque temos de dimiuir o tapete de asfalto para aumentar os passeios. E não é passeios com calçada à portuguesa, mas sim passeios confortáveis, seja para uma pessoa com deficiência seja para uma senhora de salto alto seja para quem empurra um carrinho de bebé. Outro problema é que o espaço público ao ar livre não tem ainda a segurança e o conforto do chão dos shoppings. Mas tem de ter. E é isso que os autarcas têm de perceber. Têm de aproveitar todos os dinheirinhos dos quadros comunitários e fazer obras que dêem prioridade ao peão. Somos um país onde se desenha tudo muito bem, onde se demora muitos anos a fazer um projecto, que depois é intocável. Mas o que precisamos são as chamadas medidas de acupunctura urbana. Ou seja, que resolvem um problema num sítio, mas que terão um efeito de mancha de azeite, que vai levar vantagens a outros pontos da cidade. Precisamos de políticos fortes, com determinação, que façam o seu trabalho, que não pensem na questão populista dos votos, mas sim na necessidade de aumentar e melhorar o espaço público para o peão.
Voltando às ciclovias…
Devem estar todas integradas com as redes de transportes públicos, que têm de ser melhores e mais confortáveis, passando com mais frequência. Nas cidades também são precisas mais sombras. As cidades têm de ter conforto como se fossem uma casa. As medidas têm de estar todas integradas. E não podem existir se não forem planeadas. Não é possível continuarmos a aumentar o número de automóveis. Mas Portugal é o único país da Europa que continua a aumentar os padrões de mobilidade em automóvel. A Europa vai chegar à conclusão que não fizemos o trabalho de casa, que recebemos dinheiro do quadro comunitário mas que não planeámos nada. O dinheiro que estamos a receber não está a dar resultados na prática. Esse dinheiro é para reduzir as taxas de emissões de dióxido de carbono que resulta do transporte privado enquanto transporte pendular (casa-trabalho, casa-escola). O que não está a acontecer.
Os passeios não devem servir para andar de bicicleta?
Tenho visto alguns municípios fazerem ciclovias, mas não os tenho visto a comprar bicicletas. Assim não adianta. Mas as ciclovias são precisas. Não se pode andar de bicicleta nos passeios para peões. Há dados claros que mostram que o maior número de sinistralidade ocorre entre o ciclista e o peão e não entre aquele e o automobilista. No Código da Estrada português é muito claro onde deve andar o ciclista: na frente do automóvel. E o condutor tem de aprender a respeitar o ciclista, a dar-lhe espaço e a perceber que aquele lugar é partilhado. Mas os passeios para peões têm de existir sempre. Porque o modo preferencial de mobilidade deve ser andar a pé. Ao fazerem-no, as pessoas não só evitam a emissão de dióxido de carbono como fazem exercício físico. Ver a cidade como um ginásio ao ar livre é fundamental para resolver o problema. Precisamos de cidades felizes e anti-stress e isso só é possível com uma atitude: planeamento integrado. Vai ter de ser obrigatório que cada município faça de cinco em cinco anos um plano de mobilidade urbana sustentável, que seja um documento simples, dinâmico e flexível, que permita ter uma estratégia e que se constitua como um documento de apoio político, para que se saiba onde estamos e para onde vamos. E que seja a narrativa para ir buscar dinheiro ao quadro comunitário, se interessar.
Perfil
Dezenas de planos no currículo
Paula Teles é Engenheira Civil e mestre em Planeamento e Projecto do Ambiente Urbano, com tese sobre Os Territórios (sociais) da Mobilidade. Foi técnica superior na Câmara de Matosinhos durante dez anos e em 2004 criou a MPT, empresa de planeamento urbano e gestão da mobilidade, tornando-se consultora autárquica nesta área em dezenas de municípios. Foi coordenadora técnica de inúmeros Planos de Promoção da Acessibilidade em Portugal. É coordenadora nacional da Rede de Cidades e Vilas com Mobilidade para Todos e presidente do Instituto de Cidades e Vilas com Mobilidade, plataforma que gere o projecto Rede de Cidades e Vilas de Excelência. Paula Teles é ainda membro da Comissão de Peritos do Fórum Pensar as Cidades Século XXI, do Eixo Atlântico do Noroeste Peninsular (Galiza e Norte de Portugal). É autora e co-autora de um vasto conjunto de publicações. O último livro que publicou, no ano passado, é A Cidade das Bicicletas – Gramática para o desenho de cidades cicláveis.