Entrou em vigor no início do ano o salário mínimo de 665 euros. É suficiente?
Para a CGTP este valor é insuficiente. Temos uma reivindicação: que se atinjam no mais curto prazo possível os 850 euros. Não é um valor que fomos buscar dentro de uma cartola, tem a ver com o estudo que fizemos do que é necessário em termos de salário mínimo para garantir a dignidade de vida aos trabalhadores, tendo em conta o custo de vida. Quando apresentámos esta proposta nunca dissemos que era para ser aplicada no imediato. Consideramos é que este aumento de 30 euros no salário mínimo face a 2020 não é suficiente para garantir esta dignidade. Nem para garantir a outra vertente da nossa fundamentação, que é o aumento geral dos salários, rompendo com este modelo de baixos salários, de precariedade, que faz com que a nossa economia não se desenvolva.
Defende um aumento de 90 euros…
Para a CGTP, a questão da defesa dos direitos e interesses dos trabalhadores, nomeadamente em termos do seu poder aquisitivo, de terem um salário que lhes permita uma vida digna, está intimamente ligada com a necessidade que temos de alterar este modelo e de, assim, contribuir para o desenvolvimento do País. Esta epidemia veio demonstrar a necessidade de resposta a esta nossa reivindicação, porque já vimos que se acentuaram as desigualdades, aumentou a pobreza, diminuiu brutalmente o poder aquisitivo dos trabalhadores e das suas famílias, e dos reformados, o que fez com que baixasse o consumo e isso prejudica as empresas e a economia. É preciso que a produção aumente, para que as nossas empresas tenham viabilidade, mas isso só se consegue se houver poder aquisitivo. O salário mínimo tem aqui uma importância muito grande, associado ao aumento geral dos salários que reivindicamos. Apresentámos a proposta de 90 euros para todos os trabalhadores em 2021. Mas o que está a acontecer é que por parte de muitas associações patronais e de muitas empresas nem sequer há abertura para negociar.
Muitas empresas garantem não ter condições para pagar salários mais altos…
É um argumento falacioso. As empresas não estão todas no mesmo patamar. Os salários dos trabalhadores têm um peso bastante reduzido naquilo que são os seus custos. Em média, rondam os 16%. O que as micro, pequenas e médias empresas precisam, nesta situação que estamos a viver, é de apoios do Estado que fomentem a sua viabilidade, que garantam que podem ultrapassar esta situação epidémica e que quando ela terminar regressam à normalidade em condições de garantir os postos de trabalho e os salários. Subindo os salários, haverá mais consumo, logo mais vendas e mais produção. As empresas também ganham com isto. Os apoios têm de ser dados às que de facto necessitam, que não é o que tem acontecido.
Como avalia as medidas de apoio destinadas às empresas nesta fase?
Não obstante ter havido já alguma alteração em relação a medidas anteriores, os apoios conhecidos continuam a ser acessíveis a quem deles não precisa: grandes grupos económicos, grandes empresas que têm tido milhões e milhões de euros de lucros. Muitas delas distribuíram dividendos de muitos milhões já em plena pandemia. E acederam aos apoios do Governo. Isto não faz sentido absolutamente nenhum. Somos todos nós quem paga. As micro, pequenas e médias empresas têm muito mais dificuldades, mesmo do ponto de vista do processo para aceder aos apoios. Para estas, os apoios deviam ser agilizados. E devem ser para manter os postos de trabalho.
[LER_MAIS] Teme que em consequência deste novo confinamento haja mais encerramentos e despedimentos?
É outra questão que temos vindo a colocar. A partir de Outubro, empresas que terminaram o lay-off simplificado deixaram passar os 60 dias e imediatamente promoveram despedimentos colectivos, em muitos casos de centenas de trabalhadores. Muitas delas aproveitando até para fazer uma espécie de limpeza daqueles trabalhadores mais activos na mobilização de colegas para lutar e resistir à violação dos seus direitos, delegados e dirigentes sindicais.
Em Portugal 742 mil pessoas recebem o ordenado mínimo. É um número que tem crescido nas últimas décadas…
Sim. A CGTP sempre defendeu o aumento do salário mínimo. Mas tinha de ser acompanhado da subida [do ordenado dos outros trabalhadores] em função das carreiras, das categorias profissionais, do tempo nas empresas e com a negociação da contratação colectiva. Com a norma da caducidade das convenções colectivas que está no Código do Trabalho, e cuja revogação a CGTP exigiu desde a primeira hora, o que tem acontecido é que as empresas não têm cumprido um direito constitucional, de negociação da contratação colectiva com os sindicatos. Ora, as tabelas salariais, em muitas empresas e sectores, acabam por ser quase engolidas pelo salário mínimo nacional. Os trabalhadores que estão a meio da tabela salarial auferem também o salário mínimo. Ou seja, não há reconhecimento nem valorização das carreiras e das profissões, o que é completamente inaceitável e contribui para o tal modelo de baixos salários que temos e contra o qual lutamos.
Os salários baixos são um indicador de que muitas empresas valorizam os seus colaboradores menos do que o desejável?
Muito menos do que seria desejável. De facto, as empresas não estão a dar resposta às reivindicações dos trabalhadores em vários aspectos, começando logo pela questão da negociação dos salários, mas também em matérias como formação profissional e outras que poderiam melhorar as condições de trabalho, nomeadamente os horários. A sua redução é outra vertente das nossas prioridades reivindicativas.
Redução para 35 horas, para todos os trabalhadores. É uma mudança exequível, nesta fase?
Estranhamente, ninguém coloca a questão da redução do horário de trabalho como uma forma de garantir também, neste quadro epidémico, a protecção de todos, e da saúde dos trabalhadores nos locais de trabalho. Poderia permitir o desfasamento de horários e iria garantir a melhoria da vida das pessoas, na medida em que permitiria ter mais tempo para a família, para o lazer, para o desporto, para a cultura. No fundo, para conciliar a vida pessoal com a profissional que, sabemos todos, é uma dificuldade enorme para um número elevadíssimo de trabalhadores. Para a CGTP esta questão da redução do horário é muitíssimo importante e seria um passo muito significativo, até do ponto de vista civilizacional. Com as alterações introduzidas no Código do Trabalho pelo Governo do PS, em 2019, o que tivemos foi exactamente o inverso. Foi introduzido o banco de horas grupal e temos trabalho nocturno e por turnos a serem quase a norma, quando deviam ser situações excepcionais.
Em Portugal trabalham-se muitas horas, mas continuamos a ser dos países com menor produtividade…
Isso tem muito a ver com a gestão e a organização das empresas. O que temos verificado é que com a redução do horário de trabalho aumenta a produtividade. Um trabalhador que tenha condições de bem-estar físico e mental e que tenha uma vida familiar presente, e não sempre dependente de horários de trabalho enormes, produz mais. Com esta desregulação dos horários que as empresas tentam introduzir, o que tem acontecido é o aumento dos ritmos de trabalho. A par da redução do número de trabalhadores, que também temos verificado. As empresas tentam ter muito menos trabalhadores, a fazer exactamente o mesmo. O que isto faz é prejudicar a saúde dos trabalhadores, que ficam com doenças profissionais. Temos muitíssimos casos de exaustão devido à intensidade dos ritmos de trabalho.
É dirigente sindical desde 1991. Nestes 30 anos muitas coisas mudaram…
Naturalmente. Houve evolução científica e técnica, novas tecnologias. O mundo avança. Mas há um aspecto que não se alterou, que é a relação de trabalho. Mantém-se, tal como se mantém o conflito entre trabalho e capital. O capital tenta sempre explorar ao máximo os trabalhadores, obtendo o máximo lucro. Com esta desregulação dos horários de trabalho, quase estamos a regressar ao século XIX, com as pessoas a trabalhar de sol a sol, a não terem um horário que lhes permita organizar a sua vida. Aquilo a que temos assistido é às empresas a aproveitarem os avanços científicos e técnicos para aumentar os lucros, mas não os fazem reflectir nas condições de trabalho, na vida dos trabalhadores.
Continuam então a fazer sentido as mesmas reivindicações?
As questões dos salários, das condições de trabalho, dos horários sempre foram reivindicações da CGTP. Uma das coisas que alcançámos nestes 50 anos da central sindical foi a redução do horário de trabalho, no plano legal, para as 40 horas semanais. São matérias que continuam com toda a actualidade, porque a verdade é que a natureza da exploração continua a ser a mesma. No nosso País há esta opção de décadas, de sucessivos governos, de vários partidos, de manter o modelo dos baixos salários, da precariedade. O nosso País é um dos que têm mais baixos salários na União Europeia. Temos estado submetidos aos condicionamentos que a UE nos coloca, que as grandes potências da União Europeia exigem, e temos assistido ao encerramento de muita da nossa indústria, a produção nacional baixou brutalmente e aumentámos as importações. Com baixos salários, os trabalhadores não têm condições para ter uma vida digna. Esta situação epidémica veio aumentar mais esta matriz e as desigualdades que existiam.
Tem-se percebido ao longo dos anos algum afastamento dos trabalhadores em relação aos sindicatos e tem caído o número de novas sindicalizações…
A maior parte do afastamento tem tido por origem o desemprego. Um desempregado não tem de pagar quotas, mas a verdade é que não está no seu local de trabalho e acaba por ter um afastamento maior do sindicato. Mas tem-se mantido um nível muito elevado de sindicalização de novos trabalhadores nos nossos sindicatos. Entre o 13º e o 14º congresso atingimos mais de 114 mil novas sindicalizações, o que é muito significativo. E nesses quatro anos ainda tivemos consequências do período da troika, falência e encerramento de empresas.
É a primeira mulher a dirigir uma central sindical. É uma responsabilidade acrescida?
É um orgulho ser a primeira mulher secretária-geral da CGTP. Coloca-me a mesma responsabilidade do que se fosse homem. [Ter sido escolhida para o cargo] é reflexo da maior participação de mulheres na vida sindical. Temos tido um aumento crescente do número de trabalhadoras a sindicalizarem-se, a serem eleitas delegadas sindicais e para as direcções das estruturas e da própria CGTP. É natural que haja uma mulher que assuma a responsabilidade.
Toda a sua carreira foi feita no sindicalismo. Isto não pode, de alguma forma, ser uma desvantagem, na medida em que não passou por nenhuma empresa e não conhece as dinâmicas do mercado?
Não é uma desvantagem, pelo contrário. O meu trabalho no sindicato foi sempre de intervenção activa, incluindo nos próprios locais de trabalho de várias empresas de vários sectores. Sempre foi um trabalho de apoio à estrutura sindical, aos trabalhadores em luta. E eu sempre participei em todas as lutas. Tenho um conhecimento bastante alargado da realidade que se vive nos locais de trabalho. E já agora, não obstante ser funcionária sindical, sempre fiz greve, descontando naturalmente o dia de salário.
Perfil
Trinta anos no sindicalismo
Isabel Camarinha, 60 anos, está há 30 ligada ao movimento sindical. É há cerca de um ano secretária-geral da Confederação Geral dos Trabalhadores de Portugal (CGTP), a primeira mulher a ser eleita para o cargo. Entre outras funções, foi membro da direcção do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritório e Serviços de Lisboa e da sua Comissão Executiva de 1991 a 1998 e, depois, da direcção do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritório e Serviços de Portugal, desde a sua constituição em 1998. É presidente da direcção nacional deste sindicato desde 2016 e, também desde esta data, coordenadora da direcção nacional da Federação Portuguesa dos Sindicatos de Comércio, Escritórios e Serviços.