Os Painéis de São Vicente de Fora têm sido alvo de novas atenções e, recentemente, uma reprodução ocupou um espaço no Mosteiro da Batalha, para testar a teoria de que o políptico, composto por seis painéis, teria sido pensado para ser colocado ali, naquele que é o Panteão Nacional da segunda dinastia, para ilustrar a Ínclita Geração.
Mas, nos últimos anos, o arqueólogo Gonçalo Ribeiro, cujas raízes familiares passam pelo concelho de Ourém, tem formulado uma interpretação alternativa à versão oficial sobre a história e os motivos, deste que é um dos tesouros maiores da pintura medieval portuguesa.
Apresentado por diversa literatura e investigação como uma representação da Ínclita Geração, numa espécie de homenagem aos homens que desencadearam a expansão portuguesa, no final da Idade Média, Ribeiro afirma que esse entender infere, demasiadas vezes, em contradições e baseia-se em ideias não provadas pelas provas documentais e afastadas pela coinjuntura política, de então, do Reino.
Estudioso há anos do tema, desde que fez mestrado na Universidade do Porto, já publicou um livro onde aflora o assunto, mas as suas conclusões mais recentes podem ser encontradas no blogue Caras dos Painéis ditos de São Vicente, onde, durante os últimos 18 meses publicou o resultado de uma análise onde comparou cada a face de uma das personagens que estão retratadas na obra, com outros desenhos, pinturas e documentos do final do século XV.
Com formação em História da Arte, aquilo que Gonçalo Ribeiro defende choca com o entendimento estabelecido de quem é quem, nas 60 personagens que aparecem no retábulo, e que este autor diz estar assente em concepções pouco sólidas que nada têm que ver com a realidade e com as provas históricas.
“O homem de bigode e de chapeirão”
Praticamente desde 1882, data onde os painéis foram descobertos no Paço Patriarcal de São Vicente de Fora, em Lisboa, por monsenhor Alfredo Elviro dos Santos, secretário do Patriarca de Lisboa, que convidou Ramalho Ortigão e José Queiroz para uma primeira avaliação, que o homem alto, de bigode, vestido de negro e com um chapéu e véu negro, em segundo plano, é o Infante D. Henrique – O Navegador (filho de D. João I), príncipe impulsionador do início dos Descobrimentos.
Tanto assim é que no também recentemente alvo de polémica Padrão dos Descobrimentos, é a sua efígie que está na proa da nau-pátria que se lança pelo Atlântico para dar novos mundos ao Mundo. No capítulo dedicado à análise desta figura, Gonçalo Ribeiro conclui que não poderá ser outro que não o rei D. Afonso V e não Henrique, o Navegador.
“Curiosamente, estando mesmo em segundo plano, será ele, afinal, a figura mais famosa, quiçá, da história portuguesa, retratado como o homem de bigode e de chapeirão! A confusão já dura há mais de 100 anos por causa do retrato copiado no Códice de Paris, numa identificação forjada com o Infante D. Henrique – já desmontada, nomeadamente, por Conceição e Silva, Dagoberto Markl e, recentemente, por Fernando Branco – mas outras tentativas de identificação daquela figura vieram aumentá-la, a confusão”, escreve no blogue, adiantando mais à frente, acerca do inconfundível chapéu: “uma coisa é certa, aquele chapéu, mais do que qualquer barrete ou gorro, servia para cobrir a calvície do rei, desde os 30 anos”.
O historiador aproveita e analisa a Dinastia de Avis e os seus filhos, aparentemente, em posições secundárias no políptico. “Todos em retratos póstumos, todos de hábitos clericais como foram sepultados, ou como trajes celestiais.”
D. Henrique é, acredita, uma figura de longas barbas brancas, um verdadeiro ermitão, perdido nas ciências puras e com a cabeça ocupada a cogitar nas companhas que se aventuravam no mar às suas ordens. “A maior parte das pessoas importantes daquele tempo têm retratos pouco conhecidos, mas eles existem, pelo que eu os comparei com as caras dos painéis de São Vicente de Fora.”
À luz daquilo que se sabe sobre a época conturbada onde o conjunto foi pintado, a partir da posição das personagens na tela e recusando algumas incongruências, o estudioso foi burilando a sua tese, assente em iconografia, fisionomia, relações políticas, familiares e interpessoais conhecidas, deitando fora concepções há muito cimentadas.
Quem é o pintor dos painéis?
Outra das ideias que não tem encontrado oposição, mas que suscita dúvidas a Gonçalo Ribeiro, é que os painéis terão sido criados pelo português Nuno Gonçalves, pintor régio, mas essa não é a teoria do arqueólogo. Em primeiro lugar, diz o estudioso, não tem obra conhecida com este tipo de traço.
Tudo somado, leva a que o investigador deixe de lado esse dogma “mal fundamentado” e arrepie caminho por outra teoria, a de que o autor é o pintor régio do rei de França, Jean Fouquet. “É a minha teoria. Nuno Gonçalves até pode ter pintado esta obra, mas a sustentá-lo há apenas uma posição vaga de Francisco d’Holanda que, décadas depois, refere essa autoria.
Admite-se que as pinturas de Jean Fouquet podem ter sido tomadas como modelos para os painéis de São Vicente e acredita-se que terá havido contacto entre o artista e a entidade régia lusa. “Não há trabalhos anteriores, que demonstrem a aprendizagem de Nuno Gonçalves para aquela técnica.”
Dois santos
Por que razão se perdeu a noção de quem é quem e da importância de tal obra de arte, ao longo dos séculos? O autor do estudo avança uma explicação fundamentada nos eventos da época, embora sublinhe que é uma ideia com menos provas a sustentá-la. O final do reinado de D. Afonso V – o homem alto, vestido de negro e com um grande chapéu – foi atribulado.
O rei tentou tomar o trono de Castela, mas não o conseguiu. Desanimado, abandona o trono para o filho, o “príncipe perfeito” e regente D. João II.
“Foi uma fase muito complicada em Portugal, com o rei a abandonar o seu posto, o príncipe a tomar o Governo e forças que se opõem. O monarca tenta conciliar as inimizades, especialmente entre a Casa de Bragança e o príncipe descendente da Casa de Coimbra. Havia duas forças em oposição: o poder real e a alta nobreza.”
Nos próprios painéis, adianta, não há quem se destaque, há dualidade e simetria entre dois grupos. A situação só termina quando D. João II sobre ao trono, após a morte do pai, convocando as Cortes, sob uma forma quase absoluta.
“Por toda a qualidade que aquela pintura tinha em termos políticos, ficou rapidamente obsoleta com a alteração da situação e manteve-se escondida e posta de lado”, entende o historiador.
Gonçalo Ribeiro avança mais uma teoria: na pintura figuram dois santos – um deles São Vicente, um santo da paz -, que são representados à imagem de dois príncipes da quarta geração de Avis, a quem os dois grupos prestam uma espécie de homenagem.
“São eles o herdeiro da Casa de Bragança e do Casa Real. Durante um ano e meio ou dois anos, para garantir a paz entre Portugal e Castela, fez um acordo onde os herdeiros das Coroas eram reféns em terçarias.”
Outra das razões para que se tenha esquecido os painéis e os seus intervenientes, diz o investigador é que, em curto prazo, todos tiveram um fim trágico. Estas e outras novas teorias, podem ser lidas no blogue Caras dos Painéis ditos de São Vicente.