Já passaram 45 anos, mas Rosa Santos ainda tem bem presente o misto de emoções que sentiu quando, naquele dia 5 de Março de 1976, entrou, pela primeira vez, no espaço onde, até 1975, tinha funcionado o Regimento de Artilharia de Leiria (RAL4), entretanto transformado em local de acolhimento para centenas de pessoas vindas das ex-colónias.
Pessoas que, como Rosa, Fátima, Ilda, Judite e Beatriz, fugiram da guerra e que acabaram em Leiria, na maioria dos casos, sem nunca antes terem pisado Portugal. Por um lado, havia um sentimento de gratidão por “se estar vivo”, quando tantos tinham perecido numa guerra iniciada em 1962, há precisamente 60 anos.
Por outro, a constatação das condições precárias que os esperavam, num “quartel vazio, com ar abandonado”, onde quase tudo, desde antigas cavalariças, cozinhas, enfermaria ou caves, serviu como quartos, criados com paredes improvisadas, feitas de cobertores, mantas ou, no melhor dos casos, com contraplacado.
Rosa chegou com o marido e três filhos, de 15, 12 e oito anos. Foramlhes atribuídos dois quartos. Num deles, dormia o casal e as duas filhas, no outro, ficava a cama do rapaz, separada com um cobertor de um pequeno espaço que servia de cozinha e sala.
No desfiar de memórias, que junta mais quatro antigas ‘moradoras’ do ex-RAL4, Rosa recorda o choque de chegar, sem nada, a um lugar que pouco tinha, para recomeçar uma vida longe daquela que considerava a sua terra, apesar de ser natural de uma aldeia perto de Mirandela. É, aliás, a única do grupo nascida em Portugal. Todas as outras, são naturais de Angola.
“Não éramos retornados, mas sim refugiados. Viemos fugidos dos tiros, para uma terra que nunca tínhamos pisado”, afirma Beatriz Abreu, de 78 anos, que chegou ao ex-RAL4 meses depois de Rosa. Antes, esteve instalada no sanatório das Penhas da Saúde, na Serra da Estrela, outro dos locais que acolheu famílias oriundas das antigas colónias.
Fátima Mendonça conta que, à chegada ao aeroporto, era-lhes entregue uma guia – “o papel de recenseamento a que chamávamos guia do desembaraço, porque era como se estivessem a desembaraçar-se de nós” -,[LER_MAIS] que fazia a distribuição das pessoas pelos vários locais de acolhimento. Fátima e a família – marido, pais e dez irmãos – também foram primeiro para as Penhas da Saúde, mas meses depois mudaram-se para Leiria.
Para trás ficava o “horror” da fuga de Angola “a ferro e fogo”, os meses passados na África do Sul, junto à fronteira, onde “se sobreviva à base de caça”, e o frio “gélido” da Serra da Estrela.
No antigo quartel, Fátima diz ter encontrado “tranquilidade”, mas as condições de alojamento revelaram-se “muito precárias”. As casas-de-banho eram comuns, a água “sempre fria”, a luz falhava “constantemente” e havia “ratos a dar com um pau”.
Alguns dos residentes, como Ilda Mendonça, conseguiam improvisar banheiras com bacias e água aquecida com serpentinas, alimentada, noseu caso, com uma ligação improvisada que o marido fez, através do telhado, à rede eléctrica. “Era muito engenhocas e conseguia-nos esses pequenos luxos”, conta Ilda, que foi mãe, por duas vezes, enquanto esteve no quartel.
“Passámos mal. Fiquei instalada numa cave. Nunca vi ratos tão grandes. Mas antes viver ali do que no meio da guerra, como eu estive”, confessa Judite Ramusga, que foi das primeiras a chegar ao ex-RAL4, juntamente com o marido e quatro filhos. “Nós chegámos. Outros, ficaram lá.”
Casamentos e baptizados no quartel
A falta de condições de habitabilidade era, contudo, contrabalançada com o espírito de comunidade e de união que se gerou entre aquelas pessoas, que ali viveram (ou sobreviveram) durante quase dez anos, até à construção do Bairro Dr. Francisco Sá Carneiro, nos Marrazes, inaugurado em 1985.
“Estávamos todos no mesmo barco. Havia união e harmonia e uma amizade grande entre pessoas vindas de tantos sítios diferentes, unidas pelo menos sofrimento. Éramos uma família”, diz, em tom saudosista, Fátima Mendonça.
Esse espírito de camaradagem era reforçado com os momentos de convívio, como os bailaricos que, aos fins- -de-semana, ocupavam a zona da parada onde se dançada ao som do quizomba, mas também do merengue, da valsa e do tango, ou das noites passadas em frente ao único televisor que havia, instalado no antigo pavilhão do quartel, e através do qual iam acompanhando as aventuras e desventuras de Gabriela, a novela criada a partir da obra homónima de Jorge Amado.
Houve ainda lugar à celebração de vários casamentos e baptizados. Graça, a filha mais velha de Rosa Santos, foi uma das noivas que ali deu o nó, numa cerimónia “muito pobrezinha”, presidida pelo “padre Gameiro”.
“São brancos como nós”
Nas memórias destas antigas ocupantes do ex- RAL4, que estão a ser recolhidas no âmbito de uma actividade de reminiscência inserida no projectoD’El- Rei 4G(ver caixa), há ainda lugar para a solidariedade que receberamdas pessoas da cidade, mas também, confessam, para o preconceito de que foram alvo.
“Havia quem nos olhasse de lado. Nem todos nos receberam bem”, assume Fátima Mendonça, frisando que esse sentimento se manteve quando, em 1985, se mudaram para o Bairro Sá Carneiro.
“Cheguei a ouvir as pessoas dizerem: ‘são brancos como nós’”, conta Beatriz Abreu, que, contudo, não esqueceu a ajuda que receberem, traduzida, por exemplo, na entrega de roupa. “Muitos, como eu, saíram de Angola apenas com a roupa que tinham no corpo.”
É, precisamente, uma peça de vestuário que está envolvida num dos episódios que mais marcou Ilda Mendonça e que foi protagonizado por uma menina “loirinha” que teria “uns cinco anos” e que, certo dia, entrou pelo quartel com “um casaquinho de malha bege” para oferecer a quem tivesse um bebé. “Ficou para a minha Tatiana. Ainda hoje me lembro daquele rosto. Gostava muito de voltar a encontrar a menina”, confessa.
Visita “emocionante” de Sá Carneiro
Morador “desde sempre” em Leiria, cidade onde nasceu, António Zúquete tem bem presente o tempo em que o quartel serviu de casa àquelas, vindas das ex-colónias. Recorda-se do “movimento de solidariedade civil” para as ajudar e da visita do então primeiro- ministro Sá Carneiro, em 1980.
Uma deslocação que ajudou a preparar na qualidade de dirigente do PSD e na qual esteve também envolvido o então governador civil Rui Garcia da Fonseca, que antes de ocupar essas funções, dava algum apoio médico a quem vivia no quartel.
António Zúquete refere-se à visita como um momento “muito emocionante – dos “mais importantes” que diz ter vivido na política -, que se revelou “decisivo” para a retirada das pessoas daquele local, com a construção do bairro que as viria a acolher. Na comitiva vinham ainda os ministros da Administração Interna (Eurico de Melo) e da Justiça (Mário Raposo).
“Cantou-se o hino nacional e na entrada havia um manto de flores”, conta, revelando que o primeiro-ministro visitou “todas as camaratas” e ficou “extremamente sensibilizado”, quer “pela forma como foi recebido”, quer pelas “condições precárias” em que viviam aquelas pessoas.
Também Fátima Mendonça se recorda bem desse dia. “Parece que ainda o estou a ouvir. Disse que não tinha ido lá para receber os nossos aplausos e prometeu que iriam ser construídas casas para todos. Fiquei mesmo convicta de que estava a dizer a verdade”.
E, de facto, cinco anos depois, consumava- se a mudança para o bairro ao qual foi dado o nome do antigo primeiro- ministro, falecido no mesmo ano da visita. Para trás, ficavam quase dez anos de vida no antigo RAL4, onde, de acordo com um recenseamento feito, em 1983, pelo Centro Distrital de Segurança Social, estavam 130 famílias (uma oriunda da Guiné, três de Moçambique e as restantes de Angola), totalizando “621 individuais”, entre os quais 90 crianças.