Ter uma família grande sempre fez parte dos planos de Sandra e Paulo Santos. Nunca fixaram um número, mas, desde os tempos de namoro que o casal, residente em A-da-Gorda, Óbidos, foi amadurecendo a ideia de ter uma casa cheia. Três rapazes (Francisco, Tomás e André) e três raparigas (Maria, Constança e Violeta) preenchem hoje este lar atípico num país com uma das mais baixas taxas de natalidade da Europa.
O mais recente Inquérito à Fecundidade, publicado no final do ano passado pelo Instituto Nacional de Estatística, revelava que o número médio de filhos em Portugal passou de 1,03, em 2013, para 0,86, em 2019. Ou seja, muito aquém do valor que seria necessário para garantir a substituição de gerações (2,1 filhos).
Em Portugal, a taxa de fecundidade (número médio de nascimentos por mulher) ronda os 1,3% e ter uma família numerosa (mais de três filhos) é algo cada vez mais raro. Dados da Associação Portuguesa de Famílias Numerosas (APFN) indicam que existem em Portugal pouco mais de 150 mil agregados com três ou mais filhos, número que representa 4,8% do total de famílias. No distrito, são 5.367 os agregados com mais de três filhos.
Partindo destes dados, o JORNAL DE LEIRIA foi conhecer os Santos, os Nascimento e os Filipe, três famílias da região que, em contra-corrente, têm uma casa cheia de filhos. Recusam o rótulo de “ricos”, que dizem ser um dos preconceitos associados a quem faz este tipo de opção, e explicam como, com “muita organização” e um enorme espírito de união, conseguem gerir o dia-a-dia.
Apenas com um irmão cada um, Mónica e Adérito Filipe, residentes em Monte Real, Leiria, começaram ainda na fase de namoro a idealizar uma família que lhes permitisse ter “uma grande tropa” lá em casa. Há oito anos nasceu a Mariana, veio depois o Miguel e a Beatriz, de cinco e três anos e, mais recentemente, o Bernardo, de oito meses.
“Gostávamos de ter mais, mas não dá. Assumimos que temos de parar”, diz Mónica, de 33 anos, que é formadora, [LER_MAIS]actividade que lhe dá “alguma liberdade de horários”, “fundamental” na gestão do dia-a-dia. É ela que, de manhã, vai levar os três mais velhos à escola, que fica a menos de 15 minutos de distância, e que, ao final do dia, faz o percurso inverso. Sempre que necessário, conta com o apoio dos pais ou dos sogros, que vivem perto.
O marido, agricultor, tem menos flexibilidade de horários e “ajuda quando pode”, assume Mónica. Da actividade de Adérito veem os legumes, a fruta e muita da carne que se consome em casa. A roupa passa dos irmãos mais velhos para os mais novos ou é adquirida em lojas de segunda mão, por “questões financeiras, mas também de princípio”.
O mais complicado, diz Mónica, é gerir as actividades extra-curriculares. Para já, apenas Mariana as têm: escola de emoções à sexta- -feira e piscina à segunda. Além do preço – “qualquer actividade custa à volta de 20 euros e raramente há descontos para irmãos” – há também a gestão da agenda. “Custa-me saber que, para acompanhar uma essas actividades, não posso estar com os outros”, refere.
Esta é uma dificuldade que a família Nascimento tem conseguido contornar com o facto de residir no centro de Pombal, uma cidade “pequena, onde tudo é perto”, frisa José, contando que, desde cedo, os filhos foram habituados a ir a pé para a escola ou para as actividades.
“Facilitou muito vivermos dentro de Pombal”, reconhece o pai, que assume que ter uma família numerosa não foi planeado, mas “aconteceu”.
Primeiro veio David e depois Gabriela, hoje com 24 e 20 anos. “Pensávamos ficar por aí, mas quando veio uma nova gravidez ficámos felizes. Só não contávamos que fossem gémeas [Catarina e Leonor, agora com 18 anos]”, conta o arquitecto, que acabaria por ficar viúvo com quatro filhos. Reconhece que foi uma fase “muito complicada”, ultrapassada com “muita ajuda” e com a colaboração dos filhos, então a entrar na adolescência.
Em 2012, conheceu Elisabete, de quem teve mais uma filha, a Matilde, de sete anos, que gostava de ter ainda outro irmão, com quem “pudesse brincar mais”.
Aos 20 anos, Gabriela Nascimento trabalha como cozinheira, mas continua no ninho. “É óptimo viver numa casa com tanta gente. Às vezes, há demasiada confusão e a privacidade é pouca, mas temos sempre companhia e alguém com quem contar”, destaca a jovem.
“Nunca compramos um quilo de nada”
A cumplicidade entre irmãos é, aliás, o que Sandra e Paulo mais destacam como vantagem de ter uma família numerosa. “Os mais novos vão, naturalmente, adquirindo competências com os mais velhos. É uma resposta natural às dificuldades”, diz Paulo Santos, 55 anos, que é formador numa escola de aviação, em Cascais. Sandra, de 48 anos é enfermeira e sempre trabalhou, com excepção de um período de três anos, quando acompanhou o marido em cumprimento de uma missão da NATO na Alemanha.
Quando nasceram os filhos mais velhos, tinham a ajuda de uma mulher a dias, que ia uma vez por semana. Com o crescimento da família, passaram a ter uma pessoa a tempo inteiro, que agora está de baixa, obrigando a uma forte organização de todos para a repartição das tarefas domésticas. Durante a semana, os mais velhos têm, à vez, as refeições à sua responsabilidade, enquanto os mais novos ajudam a pôr a mesa.
“Todos tendemos um pouco para a desorganização, mas só com muito planeamento e entreajuda conseguimos gerir o dia-a-dia”, sublinha Sandra Santos, reconhecendo que essa organização é também fundamental para a gestão do orçamento familiar.
“Nunca compramos um quilo de nada. É sempre às caixas”, diz Sandra, entre risos, para, mais séria, referir a conta “astronómica” da electricidade. “Todos os dias faço uma máquina de roupa. Hoje [sábado] ainda não parou. E às vezes temos de secar. Não é um luxo. Mas uma necessidade”, afirma.
A somar à luz, há a água, uma factura também elevada, por força dos consumos que têm de fazer. A nível nacional há 220 municípios que aplicam tarifário familiar, não sendo, segundo dados disponíveis no site da APFN, o caso de Óbidos, Pombal, Caldas da Rainha e Bombarral.
“Os tarifários da água estão por escalões, pesando mais sobre quem mais consome. Mas, numa família numerosa não se trata de desperdício, mas de necessidade”, frisa Ana Cid, secretária- geral da APFN.
Discursos sobre natalidade são “pura retórica”
“Nunca houve em Portugal a preocupação de proteger a família como elemento integrante e determinante da sociedade”, afirma Paulo Santos, para quem “os discursos dos políticos sobre a importância da natalidade são pura retórica”.
Ana Cid não podia estar mais de acordo. “As famílias com filhos são penalizadas em muitos âmbitos, seja ao nível fiscal, seja com as despesas mais básicas, como a água ou a luz”, alega a dirigente.
A título de exemplo refere a penalização que sofre quem tem uma casa maior, “não por luxo, mas por necessidade de acomodar toda a família”. Isso, apesar de haver já muitos municípios a aderir ao IMI Familiar, que a secretária-geral da APFN considera uma medida “bem intencionada, mas mal construída”, porque prevê uma redução fixa (20,40 ou 70 euros, conforme se tenha um, dois, três ou mais filhos).
“Não é justo. Não se pode comparar o valor do IMI no centro de uma cidade ou na periferia”, alega Ana Cid.
A dirigente aponta também as “tremendas injustiças” ao nível das deduções de IRS, “altamente discriminatórias” para as famílias com filhos. “Um agregado com um filho pode deduzir até 800 euros
de despesas com educação. Quem tem quatro, só deduz 200 euros por cada um, para totalizar os mesmos 800 euros”, exemplifica, considerando que se trata de “uma gritante injustiça”. “Não defendemos incentivos à natalidade, mas sim que seja dada liberdade às famílias de terem o número de filhos que desejam e que se acabem com as penalizações para quem tem filhos”, reforça a secretária-geral da APFN.