Os recursos humanos continuam a ser um dos principais problemas da Comarca de Leiria?
Sim, faltam cerca de 40 funcionários. A perspectiva de preenchimento dos lugares é quase nula. Para agravar a situação, não entram novos funcionários e os actuais estão cada vez mais velhos. A taxa de absentismo é bastante elevada e há uma grande desmotivação, até porque as pessoas não sobem na carreira. Uma das coisas que pretendo fazer é encontrar estratégias para incentivar as pessoas. Não as posso subir de categoria, mas quero dar uma componente mais humana, para que se sintam um bocadinho melhor. Faço questão de falar não só com os funcionários, mas também com os meus colegas juízes. Quero que os funcionários tenham formação, o que considero essencial, apesar de não ser da nossa competência. Podemos ter a melhor organização, a nível logístico, informático, mas se esquecermos a componente humana não há hipóteses. Se as pessoas não estão bem não trabalham, não produzem e as coisas correm mal. É essencial ter as pessoas incentivadas e moralizadas no trabalho.
A gestão da Comarca não tem autonomia financeira. O que pode fazer o presidente?
Enquanto os tribunais de Comarca não tiverem autonomia financeira e administrativa é difícil fazermos qualquer coisa. Sempre que queremos adquirir mobiliário ou fazer alguma reparação é preciso pedir autorização ao IGFEJ [Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça]. A autonomia é muito importante, até porque ninguém melhor do que quem cá está conhece as necessidades, mas se nos limitarem bastante o orçamento também não conseguimos realizar muitas coisas.
Que inovações pretende trazer à Comarca de Leiria?
Cada pessoa tem o seu método, mas eu gosto de ter tudo organizado e acessível. Pedi ao IGFEJ uma plataforma digital e criámos ficheiros, onde temos tudo classificado, por pastas, acessíveis a algumas pessoas. Quero criar uma base de dados de jurisprudência, por cadernos temáticos, dos juízes da Comarca, acessível a qualquer pessoa. Também é objectivo criar cadernos de doutrina digitais de juízes, procuradores ou advogados. É essencial ter uma biblioteca. Temos de catalogar todos os livros que existem na Comarca e criar uma base de dados, acessível a quem quiser mediante requisição. Quero realizar os “encontros da justiça”. Na quinta-feira [hoje] temos o primeiro sobre a prevenção dos maustratos a crianças. Em Junho espero realizar um sobre dados e metadados e depois outro sobre as relações com a comunicação social. Ainda há alguma tensão entre os dois lados, mas temos de compreender as duas posições. Por uma questão de transparência também temos de estar mais abertos. Se fecharmos a porta aos jornalistas, muita coisa vai sair pela janela e deturpada, o que ainda é pior. Gostava de fazer uma exposição de pintura ou algo parecido e encontros musicais com as pessoas que trabalham na Comarca ou do foro judicial. Estou a pensar em realizar vários protocolos com instituições para troca de conhecimentos e quero levar o tribunal à [LER_MAIS]sociedade. Quero ir às escolas e às juntas de freguesia falar com as pessoas, explicar o que faz um juiz, o Ministério Público, até porque, por vezes, as pessoas não compreendem certas decisões.
Será uma forma de aproximar os juízes à comunidade?
As pessoas acham que somos uns privilegiados, que ganhamos muito. Há atrasos nos processos, mas o juiz não tem apenas um processo e todos têm a mesma prioridade. O juiz tem de estar um dia inteiro numa sala de julgamento e ainda vai ver processos depois. As pessoas têm de compreender isso. Houve uma altura em que se requeria muito um tribunal de júri e quem participava ficava admirado com o funcionamento do tribunal e algumas pessoas reconheceram o trabalho do juiz.
Tem de haver também maior entendimento entre jornalistas e a justiça?
Não podemos fechar portas. O problema tem muitas vezes a ver com a violação do segredo de justiça, que por vezes até é alguém que o lança…e fazem-se julgamentos na praça pública, seja inocente ou não. Veja- -se o caso Marquês, que gerou uma convicção na opinião pública. As pessoas já não querem saber a razão das decisões e nem lêem a fundamentação. Nós, juízes, também temos culpa. Os jornalistas deveriam ter alguma formação forense, mas nós deveríamos falar uma linguagem mais acessível para as pessoas compreenderem. Depois, o tempo da justiça não é o tempo do jornalismo.
A pandemia aumentou o número de processos pendentes?
Em 31 de Dezembro de 2018, em toda a Comarca, estavam pendentes 31.423. Em 2019, tínhamos 27.240 pendentes e, em 2020, o número foi de 23.161. Houve uma diminuição, porque as entradas de processos também foram diferentes. De 1 de Janeiro a 23 de Abril de 2019 entraram 9.710 processos, no mesmo período, em 2020, entraram 8.034 e este ano entraram 8.452. Desde 1 de Janeiro até 23 de Abril de 2021 foram adiadas 5.348 diligências. Em 2020, adiaram-se 1.272 e no anterior, 192. A explicação tem a ver com a pandemia.
Com a reorganização do mapa judiciário, nem sempre os crimes são julgados no local onde ocorrem. Não traria mais sentido de justiça à população?
As pessoas não vêm de Peniche assistir a um julgamento em Leiria. Isso de facto afastou as pessoas dos tribunais. O julgamento deve ser feito mais próximo da comunidade. A reorganização que se fez já sofreu alguns ajustes e, por exemplo, os tribunais de Família e Menores já estão mais próximos. Mas quando se fala das deslocações, eu trabalhei alguns anos no Tribunal de Trabalho de Leiria, onde estão as pessoas, por vezes, mais fragilizadas, não só por acidentes, mas por desemprego ou falta de pagamento dos salários e também só havia em Leiria, Pombal e Caldas da Rainha e as pessoas tinham de se deslocar de outros concelhos.
O Tribunal de Menores regressou a Leiria ao edifício antes ocupado pelo Ministério Público e que é propriedade privada, assim como sucede com o Cível que está no edifício do ex-BNU. Quanto custam estas rendas? Não sairia mais barato criar o tão falado Campus de Justiça?
Claro que sim. Há muitos anos que ouço falar disso até já chegou a ter verba em Orçamento do Estado, mas nunca avançou. Se calhar nem nós nem as forças da cidade fazemos a devida pressão. Não sei quanto se paga de renda, mas se multiplicarmos os valores, ao fim de dez anos, o Campus estaria pago. Mas uma coisa é pagar quase a “prestações” outra é pagar de imediato. Quem nos governa deve ter melhor perspectiva para saber se compensa ou não construir um novo Palácio da Justiça. Para mim, compensava. Mas, por exemplo, em Portalegre, o Palácio da Justiça estava à espera de obras há muitos anos e os meus colegas trabalhavam num centro comercial. Quando há um Palácio que necessita de obras e não se fazem, mais difícil é fazer um Campus.
As antigas casas dos magistrados de Leiria estão a ser aproveitadas?
Sei que havia uma ideia para construir um edifício, mas não se concretizou. Neste momento, as casas estão completamente abandonadas. É uma pena porque é um local lindíssimo. Qualquer dia estão em ruínas.
O Palácio da Justiça sofreu obras recentes, mas ainda não foi criada qualquer sala para testemunhas, como figura no Código de Processo Civil. Está prevista esta intervenção?
É importante criar esse espaço. Espero poder criar a sala de testemunhas quando a pandemia acabar, embora muitas vezes nem haja uma sala para juízes, procuradores e advogados. Eu estive anos e anos a partilhar gabinete com um colega.
A procuradora Maria José Morgado defendeu um tribunal especializado no crime organizado? Concorda?
Não deve haver tribunais específicos para determinados crimes. Os juízes devem ter formação e estar preparados para julgar qualquer tipo de crime.
A discussão em torno da criminalização do enriquecimento ilícito tem mais de uma década de iniciativas chumbadas. Por que é que é tão difícil legislar?
A questão do enriquecimento ilícito tem a ver mais com o meio de prova: quem é que tem de provar? Em termos genéricos, quem acusa tem de provar a culpabilidade. No enriquecimento ilícito é dizer: tens um milhão e prova que isso é lícito. É inverter. É sempre uma questão delicada porque bate com a constitucionalidade e com a presunção de inocência, mas é saber o que está em causa, por exemplo, se é uma questão de presunção de culpa, ou seja, se o património foi adquirido de forma ilícita. É completamente diferente a culpa ou a existência de um pressuposto. Este património é teu agora prova. Não se presume culpado. É tudo muito relativo.
Num trabalho sobre o activismo judicial escreveu que os juízes estão sujeitos às leis, aos tratados e às Constituições, mas quem verdadeiramente determina o que as leis, os tratados e as Constituições dizem são os próprios juízes. O juiz consegue ser totalmente isento ou todas as suas vivências acabam sempre por influenciar a aplicação da lei?
Não defendo um activismo judicial puro, porque o juiz não é criador de leis, é aplicador, embora tudo o que ele aplica deve estar sujeito aos princípios constitucionais e ao enquadramento jurídico. Agora, todos nós somos influenciados. Há sempre influências daquilo que vejo, do que leio, das experiências. Dizer que não há influência é não ser honesto intelectualmente. Apesar de influência externa a questão é saber dominar e controlá-la. Sei que às vezes é difícil, mas acho que a maior parte dos juízes são isentos e imparciais e julgam de acordo com a lei, com a Constituição e com todos os princípios que lhes estão inerentes.
Como é que um juiz não se deixa influenciar pelo mediatismo de determinados casos?
O juiz não se pode alhear da sociedade e do que se passa no mundo. Pessoalmente nunca me senti pressionado. Se há um homicídio e vejo as notícias, ouço as pessoas, não vou desligar a televisão porque o processo me pode calhar. Os juízes estão preparados para isso.
Não é influenciado na aplicação da pena, dentro da moldura penal?
Não. Se influenciasse, em alguns homicídios, haveria sempre condenações de 25 anos de prisão. Temos de saber distinguir e estar preparados para o stress e para a crítica. Seja qual for a decisão há sempre uma parte que nunca vai estar satisfeita. Fiz parte do colectivo que julgou o ‘caso do ácido’ e sempre nos alheamos de tudo e decidimos de acordo com os factos e com o Direito. Sempre vivi muito os processos e às vezes nem dormia. Nem sempre é fácil aplicar uma pena: há julgamentos em que o arguido esteve condenado, esteve absolvido, esteve condenado… Mas todas as decisões foram com base no que entendia ser correcto e com base na lei. Era justo, fazia o meu melhor trabalho e a partir da leitura do acórdão esquecia. Não se pode ficar a pensar se decidi bem ou mal. Há sempre os tribunais de instâncias superiores para corrigirem, anularem ou alterarem alguma coisa.
Natural da aldeia do Souto, no concelho da Covilhã, António Ramos, 60 anos, é presidente do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria desde Janeiro. Apaixonado por História, o Direito surge quase por acaso na sua vida. Foi com um amigo fazer a inscrição para a entrada na universidade e ainda não sabia que curso escolher. História era a opção que levava na cabeça.