Fala através de provérbios e com provérbios explica que o apego pesa mais do que a algibeira. Fernando Varalonga, 78 anos, filho e neto de agricultores, pai e avô de agricultores, cinco gerações consecutivas no Vale do Lis. “Mais vale um gosto do que três vinténs”, atira. “Uma pessoa apaixona-se por aquilo que tem e mesmo que dê pouco mantém-se, porque gosta. Fui vidreiro 22 anos, mas nunca deixei o campo”.
Nem na juventude nem agora, apoiado na muleta, a recuperar uma perna partida, a mostrar fotografias impressas em tamanho A4 que denunciam como os terrenos de que é proprietário ficam debaixo de água sempre que chove acima da conta e os colectores transbordam, por deficiências da rede. São 30 hectares, onde espera voltar a plantar feijão, nabo, melancia e meloa, para depois vender no mercado grossista do Falcão ou através da empresa distribuidora com que costuma trabalhar.
Já foi pior, mais difícil. “Eu, se queria ir para a Ortigosa, tinha de ir de barco até à linha. O cais era aqui”, explica, às portas de Amor, onde os Varalonga estão ligados à agricultura desde antes da chamada Obra do Lis, ou seja, o conjunto de infraestruturas construído nos anos 40 e 50 do século XX para defender os campos agrícolas, fixar o leito do rio Lis, garantir redes de enxugo e instalar canais de rega, projecto que está na origem do perímetro de Aproveitamento Hidroagrícola do Vale do Lis, inaugurado em 1957, com 2.145 hectares entre a cidade de Leiria e a freguesia da Vieira, já no concelho da Marinha Grande.
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No Vale do Lis, a área cultivada está a aumentar desde 2014 e mantêm-se activos 50 a 60 agricultores. Milho (forragem e grão), arroz, hortícolas (sobretudo, bróculo) e viveiros de bacelos são, por esta ordem, as principais produções, escoadas, tipicamente, para mercados abastecedores regionais, organizações de produtores, fábricas de rações e produtores de vinhos.
Noutros tempos que não hoje, diz Fernando Varalonga, durante seis meses as famílias comiam o que as hortas e o rio davam. Além da enxada, redes de pesca, para apanhar ruivaco, enguia, lampreia, barbo e outras espécies. “Tínhamos peixe com abundância e até camarão miúdo. Fritava-se e ficava vermelhinho tal e qual como o camarão do mar. Aquilo era bom!”
Sangue novo
A meia dúzia de quilómetros, na Ortigosa, o negócio da Sociedade Agrícola do Vale do Lis é liderado por Fábio Franco, 32 anos, que se instalou como agricultor em 2014 e é responsável por nove postos de trabalho a tempo inteiro e um investimento acumulado de um milhão de euros em infraestruturas e maquinaria, até à data.
Entre estufas e ar livre, gere 40 hectares. O principal produto da empresa é a alface de quarta gama, que chega ao consumidor já lavada e cortada, logo, mais cara.
As memórias de “fazer mercados” com a mãe levam-no por um caminho diferente do tradicional. “Ao fazermos mercados perdemos qualidade de vida” e “hoje o agricultor também tem vida social”. Em vez de todos os dias trabalhar de sol a sol, não abdica de dias para jantar com a namorada, por exemplo.
Através de uma organização de produtores em Torres Vedras, a Sociedade Agrícola do Vale do Lis escoa 50 mil alfaces por semana, que acabam em restaurantes, cadeias de fast food como a McDonald’s e prateleiras de supermercados.
Os contratos são anuais. Fábio Franco não tem de se preocupar com a comercialização, nem suporta custos de armazenamento, porque as saídas são diárias. “Os produtores por norma fazem as produções sem saber para onde vão vender, sem saber preço, sem saber rigorosamente nada. E isso em termos de gestão é complicado”.
Nas culturas que gere, a tecnologia já é indispensável. Rega automatizada, monitorização da temperatura no interior das estufas através de programa informático que abre e fecha as janelas autonomamente, sondas de humidade no solo para evitar excesso de água ou stress hídrico e maquinaria de última geração, por exemplo, uma alfaia comprada recentemente que numa única passagem executa seis operações.
“O grande entrave ao desenvolvimento” do Vale do Lis, afirma ao JORNAL DE LEIRIA, é mesmo o número excessivo de proprietários e de parcelas. “As parcelas quanto maior dimensão têm, mais se tornam rentáveis. E o que acontece aqui é que as propriedades são de pequena dimensão e estamos dependentes da filosofia de cada proprietário e do destino que entender dar à sua propriedade”.
Para o país inteiro
Entretanto, na Aroeira, Monte Redondo, o maior agricultor do Vale do Lis suporta-se nos computadores e no pormenor estatístico para controlar 150 hectares em estufas e ao ar livre, duas empresas, 80 postos de trabalho e os viveiros da Germiplanta de onde saem, todos os anos, em média, mais de 100 milhões de plantas hortícolas para todo o país, através de retalhistas ou distribuição directa aos agricultores.
Na vacaria, fornecedora da Lactogal, as 300 vacas leiteiras estão sujeitas a ordenha robotizada e tanto a alimentação como a distância que percorrem ou os ciclos de reprodução se encontram representados em sistemas de gestão informatizados.
“Todos os dias eu sei rigorosamente o que os meus animais comem”, aponta Uziel Carvalho. E este “começa a ser” o perfil dos agricultores do Vale do Lis.
Com instalações onde existe reaproveitamento de águas, produção de biogás e painéis fotovoltaicos, a permitir auto-suficiência até 60% da energia consumida, em períodos do ano, o empresário, também presidente da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis, anda há 40 anos a somar parcelas, actualmente domina mais de 5% do perímetro e defende a importância do emparcelamento. “Não temos dimensão”, responde, para justificar o motivo por que os agricultores do Vale do Lis não fornecem directamente os gigantes da distribuição alimentar.
Segundo dados da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis, 15% dos 2.145 hectares do perímetro encontram-se abandonados. Por outro lado, a área cultivada está a aumentar desde 2014 – em média, 17 hectares por ano. A crise e a austeridade no período da troika trouxeram novos ventos e a dinâmica mantém-se viva.
“Desde 2014 que vimos assistindo a mais área do Vale do Lis cultivada, mas redução do número de agricultores”, confirma Henrique Damásio, administrador-delegado da Associação de Regantes e Beneficiários do Vale do Lis.
Existirão, actualmente, 11 mil parcelas e 3.500 proprietários, números considerados excessivos, pela dispersão.
As obras de modernização do regadio vão tornar os terrenos mais apetecíveis, atrair empresários da fruta e dos hortícolas com origem no Oeste e, muito provavelmente, segundo Henrique Damásio, mudar o panorama do Vale do Lis: “Temos a absoluta consciência de que se prepara o assalto, no bom sentido, às parcelas do Vale do Lis, por agricultores maiores, mais bem estruturados, com outros canais de venda, com a expectativa da água sob pressão aqui”.