Qual poderá ser o seu maior desafio neste novo cargo?
É conseguir motivar os magistrados que tenho sob a minha alçada para que consigam alcançar uma melhor produtividade e melhor qualidade da acção. Não quer dizer que ela já não seja boa, mas, fruto de várias circunstâncias nestes tempos excepcionais, estamos todos um bocadinho desmotivados. Quem tem funções de hierarquia a este nível tem de conseguir motivar as pessoas que superintende, o que implica motivá-los para alcançar os objectivos a que o Ministério Público (MP) se propõe, não só ao nível nacional mas sobretudo ao nível da comarca. A motivação passa também por reforçar o espírito de equipa. O MP está habituado, cada vez mais, a trabalhar em equipa e isso reforça a solidariedade e o espírito de entreajuda entre magistrados, que passa depois para a comunidade.
Quais são esses objectivos?
Estão divididos pelas áreas criminal, de família e menores, cível e laboral e passam por reduzir as pendências, sobretudo, nos inquéritos mais antigos. É, por exemplo, fomentar o confisco dos bens dos criminosos, que também é uma matéria muito importante, e aprimorar a acção para melhor proteger os mais vulneráveis e as vítimas. Um dos objectivos fundamentais é que haja uma maior e melhor interacção com as forças vivas da comunidade, porque isso contribui para que as pessoas compreendam melhor o que é que nós fazemos e o que é que podemos fazer por elas. É nessa medida que confiarão mais naquilo que o MP faz e em todo o sistema de justiça.
Como pretende promover essa aproximação?
Além de conferências, tenho uma prática que é fazer reuniões com determinadas entidades, como associações empresariais, municípios, associações de protecção da vítima ou escolas, para fomentar esta comunicação e para as pessoas saberem que nós estamos aqui.
Qual é o papel do MP no sistema judicial?
Grande parte das pessoas desconhece as atribuições do MP e, sobretudo, há confusão com o papel dos juízes. Muitas vezes, pensa-se que o MP é um juiz, e não é. O MP é uma magistratura paralela e equiparável à magistratura judicial, porque se rege pelos mesmos critérios da objectividade e legalidade e de busca da verdade, mas é independente dela. Caracterizaria o MP por ser uma magistratura de iniciativa e de proximidade. O MP é proactivo, não é como o juiz que espera que lhe tragam os casos. O MP vai à procura dos problemas das pessoas para os tentar resolver. Claro que o papel mais expressivo é na área criminal. Aí, dirige uma investigação criminal, que significa conduzir, com a assistência dos órgãos de polícia criminal ou fazendo ele próprio, um conjunto de diligências, que visam reunir prova para aferir se foi praticado um crime e quem é que o praticou, para deduzir uma acusação. Será depois apresentada ao juiz para levar o suspeito a julgamento [LER_MAIS]e avaliar se ele deve ser condenado ou absolvido. Mas o MP tem outras funções muito importantes, como a defesa dos mais desfavorecidos e desprotegidos. Por exemplo, na área da família e menores, na área laboral e no comércio em defesa dos trabalhadores. É importante que as pessoas compreendam quais são as concretas áreas de intervenção, porque, se assim for, confiarão melhor no sistema da justiça.
Qual a importância da intervenção do MP nos processos que envolvem pessoas mais vulneráveis?
Na área criminal, temos o crime de violência doméstica, que é dos mais participados a nível nacional e também nesta comarca. Se a tendência da criminalidade tem sido baixar nos últimos ano e meio, dois anos, isso não aconteceu na violência doméstica, cuja tendência é para aumentar. Nesse crime, lançando mão dos mecanismos que a Lei Específica da Violência Doméstica nos dá para proteger as pessoas mais vulneráveis e depois socorrendo-se de outras entidades, procura ajudar e proteger as pessoas. A capacidade de resposta do MP na violência doméstica tem melhorado imenso, sobretudo, nos últimos dois anos, quando foi emitida uma directiva da PGR que fomenta a padronização de procedimentos e a concentração e a especialização dos magistrados na direcção dos inquéritos por este crime. Em termos de produtividade e de capacidade de resposta dá outra dimensão e permite-nos, de forma mais eficaz, responder a um problema muito grave.
De que forma é que pretende dinamizar o MP para que o seu trabalho seja mais visível?
Temos um portal, que é um veículo muito importante para divulgar o que vamos fazendo, mas tem-se centrado muito na área criminal. Temos de dar a conhecer as outras áreas de intervenção, publicitando despachos ou decisões da área da família e menores, comércio e trabalho. Nesta área, com a pandemia, o número de acções está a aumentar. O MP patrocina os trabalhadores nos contratos de trabalho e na reclamação de créditos, e é uma área que vai ter uma expressão cada vez maior em termos de número e que é bastante desconhecida. Também devemos falar mais para a comunidade através de iniciativas. Tivemos os Encontros com a Justiça sobre as crianças, mas podemos organizar conferências ou conversas com as pessoas da comunidade sobre temas que interessam a todos, desde logo saber o que faz o MP.
Há falta de procuradores e de funcionários na comarca?
Começando pelos funcionários, é um problema transversal e nacional. Os funcionários dos serviços do MP têm uma carreira específica, que, na comarca, está deficitária nas duas categorias mais importantes: técnico de justiça adjunto, em 28,5%, e técnico de justiça auxiliar, em 11,76%. Os oficiais de justiça são uma peça fundamental no sistema de justiça e quando eles são deficitários isso prejudica também a actuação dos próprios magistrados. Para que os magistrados encerrem os processos ou lhes dêem andamento é preciso que eles cheguem e se não temos funcionários suficientes isso cria logo areias que não permitem o normal andamento das coisas. No MP esse défice tem uma especial agravante, porque os funcionários podem exercer as funções de órgãos de polícia criminal. Quando isto falha e quando associado a isto temos também falta de recursos nas polícias, a investigação também fica um bocadinho ‘perra’. Para poupar os funcionários para outras tarefas assoberbamos as polícias com este tipo de actos e criam-se distorções em termos de celeridade e rapidez no andamento dos processos. Ao nível dos procuradores o quadro legal da comarca é entre 53 a 56 magistrados e estão colocados 50. No entanto, está em curso um concurso de magistrados e está previsto apenas o preenchimento de 47 lugares, o que é já uma diminuição significativa.
Quantas acusações foram deduzidas em 2019 e 2020?
Em 2019, foram deduzidas 2.087 acusações, sendo certo que foram arquivados 10.948 inquéritos. Serão cerca de 12% dos findos. Foram suspensos provisoriamente 738 processos. Em 2020, foram deduzidas 1.931 acusações, arquivados 9.177 e suspensas 536, representando as acusações cerca de 14% dos processos findos.
Os números são reflexo da pandemia?
Em 2020, entraram 14.491 inquéritos, e em 2019 tinham entrado 15.076. É já reflexo da pandemia, mas também da diminuição da criminalidade em geral. Nos processos findos, em 2020, acabámos menos do que em 2019. No último trimestre de 2020 conseguimos acelerar o ritmo de encerramento dos processos, mas não foi suficiente para compensar as entradas.
Qual é a importância do MP noutros âmbitos, como por exemplo, nas cláusulas abusivas?
O Departamento Central do Contencioso do Estado e Interesses Colectivos e Difusos centraliza a coordenação dessa área. Estamos a falar, por exemplo, da propositura de acções relativas a contratos de adesão com as operadoras de telecomunicações. No ambiente e saúde pública, muitas vezes, o MP age com base em notícias dos meios de comunicação social. Claro que há zonas do País, onde esta intervenção é mais expressiva. Tem a ver com os direitos do consumidor, o ambiente, a saúde pública, sendo que a nível mais local e regional não há muita expressão.
O que têm feito com a poluição das suiniculturas da região?
Temos tentado por várias vias, ao nível penal e, sobretudo, com a colaboração e a dinamização da GNR. O crime ambiental, às vezes, é de prova difícil. A legislação é também um bocadinho árida, muita e dispersa. Temos tido alguma dificuldade na angariação de prova desses crimes. Apesar de termos bastantes processos, muitas vezes, a prova é difícil, porque nem sempre se recolhe logo ou porque as análises não permitem enquadrar aquela situação do ponto de vista criminal e vamos para o contra-ordenacional. Ainda há bastante a fazer nessa área. Há crimes que acabam por prescrever.
Há forma de evitar essas situações?
O MP é particularmente cuidadoso, porque a prescrição significa a falha do sistema. Se prescrevem quando foram denunciados num tempo razoável e o MP não é capaz de os investigar e de encerrar o processo antes da prescrição ocorrer, é uma falha do sistema e tem sido uma das preocupações cruciais do MP, que tem criado mecanismos hierárquicos para, não só controlar, como as evitar. No crime económico-financeiro é evidente que as investigações demoram mais tempo, porque exige meios tecnicamente mais complicados e morosos e perícias que demoram muito tempo. Durante muitos anos, houve míngua de recursos, o que conduziu a que algumas dessas investigações tivessem ficado vários anos à espera da produção de prova.
Por vezes acusa-se o MP de não conseguir condenações por ter conduzido mal a investigação. É assim ou há crimes mais perfeitos que outros?
É evidente que acontece, até porque cada magistrado tem a sua maneira de trabalhar, sem prejuízo da uniformização de procedimentos, mas também há a pressão dos números. É trabalhar muito e depressa e isso, por vezes, é inimigo de se reunir no inquérito a prova suficiente e bastante para sustentar a acusação que depois é deduzida. Mas, cada vez mais há preocupação em reunir a prova mais sólida possível para aguentar aquela acusação. O nosso sistema processual penal é o que é, ou seja a prova produzida no inquérito, por regra, não vale em julgamento. Tem que se voltar a produzir. Numa das últimas reformas do Código de Processo Penal passou a ser permitido confrontar a pessoa com as declarações proferidas na inquirição perante o magistrado do MP, se houver discrepâncias com o que é dito no julgamento. Outra coisa muito importante é que as declarações do arguido, feitas na presença do magistrado do MP e de um defensor valem como prova no julgamento. É já um avanço.
De que forma o MP tem contribuído para o melhoramento do sistema judicial?
Digo com muito apreço que o MP é o motor de mudança de muitas coisas, não só por via dos recursos, mas também pela sua acção na mudança de mentalidades. A maneira como o MP olha actualmente para a violência doméstica é muito diferente daquela como olhava há cinco anos. Isso significou um esforço de mudança também da sua perspectiva. O MP tem também que tentar mudar a mentalidade do julgador, porque ainda vemos muita desvalorização da violência doméstica nas condenações: na ausência delas, na alteração da qualificação jurídica, em que o crime de violência doméstica passa a ofensa ou outro. Tenho posto algum empenho nisso e ainda me vou empenhar mais para uma melhor articulação entre os inquéritos e o julgamento. Se essa articulação for mais estreita, as acusações vão tendencialmente melhorar, não redundarão em absolvições e não haverá alterações da qualificação.
Será possível a transmissão de julgamentos mais mediáticos como por exemplo o que sucedeu na decisão da instrução do caso Marquês?
Em tese não vejo porque não. Claro que tem de ser avaliado em cada processo. Contribuiria para que as pessoas percebessem melhor o que se passa. Quando perguntam aos cidadãos como funciona um tribunal e o que faz o MP, pensa-se no modelo que vemos nas séries americanas, o que é errado. A transmissão de alguns julgamentos, não em massa porque isso banalizaria e não traria credibilidade nem dignidade à função judicial, contribuiria para as pessoas perceberem melhor o que é que se passa, como se passa e reforçaria a confiança do cidadão nos tribunais.
Da violência doméstica para os incêndios