As memórias que ficam dos tempos passados enquanto criança na praia, em pleno Verão, ficam para sempre guardadas no cantinho das boas recordações.
Entre mergulhos e castelos de areia, Irina Rodrigues sempre observava, com grande curiosidade, um objecto em particular. Era o disco, não aquele que lhe trouxe fama, mas o outro, tão em voga no final do século passado, com os seus voos longos e caprichosos.
A miúda não resistia e tentava, sempre que possível, tocar-lhe. “Quando tinha autorização para brincar, só nas horas de menor calor, de chapéu na cabeça e muito protector solar na cara, era daquelas meninas que quando via um disco ia a correr apanhá-lo para devolver e assim infiltrar-me nas brincadeiras dos outros meninos. Sempre gostei de ver coisas pelos ares e esse disco voava muito bem. E eu, pequenita, já conseguia pô-lo a voar muito longe”, recorda a atleta do Sporting.
Hoje, o utensílio é outro, apesar de ter o mesmo nome e o mesmo propósito de chegar o mais longe possível. “Aos 13 anos voltei a pôr discos a voar, mas uns mais adaptados à minha força.”.
É verdade, A carreira desportiva no atletismo já começou há 17 anos, na Juventude Vidigalense, e a qualificação para Tóquio é já a terceira consecutiva para Jogos Olímpicos, após Londres, em 2012, e Rio de Janeiro, em 2016.
Irina e José
Como recordar é viver, decidimos trocar-lhes as voltas. São ambos de Leiria, uma é atleta olímpica e estudante de Medicina, o outro é presidente da Associação Portuguesa de Ultimate e Desportos de Disco, fundador dos Leiria Flying Objects e docente do curso de Desporto e Bem-Estar na Escola Superior de Educação e Ciências Sociais.
Convidámos Irina Rodrigues e José Amoroso a trocar de papéis e assim, voltar a experimentar o objecto um do outro, passados muitos, muitos anos. Homónimo, é bem verdade, mas com características bem distintas. De tal maneira que um não chega aos 200 gramas e o outro pesa um quilo preciso.
Poder “brilhar” após “tanto sofrimento”
“Estes Jogos Olímpicos vão ser sempre especiais, porque venho de uma experiência traumática da edição anterior, no Rio de Janeiro. Foi tanto azar que não o desejamos a ninguém, nem ao nosso maior inimigo”, atira Irina Rodrigues, referindo-se ao facto de ter partido a perna a treinar, já no Brasil, em vésperas de competir, perdendo “anos de preparação”. “Vinha da fase mais negra de que me lembro. Estava coxa, psicologicamente um caco e tinha ficado sozinha. Os poucos amigos que tinha revelaram-se ali, porque toda a gente fica um pouco constrangida de falar com uma pessoa que está a passar uma fase tão negra, porque não se sabe o que se há-de dizer.” Mudou de treinador e passou a estar dividida entre três cidades: Coimbra para estudar Medicina, Leiria para viver e Angra do Heroísmo para treinar com muita intensidade. No entanto, a pandemia voltou a deixá-la só, já que em Março de 2020 ficou sem equipa técnica. “O meu treinador, que tem 72 anos, ficou retido na ilha Terceira e eu em Leiria. Tinha de treinar sempre sozinha na garagem de minha casa e tive de pôr lá uma Nossa Senhora de Fátima para lhe pedir que não me lesionasse, porque nem sabia se me podia tratar.” Para a lançadora de 30 anos, o facto de estar em Tóquio é uma “bênção”. “Toda esta resiliência implicou muito sofrimento, mas também muito crescimento. Por isso tudo, é muito especial poder estar nos Jogos Olímpicos. Já falhei tanto e já tive tantos momentos bons, que agora só quero usufruir. Apesar de todo o sofrimento, ainda continuo a brilhar.”
Começámos pelo mais leve. “O movimento é assim?”, perguntou a atleta. Não era. “A pega é o mais importante e tens de encaixar bem a mão no disco. Sempre que sentires que o disco não está seguro é porque não está bem”, responde o professor.
Entre gargalhadas, ela vai ganhando confiança, começa a lançar melhor e só falta acertar na precisão, decorrente de um problema expectável para o manuseamento eficaz do disco de ultimate frisbee por parte de uma lançadora: o “excesso de força”. “És muito explosiva. Tens de fazer com mais calma”, reclama José Amoroso, a quem Irina Rodrigues responde com uma pequena história.
“Sabe, professor, tinha 12 anos quando o meu pai me ensinou a andar de lambreta. Disse-me para ir devagarinho, para acelerar só um bocadinho, mas eu parti o acelerador e a mota foi contra o muro. Isto sou eu na vida. Sou muito bruta.”
A prensa
Seguimos para a peça mais pesada. O professor, que está a concluir o doutoramento precisamente sobre o espírito de jogo no ultimate frisbee, tinha 16 anos quando experimentou lançar dardo, martelo, peso e disco pela primeira vez.
Era amigo dos atletas de relevo na altura, como Duarte Basílio, Carlos Afonso ou Paulo Bernardo, e um dia, a convite de Carlos Carmino, hoje técnico nacional de marcha e na altura treinador do Bairro dos Anjos, avançou.
“Treinávamos na garagem do Carmino e tenho a imagem fabulosa de eu, o Basílio e o Afonso em cima da prensa, que já tinha a carga máxima, para o Paulo Bernardo conseguir trabalhar a explosividade. Foi assustador e quase saíamos projectados.”
Na altura, se o peso correu bem a José Amoroso, até pela experiência que tinha como jogador de andebol, já o disco não foi tão bom assim. “Pelo menos consegui nunca lançar em sentido contrário”, diz, em jeito de brincadeira.
Atento às indicações de Irina Rodrigues sobre a forma de pegar no disco e o trabalho dos dedos – “é como aquele gesto que significa roubar” – conseguiu adaptar-se, como homem do desporto que é.
Por fazer ficou o aperfeiçoamento do trabalho de pés e da própria rotação. Irina Rodrigues gostou do que viu. “Foi bom, professor, mais uns treininhos e chega lá. Combinamos outra aula para depois dos Jogos Olímpicos?”