O presidente da Fade in, Carlos Matos, durante uma sessão de apresentação da Leiria Capital Europeia da Cultura, disse que o título de Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco não se começou a escrever há dez anos, mas nos anos 60 e 70. Concorda?
A Leiria Cidade Criativa da Música da Unesco começou, no século XIX, com a criação das bandas filarmónicas! É óbvio que o Carlos tem razão, no sentido em que houve um “salto qualitativo” nessas décadas. Se calhar, temos de recuar menos… Se olharmos para a qualidade, de há 25 anos, das 11 bandas do concelho de Leiria… era mediana, ou abaixo. Houve um salto qualitativo grande que começou pela formação dos músicos. Muitas bandas enviaram vários para o conservatório, tal como nós fizemos na SAMP, e atrás de mim, do Paulo Lameiro e do Fernando, vieram outras gerações que se foram formando e hoje são docentes em muitos outros estabelecimentos de ensino ou que foram para o estrangeiro. As bandas de Leiria conseguiram motivar esses jovens para uma formação a alto nível. As formações eram muito conservadoras nas questões dos ensaios, do rigor e da disciplina. Se falhássemos a muitos ensaios, diziam-nos que não fazíamos falta alguma. Perderam-se muitos músicos assim. Com o tempo, começaram a perceber que era mais positivo ter um músico com melhor formação, mesmo não indo a todos os ensaios, mas que estava presente nos importantes, a motivar outros jovens pelo seu exemplo. Começámos a ter formações com muita gente formada e o nível subiu. Automaticamente, o nível dos maestros também teve de subir. Eles fizeram formações, reciclagens e masterclasses e a qualidade global das bandas aumentou. Em Leiria, há outro aspecto fundamental, que foi a criação da Banda Sinfónica da Associação das Filarmónicas do Concelho de Leiria (AFCL). Levámos 20 anos, desde as primeiras conversas à concretização. Nos anos 80, no conservatório, em Lisboa, já falávamos dessa possibilidade. Mas nunca aconteceu nada, até que houve uma reunião entre o vereador da Cultura e a AFCL e, por casualidade, a minha Direcção não podia ir e fui eu. Estavam-se a discutir os problemas normais, o financiamento, a falta disto e daquilo… levantei o braço e fiz uma provocação. Perguntei o que nós, as bandas, já tínhamos feito para convencer o vereador a dar mais dinheiro. Aproveitei para falar do projecto de criação de uma banda sinfónica, que reuniria a massa crítica e qualitativa das nossas bandas. A coisa correu bem e todos ficaram sensíveis ao assunto. Começámos a trabalhar, criámos um regulamento e, nesse ano, deu-se o primeiro concerto. Juntámos os melhores músicos da AFCL, oferecemos-lhes uma semana de formação, com um maestro de topo. O primeiro foi Jean-Sebastien Béreau, maestro de renome internacional que foi o meu segundo professor e professor do meu primeiro professor. Foi uma maneira excelente de estrear a iniciativa e o Município percebeu que a matéria-prima era representativa dos melhores amadores das bandas. Agora, o Concerto de Ano Novo, é realizado sempre pela Banda Sinfónica da AFCL. São mais-valias que ajudaram a obter o título de Cidade Criativa da Música da Unesco.
E boa parte dos músicos com raízes na região e mais conhecidos a nível nacional e internacional, também passaram pelas filarmónicas.
Sim. Até os das bandas pop ou do jazz. Temos o Rui Costa, temos o João Maneta, o Manuel de Sousa (Manolo) e outros, que passaram pelas bandas, e hoje são vibrafonistas e guitarristas de jazz. Nos anos 90, a SAMP criou uma rubrica chamada Noites de Jazz e começámos a trazer pessoal do Hot Club, para fazer formação cá. Foram sementes lançadas à terra. Essas oficinas criaram uma certa apetência e houve uma geração que aproveitou. Foi o caso do César Cardoso, mentor da Orquestra de Jazz de Leiria, que foi um dos primeiros dessa geração. A reboque dessa semente, reactivou-se o Festival de Jazz da Alta Estremadura. Foi-se movimentando a música de Leiria em vários universos. Numa candidatura a cidade criativa, o facto de existirem 11 bandas, a quantidade de músicos que elas envolvem, quem saiu destas bandas – as bandas pop, os Silence 4, e muitos outros projectos mais recentes com uma variedade musical muito abrangente -, não tenho dúvida que contribuíram para a cidade conseguir o título.
A boleia que deu à luz um maestro
Com tantos valores, numa candidatura a Capital Europeia da Cultura, poderá haver a tentação de sobrevalorizar a primeira de todas as artes, quando temos bons exemplos em manifestações como o teatro ou a dança?
Estar-se-á a fazer um esforço para compensar as outras áreas. Se calhar, ao longo das gerações, não soubemos cuidar bem as outras artes. Em Leiria, não tivemos apenas bons exemplos na música. Desde há décadas que temos figuras importantes da cultura nacional na arquitectura, na pintura, na escultura… grandes mestres. Tivemos, há pouco, a exposição Nós, no Museu da Imagem em Movimento, que fazia um retrato incrível dos pintores e escultores, artistas de grande dimensão, nacional e internacional. Mas temos poetas… e muitas áreas culturais. Agora, em termos de disseminação pelo território, as bandas filarmónicas são uma marca distinta. Não haverá muitos concelhos a nível nacional que tenham 11 bandas tão activas e dinâmicas.
A imersão precoce no mundo da música, como acontece nos Concertos para Bebés, projecto onde participa, pode ajudar a melhorar os jovens a alcançar outras dimensões intelectuais, a melhorar a apreensão de conhecimentos e até no trabalho de equipa e o relacionamento interpessoal?
A questão dos benefícios, cientificamente, é alvo de uma grande discussão. Fala-se do “efeito Mozart”… mas há uma coisa que, de facto, é indiscutível. Se olharmos a nível planetário para os povos, a música faz parte de todas as culturas. É universal. É um veículo de comunicação entre povos diferentes [LER_MAIS]e, se calhar, mais do que as outras artes, por se tratar de um fenómeno físico e acústico, que nos toca no interior, que nos provoca estímulos e sensações físicas, que tem o poder de nos mover e alterar. É uma disciplina muito formativa. Podemos sentir relaxamento ou raiva, quando a escutamos. Quando dizemos que os bebés têm de estar expostos o mais cedo possível à música, tem que ver com esse benefício de criar pessoas mais ricas, que usufruem de uma experiência sonora, sensitiva e muito abrangente. Os Concertos para Bebés não são um projecto pedagógico mas de estímulo. De oferecer aos bebés, que são público tanto quanto os adultos, a oportunidade de tomar consciência e de ter um contacto abrangente com a música. É por isso que a oferta musical nestes espectáculos vai da música electrónica ao barroco ou ao jazz. Para mim, enquanto músico e pela rela- ção humana, os concertos também têm sido de grande aprendizagem. O que recebemos em troca é muito rico. A música também nos educa enquanto comunidade e as nossas bandas são um exemplo disso. Muitos dos valores de sociedade que as gerações que por lá passam vão assimilando vêm das formações. São micro-comunidades que permitem fazer parte de um grupo onde está, de um lado, um agricultor e, do outro, um médico, um engenheiro ou electricista. Pessoas com vivências quotidianas e formações completamente distintas…
Como é o mercado de trabalho em Portugal, para quem tira um curso superior de música?
Somos um País muito pequeno e, apesar de termos muitos músicos, do ponto de vista profissional, não temos uma tradição muito forte e enraizada. O que temos do ponto de vista profissional para músicos? Poucas orquestras; a do São Carlos, da Gulbenkian, a Metropolitana…, bandas militares e, do ponto de vista prático, o que resta ao músico é criar os seus próprios projectos ou ir para o ensino. Aí, nos últimos 25 anos, formámos muita gente, criámos muitos Em destaque profissionais. Neste momento, não há capacidade de o País dar emprego a todos os músicos, a não ser que se crie uma escola oficial em cada aldeia. Isso não vai acontecer porque não há recursos financeiros em Portugal. O ensino articulado funciona, mas as torneiras têm sido constantemente fechadas. Aquilo que parecia uma solução, não o é. Deram um bocadinho e começaram logo a cortar. O nosso País nunca foi um sítio onde se investisse realmente na cultura. Há muitos anos que lutamos pela meta de 1% do PIB.
A interacção e sentido de comunidade que as bandas musicais partilham são um trunfo quando se trata de candidaturas a eventos como a Capital da Cultura?
Sem dúvida e Leiria tem de aproveitar isso. Nos últimos anos, têm-se criado essa expectativa em várias áreas artísticas e mesmo da música. É o pop, é o rock, é a electrónica com a Surma, mas a cidade criativa tem de aproveitar esse património. Nos últimos anos, temos lutado por alguns projectos, que estamos a conseguir implantar. No ano passado, iniciámos um ensemble da AFCL, formado por profissionais da música de Leiria. Em 2020, gravámos um caderno filarmónico, com música de Beethoven, e estamos, esta semana, a gravar o segundo caderno filarmónico, no Teatro José Lúcio da Silva, com apoio do Município. Este é o caminho. Leiria, de facto, tem de potenciar e usar a sua matéria-prima ao mais alto nível. É fundamental fazermos justiça ao título de Cidade Criativa da Música, que é diferente da candidatura a Capital Europeia da Cultura, onde é precisa uma visão super-abrangente. Por isso é que a cidade se associou aos outros 25 municípios, numa jogada inteligente, porque somos mais eficientes em rede do que sozinhos. Ser Cidade Criativa da Música é uma marca. O Douro tem o vinho e nós temos a música. É a nossa marca!
Recentemente, retirou-se de um projecto que iniciou há quase 20 anos. O que aconteceu?
Não foi nada de especial. Foi um fim de ciclo. As escolas fazem opções pedagógicas e resolvem mudar de sistema e nós concordamos ou não. Fui para aquela escola criar aquela orquestra, fomos evoluindo e chegámos a um formato que me parecia estar bem e a dar frutos óbvios, mas a escola achou que queria outro caminho. Disse à Direcção que não contassem comigo, se aquele era o que queriam seguir. Foi uma opção. Abri mão de 17 anos da minha vida, de um investimento muito grande. Aprendi que, em Portugal, temos uma matriz diferenciadora. Somos um país com 800 bandas filarmónicas. São muitos milhares de músicos e, nos últimos 20 anos, o nível subiu para uma qualidade incrível. Não é a toa que temos dos melhores músicos de sopro formados em Portugal, a ocupar lugares nas melhores orquestras europeias. Mas, voltando à pergunta, em 2004, a Escola Superior de Música de Lisboa (ESML) estava com um problema. Tinha demasiados músicos de sopros, mas não havia espaço para eles na orquestra sinfónica, não os conseguindo rodar em actuação. Fizeram-me o convite para apresentar um projecto de criação de uma orquestra de sopros. A minha carreira começou a orientarse mais para a direcção. O grupo cresceu e começámos a ter um ritmo de trabalho muito regular. Comecei a ter cada vez menos tempo para o saxofone e investi completamente na direcção. Entretanto, tornei-me membro da WASBE – World Association for Symphonic Bands and Ensembles, uma associação que reúne maestros, professores e bandas de todo o mundo que realiza uma conferência internacional bienal. Em 2008, tive um primeiro contacto com um encontro organizado pela WASBE e outra organização, em Tenerife, no Congresso Ibero-Americano. Fui convidado para dirigir e fazer uma palestra. Fiz vários contactos internacionais de topo com colegas americanos e europeus de orquestras de sopro e comecei a convidá-los a Lisboa e eu fui aos EUA várias vezes. Fruto dos contactos que fiz, fui contactado por uma editora dos Países Baixos, que tem repertó- rio para sopros, que gostaria de gravar connosco. Coloquei como condição gravar repertório sério. Disseram-me que gravasse o que quisesse, dentro do catálogo deles. Escolhi os compositores que pretendia e gravámos dois discos para essa editora. Consegui incluir uma obra portuguesa, do Luís Cardoso, no primeiro disco. Foram trabalhos importantes que deram uma imagem internacional à orquestra e ao nosso projecto.