Leia a entrevista integral a Ricardo Pocinho
Portugal trata bem os seus idosos?
Tem dias. Temos uma conjuntura actual que não é muito favorável ao envelhecimento em Portugal, pese embora o facto de sermos um País com uma estrutura e características únicas para se envelhecer. Temos em Portugal centenas de pessoas, arriscaria a dizer milhares, que procuram o nosso País para envelhecer, sobretudo nas regiões do interior – trazendo dinâmica populacional – na franja litoral, sobretudo do Algarve, por conta do clima que vivencia todo ano. No entanto, se hoje alguma condição nos deve mover para este não bom trato para com os idosos, deve ser uma antecipação clara daquilo que pode acontecer a curto espaço de tempo. Temos hoje uma cobertura generalizada, diria até de excelente qualidade, salvo algumas excepções, de estruturas. As pessoas que cuidam de idosos estão muito motivadas para o fazer e começam a estar melhor preparadas. Temos um desfasamento daquilo que era a nossa cultura de cuidador. Tínhamos a mulher no centro do cuidado e passamos para um período de máxima institucionalização por conta de vários factores: nos primeiros anos, a seguir ao 25 de Abril, pelo facto de às mulheres ser dada a liberdade de trabalhar e de optar por essa condição económica de vida da família, hoje por uma necessidade inequívoca do Estado. Temos falta de pessoas em idade activa e, portanto, há necessidade de institucionalizar os pais porque não podemos cuidar deles. Depois também por alguns desequilíbrios demográficos que foram acontecendo. Hoje as pessoas são pais, cada vez, mais velhos e têm crianças em idade com muita necessidade de acompanhamento, na idade que têm os pais velhos. A opção de se optar por cuidar dos filhos e aos pais requerer quem cuide deles, é adequada. O que devia preocupar todos no futuro é a sustentabilidade destas organizações. O Estado comparticipa as IPSS com cerca de 40% do valor absoluto do custo médio de uma cama, que hoje ronda os 1.026 euros. Quem paga o resto são as famílias, porque ainda temos muitas pessoas com pensões ao nível de 300 euros ou um pouco mais do que isso. Se hoje temos de estar preocupados com aquilo que é o envelhecimento, daqui por dez anos a nossa preocupação terá de ser maior e daqui por 20 ou mais anos poderemos estar até numa situação de não conseguir corrigir nada. Temos uma tendência global para falar de taxas de natalidade como forma de resolver o problema. Efectivamente, o problema começa por se resolver aí, mas são precisos 18 anos e mais nove meses de gestação para se resolver, porque é quando as pessoas podem começar a trabalhar.
É por isso que é necessário aumentar a idade da reforma?
Aqueles que acham que 67 anos é muito tempo a trabalhar e tardiamente para a reforma, diria que é inevitável que a reforma suba para mais de 70 anos em Portugal. Hoje, Portugal vive com um problema de necessidade de mão-de-obra e se tem condições físicas, geográficas, de clima, de cultura, de gastronomia, de tudo o que as pessoas adoram quando nos vêm visitar, muitos são os que não se querem cá fixar, porque é um País com uma massa salarial baixíssima e com um custo de vida extraordinariamente caro. Basta olharmos para este sufoco dos combustíveis que são taxados em Portugal como um produto de luxo, quando são bens de primeira necessidade. A maioria das pessoas necessita de um automóvel movido a gasolina, porque as soluções alternativas que existem não são para a bolsa do comum dos mortais.
Que respostas existem para o envelhecimento activo?
O envelhecimento activo é a prática de uma actividade que traga felicidade e satisfação à pessoa. Podem ser aulas de natação, aprender um instrumento ou bordados, literatura, pintura e até viajar. A actividade tem de permitir um estímulo e uma manutenção do nosso cuidado cognitivo e do papel social. O encontro é entre pessoas e isto qualquer actividade serve. É tempo de todas as associações se juntarem à volta de uma mesma discussão, coordenados pela autarquia, que é o governo local. Esta responsabilidade das autarquias é até maior, porque são as financiadoras da maioria destas instituições e têm os meios. Por outro lado, há que aproveitar e potenciar as relações interageracionais. Os mais novos têm muito a ensinar aos mais velhos e os mais velhos têm a ensinar aos mais novos um valor fundamental: o respeito pelo próximo.
Há menos possibilidade de cuidar dos idosos, mas o papel do cuidador informal também continua a ser pouco reconhecido. Porquê?
Os cuidadores informais é um estatuto que, pese embora ter reconhecimento, não é reconhecido. Temos de ter consciência que há coisas demasiado sérias para serem levadas para a dimensão da política partidária. Há necessidade de repensar o papel do ser humano nesta [LER_MAIS]sociedade. Somos uma sociedade de humanos pouco humanizada. Falamos de um sector solidário que não tem solidariedade nenhuma. Há um desajustamento em relação aos cuidadores informais que não é funcional. Não podemos comparar aqueles que são os cuidadores formais, que têm uma estrutura residencial para pessoas idosas, ou os cuidados continuados e paliativos e aquilo que tem uma pessoa per si. O ser cuidador informal não pode ser um emprego. Precisamos criar a ideia do cuidador poder ser apoiado por uma rede. O sítio dos idosos é, enquanto autónomos, na sua residência. Quando com necessidades, nas estruturas residenciais para pessoas idosas. Não consigo categorizar qual é o interesse de ter uma pessoa com uma comorbilidade que a impeça sair da cama, ficar em casa deitada a dormir, só porque o filho está lá. Os nossos pais e avós são melhor cuidados se estiverem num sítio que foi pensado e com pessoas preparadas para lidar com aquele tipo de situações. Aos filhos cabe o papel de ter a maior proximidade possível a essas estruturas. Acho até interessante haver pessoas que se colocariam no papel do cuidador, se lhes pagassem. Sem lhes pagarem não são capazes de visitar os seus pais nos lares. É tempo de abrir um amplo debate sobre o funcionamento destas estruturas e até sobre o próprio comprometimento que a Igreja quer ter.
Qual poderá ser o seu papel?
A Igreja é o principal dinamizador deste Estado Social, porque a maioria das instituições têm características religiosas. A Igreja tem de se posicionar de forma diferente, garantindo às pessoas que têm o respeito que merece. O valor da Igreja é incomensurável. Tem hoje a rede necessária, as características adequadas para poder ser a própria Igreja a potenciar uma renovação deste estado e até uma luta contra o interesse económico neste sector. Portugal vivencia hoje um assalto por parte de privados que querem entrar em Portugal. Durante os últimos 15 anos em que me dediquei a este sector, só tenho conhecido gente boa, mas as pessoas não são reconhecidas pela actividade que fazem. E quando falo de reconhecimento não é apenas dinheiro. Falo até do próprio reconhecimento societário. A formação tem de entrar aqui como pilar base, sobretudo, na protecção da vida e da saúde destes cuidadores. A maioria deles não foi preparado para gerir emoções e trabalham com elas, não foram preparados para lidar com cargas e é aquilo que fazem todos os dias. Valorizar este sector é também uma oportunidade para garantir a sustentabilidade do País nalgumas regiões, porque, sendo o maior empregador, também é o único que compra localmente. Este é um sector que tem um potencial enorme e que a visão que temos dele é do princípio da justiça caritativa, do mecenato, das dádivas e dos peditórios. É um sector importantíssimo para a economia portuguesa e tem de ser alavancado de outra forma.
Tem havido pressão para se criarem creches públicas, mas o mesmo não sucede com lares públicos.
A construção de lares públicos, se mais não fosse, teria razão de ser pelo facto de se permitirem lares ilegais. Só por isso, o Estado já teria de ter uma responsabilidade maior. Não podemos encerrar definitivamente um lar, porque não temos onde meter os utentes. Temos uma desadequação em muitos limites, até no limite da protecção das pessoas. Temos uma Comissão de Protecção de Crianças e Jovens em Risco, mas não temos aqui nenhuma protecção para os idosos em risco. Um idoso é um ser humano carregado de história de vida, mas também de vulnerabilidades e necessidades. Quando assistimos a um aumento da esperança média de vida, sabemos que a maioria de nós vai ter um conjunto de comorbilidades, um crescente declínio cognitivo e de doenças neurodegenerativas ou princípios de demência. Deveríamos ter um acautelamento legal, por exemplo, para que o Estado pudesse intervir sobre aquilo que é a opção dos filhos. Quando os técnicos de um apoio domiciliário verificam que a pessoa está a decair em contínuo, temos a responsabilidade de acudir à segurança das pessoas. Envelhecer em casa só faz sentido se for com qualidade. Se quisermos ter ganho naquilo que é a nossa actividade, ganhamos todos se colocarmos as pessoas, enquanto são autónomas, neste tipo de respostas. O interessante era termos pessoas que por vontade própria fossem para os lares e chegarmos a lares e não estarmos a vivenciar um hospital sem profissionais de saúde, que é outro problema. A Igreja, pela expressão que tem, é talvez a única instituição capaz de ser mobilizadora e conseguir encabeçar este princípio básico. A própria Associação Nacional de Gerontologia Social tem feito diversas diligências para conseguir uma recepção no Vaticano, para apresentar um conjunto de medidas que têm de ser tomadas. Não podemos ter hoje estruturas residenciais para pessoas idosas que se chamam Instituições Particulares de Solidariedade Social, que prestam apoio social e cuidados de saúde. Temos uma legislação ténue, que permite às instituições, por exemplo, viverem com 39 utentes e não terem a obrigatoriedade de ter um enfermeiro 24 horas por dia; ter cada vez mais pessoas com estados demenciais e não serem obrigados a ter um psicólogo ou ter pessoas sem mobilidade e não terem fisioterapeuta. As instituições são verdadeiramente quem salva todos os dias o Serviço Nacional de Saúde. As IPSS são a melhor parceria público-privada do Estado. Este tipo de estruturas cuida de pessoas e da sua saúde e não está equipada com os meios necessários e é financiada em 0 cêntimos pelo Ministério da Saúde. É muito importante que falemos de creches, mas também é muito importante olharmos para o facto de Portugal ter num destes próximos dias mais de 50% da sua população com 65 anos e termos estruturas que não funcionam.
Qual a importância das universidades seniores para o envelhecimento?
Desde 2014, podemos referenciar as universidades seniores como sendo uma boa resposta, e digo esta data, porque, com toda a vaidade do mundo, foi quando fiz a minha primeira tese de doutoramento. As pessoas que estão nestas universidades seniores são mais resilientes ou mais resistentes àquilo que são as adversidades geradas por ansiedades, depressões comportamentos de tristeza e de solidão. Têm um bem-estar aumentado e uma característica de sociabilização muito maior. O único projecto que conheço em Portugal que é gratuito para todos é o ASAS da ANGES [Associação Nacional de Gerontologia Social] e fazemos uma luta hercúlea todos os dias para conseguir computadores e acesso à internet gratuitos para as pessoas que não o têm. Mas há que repensar as universidades seniores, porque algumas são centros de entretém.
Defende um curso para a transição para a reforma. O que seria?
A transição para a reforma é um dos maiores desafios. As pessoas não se sentem velhas apenas pela idade, mas também por aquilo que não fazem, pela sua inadequação, por a sua vida activa terminar. A idade da reforma pode ser um dos melhores tempos da nossa vida, já que temos acautelado, de alguma forma, a segurança em saúde e vão havendo fármacos que nos permitem viver muitos anos com qualidade. É aqui que defendo os cursos de preparação para a reforma e não gerirmos o ser humano por decreto. Por exemplo, durante a pandemia falou-se do ex-director-geral da Saúde [Francisco George]. Fez 70 anos e foi reformado compulsivamente. Um dos mais interessantes cirurgiões do nosso País, Manuel Antunes, deixou o sector público. Podíamos olhar para estas pessoas e dizer que tinham idade para parar, mas um é o presidente da Cruz Vermelha e o outro continua a operar num hospital privado. Eles queriam trabalhar e não os deixaram. Na minha profissão, uma pessoa de 70 anos está no auge da sua vida intelectual. Por outro lado, temos pessoas com profissões altamente desgastantes e que aos 55 anos deveriam estar reformadas, mas são mantidas nos trabalhos por obrigação. A reforma não deve ser por decreto, mas por vontade, sempre que possível.
A verdade é que muita gente tem o desejo de se reformar cedo.
As pessoas também deveriam poder regressar. Ninguém pode experimentar a reforma. A reforma para a maioria das pessoas é um efeito libertador. O curso de preparação para a reforma não era mais do que advertir as pessoas para aquilo que é esta viragem da sua vida. É interessante que passamos uma década – entre os 8 e os 18 anos – com toda a gente a perguntar o que é que queremos ser quando formos grandes. Depois passamos 40 ou coisa parecida a trabalhar e ninguém nos pergunta o que é que queres ser quando fores reformado. Queremos pessoas que transitem para a reforma num perfeito estado, o que significa que trabalharam até ao fim dos seus dias também em perfeito estado. As empresas têm de ser hoje mais adaptadas a este estado e cultivar aquilo que é a ciência da felicidade dentro das instituições, permitindo que as pessoas se realizem e sejam felizes. Não é boa ideia olharmos para alguns empresários que pensam que resolvem tudo com puffs. É preciso bom trato para com as pessoas e, sobretudo, preocupação com as suas vidas pessoais. O trabalho não tem um limite, que às vezes se tenta impor, dos problemas das pessoas não entrarem dentro das empresas. Têm de entrar e ser resolvidos lá, porque é lá que as pessoas passam a maioria do seu tempo. Se quisermos acautelar que sejam bons trabalhadores, temos de dignificar o seu estado de vida pessoal.
As organizações já se preocupam com o bem-estar dos seus colaboradores?
A partir do momento que continuamos a falar de empresas-modelo devemos estar todos preocupados. Há menos de uma década, o Governo instituiu uma norma para o circuito de qualidade das empresas, que é a norma conciliadora da vida profissional, pessoal e familiar. Em Portugal não existirão dez instituições que tenham esta norma implementada. Temos uma pós-graduação em Risco e Bem-Estar nas Organizações, na ESECS, e convidámos para vir falar o Ricardo da Costa, administrador do Grupo Bernardo da Costa. Percebemos que foi a primeira empresa em Portugal, e única, a ter um gabinete de felicidade organizacional. Todas deviam tê-lo, porque isso não é mais do que o departamento de recursos humanos. Mas os recursos humanos das empresas não são mais do que a antiga secção de pessoal para verificar férias, faltas e licenças. Quando falamos de recursos humanos quase sempre somos atirados para uma coisa que se chama dinheiro. A maioria das pessoas não trabalha por dinheiro, trabalha para o bem-estar, por realização pessoal. A maioria das pessoas prefere mil vezes um obrigado do que o aumento do vencimento. As pessoas preocupam-se muito com aquilo que é sustentabilidade financeira. Todos nos preocupamos em fazer bons relatórios de contas, bons orçamento e depois não há mapas de pessoal anexos a isto. Temos de querer ter uma cultura empresarial diferente, olhar para a pessoa como um valor humano e não como um recurso humano. Não é um recurso no sentido de objectivar apenas a realização de uma tarefa que leva ao lucro. Tem que ser alguém que, para além de conseguir isso, consegue para si mesmo a satisfação pessoal. Não há ninguém que com a mão entalada na porta consiga cantar e é assim que as pessoas vivem no seu ambiente de trabalho, como se tivessem uma guilhotina sobre a cabeça.
Há que ter líderes e não chefes?
O líder é aquele que vai com os outros. Não é aquele que vai às costas dos outros. Ainda existem muitas empresas que esquecem o que é a sua responsabilidade social e que não cuidam de fazer algum investimento naquilo que poderia melhorar a condição de vida dos seus trabalhadores. Somos uma sociedade extraordinariamente capitalista, afundada no ter e não no ser. Somos populados de chefes, chefinhos e chefões. Em boa verdade, os líderes são aqueles que conseguem transitar para um mundo de humildade. Aqueles que são verdadeiramente inteligentes são humildes, têm capacidade de estar entre os mais humildes, de ir ao chão da fábrica, de conhecer as pessoas e, sobretudo, de ouvir todos. Vivemos no mundo do problemático, que não tem lugar. O problemático é quase como se fosse uma patologia. “O gajo é cheio de problemas”. Pois é, mas podia ajudá-los a resolver. Também há aquela dimensão do não tem experiência. Somos muito acelerados em tudo até nas experiências que queremos cultivar nas pessoas. Não admitimos que um miúdo que vem de uma universidade, com mestrado, não saiba estar na dimensão de trabalho. Pois claro que não sabe, nunca trabalhou. Não ensino os meus alunos a trabalhar. Eu preparo-os para o trabalho, porque não tenho aqui o contexto real. Temos que ter perfeita consciência do que o trabalho faz pela aprendizagem diária e colectiva.