A pesca da sardinha retomou há uma semana. Como está a correr este início de safra?
Nos primeiros dias de captura tem-se verificado sardinha em abundância e de qualidade.
As tréguas da pandemia, o regresso do turismo e dos arraiais também prometem animar o sector.
Claro que sim. Boa parte da sardinha é consumida em fresco nestas festividades e o aumento do turismo também vai contribuir para uma procura mais acentuada. E nos meses de Verão os preços costumam aumentar significativamente, animando o sector do ponto de vista dos rendimentos.
As possibilidades de captura muito escassas eram um dos problemas apontados pelos pescadores. Este ano, o limite de captura aumentou. Corresponde às expectativas?
Sim. Parte do que se reivindicava era que se pudessem capturar à volta das 30 mil toneladas. São permitidas 29.400 toneladas. É perto do que se pretendia. Agora, o importante é ir aferindo o estado real do stock ao longo[LER_MAIS] dos próximos meses, para verificar se é possível ir depois mais além, tendo em conta que também temos de abastecer a indústria conserveira. Além disso, nos últimos anos também se tem sentido falta de isco, que tem de ser garantido, quando a pesca do cerco paralisa.
No peixe, de forma geral, quão dependentes somos hoje do mercado externo?
Somos altamente dependentes. Nos últimos quatro ou cinco anos, o défice da balança comercial de produtos da pesca esteve sempre acima dos mil milhões de euros. No último ano, ficámos abaixo desse valor, houve uma redução em mais de 50 milhões de euros, por via do aumento das possibilidades de captura da sardinha já em 2021. Mas tem sido um défice gritante. Em 1986, aquando da entrada de Portugal para a Comunidade Económica Europeia, produzíamos 70% do que eram as nossas necessidades. Actualmente, produzimos 30%. Cerca de metade do défice é relativo à importação de bacalhau. Há um consumo excessivo de bacalhau, mas esta é uma realidade difícil de contrariar. Importava valorizar e introduzir na nossa dieta espécies onde o recurso está equilibrado e que existem nas nossas águas. Algum caminho tem sido feito nesta matéria, em relação ao carapau, à cavala, ao polvo, com algumas campanhas promovidas pela Docapesca a terem resultados até na valorização na primeira venda. Houve maior procura e consumo, o que se reflectiu na primeira venda. Mas nas escolas, por exemplo – há que educar os consumidores que hoje têm tenra idade para que mais tarde possam vir a consumir de forma generalizada espécies que nós temos – aí tinha de haver uma aposta mais reforçada. Há espécies que não se justifica terem consumo tão grande nas cantinas de escolas, de hospitais e de outros refeitórios de gestão pública, como é o caso da maruca, da perca do Nilo ou do salmão. Espécies que não produzimos aqui, que são importadas de proveniências onde, muitas vezes, não existe o mesmo controlo sanitário que somos obrigados a ter aqui.
Importa fazê-lo por uma questão de sustentabilidade ambiental, económica, social…
A pesca é uma actividadade biossocioeconómica, que interfere com uma série de dimensões da nossa vida. É uma indústria extractiva, que vai buscar o que existe e, se não o fizer de forma racional, há desequilíbrios que têm de ser compensados. E depois nem toda a pesca tem o mesmo impacto no ecossistema. Temos pesca ultra-industrial (que em Portugal praticamente não existe), mas também temos a mais pequena pesca artesanal. E quando se fala de pesca predatória tende a meter-se tudo no mesmo saco, quando não é assim. A grande pesca industrial é completamente deslocada das comunidades, onde os detentores do capital, que investem nessas grandes unidades, a única coisa que querem é ver o seu capital maximizado, com retorno o mais depressa possível, sem se importarem com o estado dos recursos. Coisa diferente é esta pesca que temos generalizada em Portugal, que é altamente imbricada nas comunidades, onde toda a vivência das mesmas foi feita à volta da pesca, até o turismo chegar a esta grande marca que é actualmente. É uma pesca altamente sustentável. Poderá haver pontualmente algum desequilíbrio, mas tem de ser identificado e só o pode ser com investimento em investigação científica, o que não tem existido. Não tem havido investigação continuada de apoio ao sector. E não há ninguém mais interessado em manter stocks saudáveis do que os pescadores.
Este ano, há um problema que se adensa, que é o preço dos combustíveis. Que impacto tem tido na actividade?
Tem um impacto muito significativo para toda a frota. Para a pesca profissional, esta escalada de preços dos combustíveis tem sido muito penalizadora.
Que medidas podem ser adoptadas para minimizar este revés?
O Governo podia adoptar medidas para compensar directamente a aquisição dos combustíveis. Por exemplo, como se passa em Espanha e França. Por cada litro de combustível adquirido pelas embarcações de pesca, em Espanha o governo financia 25 cêntimos por litro. Em França, 35 cêntimos. Era isso que nós precisávamos aqui.
Feitas as contas, com que preços pode contar o consumidor final?
O diferencial entre o preço da primeira venda em lota e aquilo que é pratica do junto do consumidor final é uma questão velha. É um diferencial muito grande. A especulação tem grande força. A sardinha, por exemplo, tem saído entre 80 e 85 cêntimos o quilo na lota. Nas grandes superfícies comerciais vai a 5 ou 6 euros.
A Mútua dos Pescadores, instituição a que preside, está a celebrar 80 anos. Que funções cumpre nos dias de hoje?
A Mútua dos Pescadores foi criada em 1942, no contexto do Estado Novo. Nessa época, além desta, foram criadas mais três mútuas para segurar os riscos da grande pesca: do bacalhau, do arrasto e da sardinha. Esta era a mútua da pesca mais descapitalizada, mais frágil, dirigida aos “pescadores sem patrão”, à mais pequena pesca. Ou seja, os riscos dessa pequena pesca artesanal eram segurados na Mútua dos Pescadores. Com base na mutualização do risco, na perspectiva de que todos contribuem com uma parcela das suas vendas na lota, para que, quando alguém tem um azar, esse fundo possa cobrir os danos desse infortúnio. Curiosamente, esta era a mútua mais pequena e mais frágil, mas foi a única que chegou até hoje. Todas as outras, mais fortes do ponto de vista do capital, ficaram pelo caminho! Com a democratização do País, democratizou-se também a própria mútua. Porque até aí os seus representantes nas diferentes comunidades eram ou capitães dos portos ou homens com grande ligação ao regime corporativo do Estado Novo. A Mútua democratiza-se com o 25 de Abril e passa a ser gerida pelos associados eleitos directamente e com uma grande ligação ao movimento sindical e às bases da pesca. É nesse âmbito que cresce muito e adquire mais capacidade de resposta. Depois da entrada de Portugal na CEE, com o declínio da pesca, a Mútua sentiu dificuldades e em 2000 abriu a sua acção a outras actividades marítimas, relacionadas com turismo e náutica de recreio. Em 2004, reforçou ligação aos seus associados e comunidades e transformou-se em cooperativa. É a única cooperativa de seguros ligada ao sector.
Nos últimos anos, quantos pescadores perdeu o País?
De 1986 até 2019, perderam-se à volta de 60% dos pescadores em Portugal. Tínhamos cerca de 41 mil pescadores em 1986. E em 2019/2020 tínhamos cerca de 15 mil. O número tem oscilado entre 14 mil e 15 mil. O que tem vindo a acontecer é uma ocupação desse trabalho na pesca por cidadãos provenientes de países asiáticos, nomeadamente da Indonésia.
Quantas pessoas se dedicam à pesca no distrito de Leiria?
Associados da Mútua de Pescadores serão hoje cerca de 500, entre Peniche, Nazaré, arte xávega sazonal na Praia da Vieira e no Pedrógão e uma comunidade significativa de mariscadores da Foz do Arelho. Não serão muito mais do que estes.
Na Nazaré, onde também já foi pescador, qual é hoje o retrato desta classe?
Os pescadores de pesca artesanal da Nazaré sempre tiveram esta característica. Na maior parte das vezes, não abandonam a sua comunidade. Embora a Nazaré também tenha tido uma das comunidades mais significativas de pescadores da pesca do bacalhau. E também se pode fazer uma comparação entre aquilo que é a pesca na Nazaré, antes e depois da construção do porto. Nos anos 40, 50, 60, houve algumas migrações para Peniche e para Matosinhos, onde havia portos e segurança para ir para o mar. A partir da construção do porto da Nazaré, os pescadores da pesca artesanal fixaram-se aqui. E, como em todo o País, os pescadores da Nazaré também têm envelhecido. Os pescadores profissionais têm hoje uma idade muito avançada. Boa parte tem mais de 55 anos, sendo que a idade da reforma na pesca é aos 55 anos devido ao desgaste físico. A maioria tem entre 34 e 55 anos. São cada vez menos os jovens que se aproximam do sector, por toda a instabilidade que a profissão gera. A instabilidade de rendimentos e as fragilidades nas relações de trabalho têm-nos afastado e aqueles que se mantêm é por cultura familiar, paixão pelo sector. Há alturas em que é proibitivo andar no mar, por uma questão de falta de rendimentos e de desvalorização social das profissões ligadas à pesca.
O que reaproximaria os jovens desta actividade?
Teria de haver incentivos à entrada e à permanência de jovens na pesca. Os novos programas de apoio vão um bocadinho mais além do que os anteriores, na possibilidade de aquisição de embarcações de pesca, que estava vedada até aos 35 anos e aumentou para 40. E os montantes também foram majorados. Mas quem tem impulso inicial e não tem possibilidade para se manter, acaba por sair. Era preciso criar condições de equilíbrio entre os preços pagos à produção e os preços ao consumidor final. A questão da renovação de alguns segmentos mais “ultrapassados” da nossa frota é outras das questões de fundo. O caso do combustível é uma questão central. Tem de se equilibrar o apoio dado à utilização de gasóleo e de gasolina. Sendo que a maioria das embarcações em Portugal são movidas a gasolina com motor fora de bordo. É uma questão objectiva e que tem de ter solução. Recentemente, foi chumbada uma proposta na Assembleia da República para equiparar o apoio que se dá ao gasóleo e à gasolina. E a questão da valorização social é muito importante.
No caso da Nazaré, há um claro interesse dos turistas pelo ofício. E a comunidade local também valoriza os homens do mar?
Há um reconhecimento da cultura, do percurso da terra com base nas tradições marítimas e da pesca. Mas não há, na minha perspectiva, o reconhecimento efectivo dos pescadores, enquanto profissão que tem de ser valorizada, nobre, que determina presença ou a ausência de pescado para nos alimentarmos à mesa todos os dias. É uma questão nacional, não é só local. Sendo que há factores locais, como a valorização e o crescimento do turismo, que determinaram alguma desvalorização de actividades ligadas à pesca, por sobrevalorização de outras profissões. Os nossos pais foram os primeiros a dizer que não queriam os filhos na pesca. Perdeu-se o orgulho de ser profissional do sector. Essas interpenetrações da sociedade no desenvolvimento do sector influenciaram muito, com estigmas e com as caricaturas habituais do pescador tradicional, que inviabilizaram o crescimento do sector e influenciaram a perspectiva que a sociedade tem sobre ele.
Centro de estudos sociais sobre o mar
João Paulo Delgado, de 44 anos, é natural da Nazaré. É licenciado em Escultura pela ESAD.CR e tem pós-graduação em Economia Social, na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Fez ainda especialização em Sociologia na área das Desigualdades Sociais e Sindicalismo e doutoramento na mesma área, também pela mesma faculdade em Coimbra.
Foi pescador profissional e mestre de embarcações de pesca durante 14 anos, é dirigente da Mútua de Pescadores desde 2004, instituição onde, desde 2021, desempenha o cargo de presidente do Conselho de Administração.
Para a Nazaré, sonha com vários projectos, um deles a criação de um centro de estudos sociais dedicado à investigação, com a temática marítima como pano de fundo e em particular a pesca. Defende que ainda há muito para conhecer sobre cada uma destas comunidades que formam a identidade marítima do nosso distrito.
“Há uma certa academia muito preocupada com a sobrevivência dos peixes e muito pouco preocupada com a sobrevivência das pessoas e com a cultura das comunidades”, realça o dirigente.