Sendo uma das mais jovens directoras de serviço do Centro Hospitalar de Leiria (CHL), como tem sido este desafio?
Tem sido de facto um desafio, uma luta constante, contra o sistema em si, por fazer algo diferente, no estado actual em que o Serviço Nacional de Saúde [SNS] está, em abrir estas portas de segunda a sexta-feira, o internamento 24 horas a alguém que precisa. Mas tem sido possível graças ao Conselho de Administração [CA] que percebeu a importância do nosso serviço, do cuidar das pessoas em fim de vida, dos custos e dos benefícios que isso tem para o doente e para a família. A longo prazo nem sempre se percebe a importância de uma equipa como esta no hospital.
Considera-se um exemplo para os colegas jovens?
Como um exemplo, não, mas como uma privilegiada, sim. Foi uma série de coincidências felizes que me trouxeram até aqui. Foi encontrar as pessoas certas quando ac abei o internato e ser uma área que o CHL queria começ ar a trabalhar. Depois enfermeiros, assistente social, todos tínhamos interesse em formar esta equipa e sem essas pessoas isto não era possível. Foi um conjunto de pessoas que fez com que isto crescesse e tive o privilégio de ter essas pessoas no lugar certo e que acreditaram em nós, como o Dr. Hélder Roque [ex-presidente do CHL] na altura e posteriormente este CA, com o Dr. Licínio, que manteve o voto de confiança.
Ainda existem poucas respostas de cuidados paliativos. A pouca importância que ainda se dá a esta área tem a ver com o estar relacionado com a morte?
A morte é um tabu. Mesmo com a discussão que tivemos sobre a eutanásia continua a ser um tabu. Ninguém quer falar sobre a morte. Ninguém quer dizer a um doente que está a morrer. Muitas vezes há também desconhecimento por parte dos profissionais de saúde do que são os cuidados paliativos e qual o seu benefício. Não é só dar a mão, fazer festinhas ou dizer que vai ficar tudo bem, com umas pancadinhas nas costas e seguimos. Isto é uma ciência que está comprovada. Conseguimos um adequado controlo de sintomas, com uma panóplia de fármacos que alguns colegas nem conseguem usar, com doses elevadas para a adequada qualidade de vida do doente e para poder estar em família e permitir viver mesmo perante a morte. As pessoas não sabem dessa capacidade. No CHL já percebem a diferença que fazemos na vida do doente e da família, não só no controlo de sintomas, no acompanhamento e até após o luto. Sabem que dá qualidade de vida ao doente e permite que esteja connosco e não simplesmente estar numa cama no hospital à espera da sua hora ou em sofrimento.
Como é que marcam a diferença no doente?
Estando presentes, mesmo face à mínima dúvida que o doente ou a família tenham, às vezes são coisas simples. Estar alguém do outro lado que atende um telefonema ou recebe com um sorriso presencialmente faz toda a diferença. Não é preciso muito. Não é preciso ter o melhor espaço físico, apesar do nosso em Leiria necessitar de condições melhores. Aliás, a administração percebeu essa importância e já nos deu um novo espaço para o final do ano, mas a verdade é que só precisamos de pessoas dedicadas e que gostem de trabalhar nesta área.
Como reage à ideia de que os cuidados paliativos são um local para se morrer?
Também o são. As pessoas quando vêm para aqui sabem que o fim é a morte e dizemos isso logo na primeira consulta. Mas a realidade é que temos pessoas que estão connosco alguns anos. O que explicamos é: sim tem um diagnóstico que vai pôr fim à sua vida, mas o nosso compromisso é manter a sua autonomia, a sua qualidade de vida e acompanhá-lo não só a si, mas também à sua família. Seja por uma semana, por um mês ou por anos. Não é só quando chega aqui nos últimos dias e horas de vida, em agonia, que vamos actuar. Aí não fazemos a diferença.
Tentam cumprir desejos da família e do utente?
Sim. Temos algumas histórias engraçadas. Tivemos um senhor que queria passar o Verão com as netas no Algarve, porque era o hábito, mas percebia que não seria tão fácil. Contactámos a equipa do Algarve, para estarem alerta em SOS se fosse preciso alguma coisa. Ele foi ao Algarve, quando veio passou aqui – e vivia em Fátima -, para dizer o quão tinha sido bom. Uma semana depois morreu. Só houve um desejo que não conseguimos concretizar. Um senhor de cerca de 40 e poucos anos pertencia à claque do Benfica No Name Boys e queria ir ver um jogo. Contactámos o Benfica que de imediato aceitou. Era necessária uma ambulância para o levar e o Dr. Hélder Roque, na altura o presidente do CA, conseguiu nesse mesmo dia uma ambulância. O senhor faleceu na véspera do jogo. Há pessoas que querem ver a praia e nós levamos a praia até ao hospital. Temos um projecto de um senhor que estava internado em Alcobaça que adorava fotografia. Tirou fotografias dos pássaros que apareciam à sua janela. Agora vamos fazer uma exposição em sua homenagem. Praticamente nada é impossível. As pessoas percebem a sua finitude e que o fim está próximo e pedem coisas muito simples, como um casal jovem que tinha umas férias marcadas para ir a Elvas e o jovem já não estava nada bem (morreu passado um mês connosco). Foi bom proporcionar essa viagem com um adequado controlo de sintomas, para se sentirem como um casal, apesar de saberem que o fim estava próximo para um deles.
Por que é tão difícil falar da morte?
É um pouco o enfrentar que temos o nosso fim. Todos vamos morrer e a morte implica sofrimento quando não acompanhada. É verdade que o que temos vindo a assistir nos últimos anos é uma morte com sofrimento, solitária, num serviço de urgência, muitos sem saberem e a questionarem por que é que o seu familiar morreu. Tudo isto sem acompanhamento. Ou seja, toda uma morte associada ao sofrimento e à dor. Mesmo nós médicos temos dificuldade em falar da morte. Sabemos que é um processo natural, mas encará-la é difícil. Alguns vêem como uma derrota aquela doença que não curaram, não vêem como uma oportunidade de acompanhar o seu doente, que trataram e que chegou a outra fase de vida. Quando lidamos com a nossa própria derrota também não é fácil.
O que é preciso para colocar os cuidados paliativos na ordem do dia?
Literacia dos próprios profissionais de saúde e dos governantes, apesar de achar que muitos deles já sabem o que são os cuidados paliativos e sabem que são uma prioridade, caso contrário não teríamos uma Comissão Nacional de Cuidados Paliativos a funcionar. Mas a população também tem de ter conhecimento do que são. Melhorar o acesso, ter mais equipas, investir dinheiro, ter locais adequados para estas equipas, internamento e rede de referenciação. Isso é tão ou mais importante do que ter uma medicina interna, uma cirurgia ou oncologia a funcionar. A verdade é que tal como quando nascemos e precisamos de cuidados, também precisamos de quem nos cuide quando estamos a morrer.
Num encontro recente, um dos oradores defendeu uma linha para paliativos à semelhança da Saúde 24. Concorda?
Uma linha nacional, não. Ter uma linha nossa, sim. Essa é uma grande lacuna no CHL, pois a nossa linha só funciona de segunda a sexta-feira, das 9 às 18 horas. Queremos avançar com o projecto de uma equipa domiciliária 24 horas. Temos alguns utentes que estão em casa e poderemos ir até eles. Isso permitir-nos-ia ter um profissional de saúde alocado 24 horas a essa linha, para tirar dúvidas simples e até evitaria idas ao serviço de urgência. Não temos essa equipa por falta de recursos humanos. Tem de haver um investimento em recursos humanos o mais breve possível se realmente esta área for uma prioridade para o nosso País.
Qual é o conforto que se leva de um serviço destes?
É a gratidão. A trabalhar no SNS no dia-a-dia por vezes muita gente deixou de sentir o obrigado. Os doentes vêem os profissionais de saúde como: ‘esta é a vossa obrigação’. Aqui dão-nos gratidão. O dinheiro é bom, é importante, mas não a única coisa que motiva os profissionais de saúde e os faz continuar, apesar das adversidades.
O que faz falta ao serviço de Cuidados Paliativos do CHL?
Espaço, recursos humanos e a equipa domiciliária. Os nossos doentes vêem a nossa dificuldade e dizem-nos: com tão pouco vocês fazem tanto. Para nós dói ter de cuidar de alguém nestas condições. A base do serviço está no Hospital de Santo André. Alcobaça é o nosso menino bonito, houve um investimento grande e tem umas condições maravilhosas. Parece um hotel. Mas a base está aqui. Só vai alguém para lá, referenciado por esta equipa intra-hospitalar. Temos uma equipa com médicos, enfermeiros, psicólogo e assistente social, realizamos consultas presenciais e depois há o SOS. Temos o nosso Hospital de Dia, onde o doente vem fazer controlo de sintomas, há doentes que vêm passar o dia connosco porque precisam de fazer uma alimentação parentérica ou medicação subcutânea ou na veia de analgésicos mais fortes para controlar a dor ou fazer um soro. Passam o dia e vão embora. Depois temos as visitas ao internamento noutros serviços do CHL, incluindo Pombal e Alcobaça. São doentes palitivos, que deram entrada noutro serviço com uma interocorrência aguda e os colegas fazem um pedido de colaboração. Em média temos entre 15 a 20 doentes nessas situações. Os doentes que têm critérios de internamento, ou seja, descontrolo de sintomas internamos em Alcobaça. Não internamos lá pessoas para morrer. O objectivo é controlar sintomas para regressarem a casa. São em média 15 dias, mas há doentes cuja complexidade do problema prolonga mais o internamento.
Há situações de quase ‘milagre’?
Já demos alta a uma pessoa, mas não era bem paliativo. Ela tinha uma doença grave oncológica, mas respondeu bem aos tratamentos e não estava metastizada. Há uma que entrou em remissão e estamos a ver como evolui a situação. As recidivas ocorrem. Temos casos extraordinários de pessoas que têm o diagnóstico de uma doença oncológica, não querem fazer tratamentos e acabamos por segui- -las anos e com qualidade de vida. Isso ainda é mais espectacular do que um milagre. Não estou a dizer que é correcto, porque considero que a radioterapia e a quimioterapia são um complemento ao trabalho importante que fazemos. A doença pode ficar estável durante muito tempo com recurso a esses tratamentos, mas a verdade é que existem aqueles que são corajosos e ainda cá estão com qualidade de vida.
É uma mulher de fé, religiosa ou espiritual?
Acho que as coisas não acabam aqui, mas o que há depois não sei. Os cuidados paliativos substituem a eutanásia? Os paliativos não substituem a eutanásia, mas os cuidados paliativos têm um papel muito importante. Há falta de recursos humanos, uma falta de literacia gritante em Portugal sobre estes cuidados e o desconhecimento de onde se pode chegar com o adequado controlo de sintomas e acompanhamento. Acredito que se não existissem estas dificuldades, a maioria dass pessoas que quereriam eutanásia, desistiria.
Que argumentos tem para convencer futuros médicos a especializarem- se nesta área?
Deveria fazer parte do curso uma cadeira obrigatória sobre cuidados paliativos e no internato geral passar um mês em cuidados paliativos, como passamos nos outros serviços. Acredito que muitos profissionais quisessem trabalhar nesta área depois da experiência. Quando estamos perante esta área muitos de nós apaixonamos-nos e queremos trabalhar aqui, mas é preciso ter oportunidade para isso. Eu tive essa oportunidade. Sei que muitos colegas meus queriam e não a têm.
Como está o SNS?
Sou uma pessoa de esperança. Sou muito resiliente, com toda a carga dessa palavra. Acredito mesmo no SNS e não estou a ser politicamente correcta. Acredito porque já vi o que fez o nosso serviço neste SNS, no qual a maioria não acredita. Estamos a fazer algo diferente e no País são múltiplos os exemplos, não só em cuidados paliativos. Temos de ter abertura para crescer e alguém tem de continuar a acreditar no SNS. As pessoas deixaram de acreditar.
E os médicos também deixaram de acreditar?
Não. Aquela ideia que o médico vem para ganhar dinheiro não é verdade. A maioria está aqui porque gosta.
Mas muitos estão a ir para o privado, porque é melhor?
O privado é melhor não é só por questões de dinheiro, é também por qualidade de vida. Muitas vezes, os utentes não nos vêem como pessoas, como alguém que tem uma família. Dou este exemplo: no último fim-de-semana fiz 24 horas de urgência. O tempo que não estive no hospital estive a descansar. E a minha família? Há dinheiro que pague isto? No privado consigo ter um horário de segunda a sexta-feira, não trabalhar aos fins-de-semana e estar com a minha família. A maioria das pessoas que está a sair do SNS, está a priorizar a família. Não tenho o direito à família como os outros? Sou obrigada a vir trabalhar doente para que não se feche uma urgência? Têm de começar a olhar para os profissionais de saúde como pessoas.
O SNS já está nos paliativos?
Ainda não está nos paliativos. Só precisa de alguém que olhe por ele.