Sempre foi “uma menina de sofá”. Não gostava de fazer exercício e, mesmo quando era arrastada pelas irmãs para umas daquelas aulas de ginástica da aldeia, fazia questão de garantir um dos lugares mais escondidos para fazer o mínimo possível.
O trabalho, os compromissos e as tarefas de casa começaram a consumir cada vez mais tempo, até ao dia em Marta Ribeiro decidiu que estava na hora de fazer qualquer coisa de diferente.
Perto dos quarenta anos aceitou o desafio de um grupo de corridas da Batalha, mas a modalidade parecia estar condenada desde o início.
“Tentei descobrir-me um bocadinho e foi através da corrida, mas comecei por 100 metros e ficava logo cansada, reclamava com os meus colegas e dizia que não ia voltar”, recorda, entre risos.
Seis anos depois, a atleta da Faniqueira está prestes a subir ao pódio do circuito nacional de Trail Ultra Endurance XL.
[LER_MAIS] O ‘milagre’ aconteceu quando a levaram a correr na serra. Começou por fazer cinco quilómetros, passou para os dez e aventurou-se numa prova de 25 que só terminou no pódio. “A partir daí comecei a motivar-me e a serra passou a ser liberdade, sonho, passou a ser tudo para mim”, conta.
Ganhou asas e foi deixando as provas feitas pelos colegas com quem reclamava no início, para embarcar em aventuras maiores.
“Fui acrescentando quilómetros porque me sentia bem, gostava de observar a natureza, do cheiro, dos sorrisos das pessoas e até de ser incentivada e de incentivar os outros”, tenta traduzir, a educadora de infância que conta com o apoio da família para continuar nesta aventura.
Passou a percorrer os trilhos espalhados pelo País, inclusive nas ilhas, e chegou até aos Pirenéus.
“Fiz provas que me deram alguma bagagem para ter gosto em partir para as longas”, explica, quem um dia decidiu acompanhar um colega num percurso com uma centena de quilómetros, no Sicó. Depois dessa, seguiram-se várias.
Na memória (e nas pernas), passou a acumular percursos que chegam aos 200 quilómetros, muitas horas de pé e inúmeras histórias para contar. “Cheguei a correr sete horas sozinha em prova, sem ver ninguém e a pensar que estava perdida até encontrar abastecimentos”, recorda a atleta, que aproveita esses momentos para “rezar, pedir pela família, organizar um bocadinho as ideias, pensar no trabalho ou até no que se pode fazer ou como evoluir”.
Outras vezes, acrescenta, “arranja-se companhia para falar de tudo e mais alguma coisa e criam-se amizades muito fortes, para a vida”.
Entre muitas peripécias registadas no meio da serra, há relatos de horas à roda no nevoeiro, perda de andar depois da meta, dias de prova sem conseguir dormir e até troços feitos a caminhar enquanto se dorme apoiada na mochila de um colega.
Entre tudo o que já viveu, garante que o título de “prova mais difícil de todas” é atribuído ao desafio que concluiu há cerca de um mês, na Serra da Estrela.
Saiu um bocadinho mais cedo do trabalho, meteu-se num autocarro e rumou para o desafio.
Com os 180 quilómetros da EstrelAçor pela frente, admite que quase desistiu ao fim dos primeiros dez, mas foi mais teimosa que o corpo e chegou ao fim em 47 horas.
“No final chorei muito agarrada ao colega que fez a prova toda comigo, porque foi uma prova muito forte a nível emocional, só quem faz consegue entender. Neste caso nem nos conhecíamos e cada um tem a sua vida e a sua família, mas fazermos a prova e passarmos por aquilo tudo juntos foi uma coisa linda”, enaltece.
Ainda a recuperar, alerta que “provas como estas não se fazem sem meses de preparação física e alimentar” e garante que “ficam algumas mazelas”.
No entanto, o que realmente perdura, destaca, “são as memórias e os sorrisos”.
“Acho que é isso que me atrai, o sorriso e o brilho no olhar, são o denominador comum entre as pessoas que correm em trilhos e estão na serra”, afirma.
E se há algo que a faz sorrir são os trilhos da Serra de Aire, da zona da Fórnea e das Pedreiras, onde se perde nas corridas que alia ao reforço muscular, às massagens de recuperação e às aulas de ginástica a que acabou por se render.
Palmarés
“As conquistas acabam por ser uma consequência”
“Eu corro porque gosto da sensação de andar na natureza e, apesar de não fazer isto para ganhar, sou muito focada na preparação e as conquistas acabam por ser uma consequência”, afirma Marta Ribeiro, de 46 anos. Federada na Associação de Trail Running de Portugal (ATRP), a atleta da Batalha conta com um palmarés de conquistas em provas muito díspares. A conquista mais recente e reconhecedora desta evolução será celebrada em breve, com o pódio do circuito nacional de Trail Ultra Endurance XL 2022.