Como estamos no Natal, permitam-me que vos fale de elevadores.
Existe um código informal de utilização deste meio de transporte, uma espécie de manual de boas maneiras, de grande importância para a salutar sobrevivência em vizinhança.
As regras são, basicamente, do bom senso, da boa educação, do civismo, do recato e da higiene.
Dada a dignidade do assunto, proponho uma abordagem seguindo os cânones da boa dialética. Debrucemo-nos, então, sobre esta problemática sob os pontos de vista religioso, sociológico e político.
Religioso
A função de elevação vertical do indivíduo oferecida pelo elevador, i.e. ascensão, confere-lhe uma dimensão metafísica que não pode ser ignorada.
Não é preciso pregar muito para arranjar meia dúzia de mandamentos adequados à doutrina que me proponho catequizar: não profanar o templo da ascensão, não cuspir, não grafitar, não sujar, não gasear (flatus ou tabacos); não invocar o botão de alarme em vão; não cobiçar o elevador da vizinha, nem a vizinha no elevador. Ainda que o elevador seja um mecanismo de elevação, não consumar.
Sociológico
O elevador social também tem as suas regras.
A distribuição de passageiros segue os preceitos dos wc’s masculinos (para quem não frequenta, pode ser descrito como um axioma geométrico que distribui os homens pelos urinóis da forma o mais afastada possível).
Já a interação, que se quer frugal, deve respeitar a regra da selva, nunca olhar nos olhos.
Em caso de violação desta lei, recomenda-se o recurso ao sorriso genérico e uma simulação de mensagem no telemóvel.
A paz do prédio pode estar em causa. Espaço pleno da igualdade, no elevador não há quotas, nem género.
É chegar e embarcar. O botão, seja para chamar ou selecionar o andar, deve ser premido uma única vez.
Não há qualquer relação entre o número de vezes que se prime e o tempo de espera.
Uma vez dentro da cabine, selecione o piso e limite-se a esperar, o botão de fechar as portas é um mito urbano.
E urbanidade, por favor. Quando o alarme do excesso do peso soa, evite olhar para a pessoa mais obesa.
Político
Há hierarquias informais que se estabelecem de forma automática nos elevadores.
O alfa do elevador é a pessoa que ao entrar assume de imediato o domínio do painel de controle e seleciona o andar de todos os passageiros. Ainda não foi inventado um equipamento mais eficaz para o estabelecimento de hierarquias ou lideranças.
Proponho que se utilize este método – uma espécie de lift suffrage – para a escolha de novas lideranças, seja nos clubes de futebol, partidos, listas de deputados, eleições autárquicas, legislativas, presidenciais, nas NATOs, FMIs e ONUs e Troikas da vida.
Proponho um exercício simples: selecionem um conjunto aleatório de apelidos, por exemplo, Costa, Rebelo de Sousa, Lagarde, Netanyahu, Putin, Jinping, Trump, Biden, Leyen, Guterres, Zelensky.
Metem-nos aos pares no elevador. Ganha o último a sair.
O trauma
Comecei a desenvolver esta teoria na noite do dia 24 de dezembro de 2013, na sequência de um episódio traumático que mudou para sempre a forma como encaro o Pai Natal. Foi o fim da magia.
Depois de uma tradicional consoada na Bajouca, dirigi-me a um prédio algures na Quinta da Maligueira.
Segui todos os preceitos, chamei o elevador e esperei tranquilamente.
Para meu grande espanto, quando as portas se abriram, dei de caras com um jovem, ruborizado, de calças na mão, barbas brancas, casaco vermelho vestido e barrete na cabeça.
Era ele, o Pai Natal, repito, literalmente de calças na mão, a vestir à pressa a farda natalícia.
Subimos em silêncio, constrangidos, até ao andar onde o meu companheiro de viagem se despediu.
Apesar das barbas, não pude deixar de constatar que o Pai Natal é a cara chapada do vizinho do… (prefiro não revelar o andar).
Segui atordoado até ao meu apartamento, com um único pensamento a toldar-me o espírito: O Pai Natal não usa ceroulas.
Texto escrito segundo as regras do Acordo Ortográfico de 1990