Soma 27 anos de docência e de investigação no Politécnico de Leiria. Em qual dos ambientes está mais confortável?
Investigação. Porque provavelmente passei mais tempo na investigação. Gosto da docência, no entanto ao longo do tempo criei um certo desencanto. Não é pela docência propriamente dita, é pela forma como hoje em dia ainda transmitimos o conhecimento e pela forma como está montado o sistema entre as obrigações dos professores e os deveres dos alunos. Entre 1997 e 2004, estive sempre a leccionar a 100%. Em 2004, tive uma bolsa de doutoramento e acabei por ficar sem dar aulas durante algum tempo. E logo a seguir, criámos o CDRSP. Tornei a dar aulas em 2018, 14 anos depois. Quando voltei a dar aulas, senti-me fora do aquário. Em termos de maturidade dos alunos, essa visivelmente tinha decrescido muito. E em termos da forma como se pode transmitir o conhecimento, está muito condicionado a um conjunto tão apertado de regras e procedimentos, que não dá liberdade nenhuma a qualquer docente para fazer algo novo nas aulas, mesmo que seja muito pertinente. Isso é logo directamente aniquilado por aquilo que é o plano no início do ano, que é usado de forma perversa como uma cartilha inflexível.
O ensino não evoluiu ao ritmo da indústria?
Falam na Indústria 4.0, até já na Indústria 5.0, e o ensino de hoje, se nós formos ver gravuras da época da Grécia antiga, está mais ou menos parecido com o que era. Tinha um indivíduo, que era supostamente o mestre, que orava para um conjunto de pessoas que estavam a escutar. Aos dias de hoje, temos alunos que podem aprender, o self-learning acontece de diversas maneiras, vão à internet, têm vídeos. E nós, sistematicamente, estamos a dar aulas de forma expositiva a um conjunto de 30, 40, 60 pessoas, como davam na Grécia antiga. Sabendo que cada indivíduo tem necessidades especiais e que, acho eu, provavelmente até podem ter currículos especiais, únicos. Pelo mundo, há uma tendência para cada um desenhar o seu perfil académico, o perfil daquilo que quer aprender. Eu posso ser uma pessoa das ciências e querer ter aulas de filosofia. Mas isso é impossível de fazer, porque supõe que haja um acompanhamento mais próximo dos alunos e a nossa realidade e mindset dos professores e instituições não é permeável a abordagens progressistas.
Há professores suficientes para garantir essa proximidade?
O acompanhamento mais próximo dos alunos é difícil de ter, porque não há professores que cheguem. Mas não há professores que cheguem porque se dedicam a tentar ensinar aos alunos aquilo que não necessitam, [LER_MAIS]aquilo que eles próprios já aprendem por outros meios. O IPLeiria podia ser mais progressista nisto. A história dos currículos individualizados era importante, para valorizar mais as pessoas naquilo que elas querem fazer. Criámos novos cursos. Mas lá está. É um conjunto de regras rígidas que não permite qualquer nível de inovação. Parece que uma pessoa por ter tirado um curso de engenharia, é um fado, vai continuar engenheiro toda a vida. Ao nível dos ensinos superiores, está tudo muito departamentado. Temos as faculdades, depois temos as escolas, depois temos o departamento de engenharia mecânica, o departamento de engenharia electrotécnica, o departamento de engenharia civil, o departamento de engenharia informática, o departamento de gestão, etc. Fazia sentido antes, porque as tecnologias eram muito mais estanques. Hoje em dia, por exemplo, um veículo automóvel é menos mecânico e tem mais software, mais electrónica. Se existir um departamento de fabrico (de manufacturing), já existem pessoas com competências na mecânica, na electrónica, no software, isto é multidisciplinaridade, não é só uma coisa dos mecânicos. Isso é uma adaptação que decorre das necessidades dos dias de hoje. Nós, acho eu, continuamos cristalizados com esta história, de que era assim, porque alguém fez no passado assim, e agora continuamos assim. Parece que é outra vez um fado.
Mas tem sido esse mix de saberes que tem impulsionado o CDRSP.
Aqui neste centro de investigação, desde a sua criação – há que tirar o chapéu a Paulo Bártolo, nisso ele era mais arrojado – sempre demos valor à multidisciplinaridade. E, efectivamente, ao longo dos anos, fomos tendo, e temos neste momento, um conjunto de pessoas que são da mecânica, de farmácia, da bioquímica, química, design, engenharia civil e de várias áreas. Isso criou um valor acrescentado muito grande, porque fomos capazes de desenvolver produtos e tecnologias em várias áreas, e até aproveitar o conhecimento que algumas pessoas tinham de uma determinada área para aplicar noutra.
O que tem o resto do País a aprender com o sector de moldes?
O sector de moldes, como está implantado na Marinha Grande, provavelmente é único no mundo. Não sei se é conjuntural, de contexto, mas conseguiu-se numa região relativamente pequena, que se fixassem numa densidade grande, uma série de pequenas e micro-empresas, com competências em toda a cadeia de valor de necessidades nos moldes. E isso faz com que haja uma facilidade muito grande de alguém se instalar. Porque se lhe faltar trabalho pode pedir a outro, para ser seu fornecedor. Se lhe faltarem competências para um dado projecto, está garantido que ali à volta alguém vai resolver. Isso acontece no eixo Marinha Grande – Oliveira de Azeméis. O que o País tem a aprender com isto é, provavelmente, estimular a criação de zonas tecnológicas específicas, baseadas no novo Bahaus Europeu, que promovam esta interacção e multidisciplinaridade.
Terão as empresas de moldes e plásticos as ferramentas e o saber para ultrapassar os desafios do futuro?
As ferramentas tecnológicas têm seguramente. O saber é relativo. Em muitos casos, as empresas ficam muito focadas em ter que ganhar a vida. Ficam focadas em resolver o trabalho daquele molde, do outro e do outro, e esquecem-se de que existem outros processos, outras formas de abordar as coisas. E não têm tempo, muitas das vezes, para olhar para uma perspectiva mais distante e experimentar e insistir noutras técnicas e actualizações que podem ser diferenciadoras. Eu conheço meia dúzia de empresas, não são muitas, que sistematicamente incorporam um novo know-how, que normalmente vem junto com uma nova tecnologia. Vão percebendo que primeiro é um investimento, mas que depois há retorno e diferenciação. Entre os moldes, há um sentimento de que o mercado está fraco. Eu acho que é porque quase todos fazem a mesma coisa e meia dúzia faz coisas diferentes. Quando vamos a ver, essa meia dúzia que faz coisas diferentes não tem falta de trabalho.
Que contributo deu Artur Mateus ao tecido empresarial da região através do CDRSP?
Acreditei sempre e vou continuar a acreditar que o trabalho ao nível do ensino e da investigação tem de ser feito com um propósito: o bem da sociedade. As pessoas trabalham em empresas, trabalham em instituições, têm de ter empregos. Portanto, tem de haver um desenvolvimento dessas empresas e dessas instituições para que possamos oferecer bons ordenados para as pessoas andarem satisfeitas e fazerem uma boa vida. Só que depois – e entenda-se que não sou um desencantado, sou um believer, e por isso é que também insistia numa certa direcção – depois, na prática mais miudinha do conhecimento, do ensino e da investigação, a maior parte das vezes promove-se outra coisa, que é um bocado perversa, que é uma espécie de investigação e ensino para os que cá estão dentro e não para aqueles que estão de fora. Não estou a dizer isto como uma crítica ao IPLeiria, mas ao sistema no geral. Os currículos para progressão na carreira dos investigadores/ professores são focados nos artigos científicos. Os artigos científicos são importantes, são feitos por investigadores como eu. Mas são apresentados em fóruns aos quais a maior parte das empresas não tem acesso. Assim, não estamos a fomentar a partilha e a transmissão do conhecimento. Estamos simplesmente a fomentar a partilha do conhecimento para os professores, os investigadores, para eles próprios se alimentarem uns aos outros, para fazerem crescer o seu currículo. É um sistema endogâmico.
E assim se esfria a relação com as empresas.
Já me confrontei algumas vezes internamente contra isso, mas está enraizado na cabeça de algumas pessoas, o mindset é que a investigação serve para aprovar os cursos. A investigação não serve para suportar cursos. Serve para criar valor acrescentado nas empresas e permitir que elas se desenvolvam. E o ensino serve para se adaptar às necessidades das empresas e da sociedade. Ao longo dos anos insisti muito, que nós temos de olhar à volta primeiro. À nossa volta temos as empresas do vidro, moldes, plásticos, cerâmica, pedra. Para essas é que temos de trabalhar. Depois, se calhar, temos de olhar para a região ou para o País de uma forma mais abrangente. Tentar fazer com que haja uma transição energética em cada uma destas empresas, sabendo que micro-empresas não têm capacidade nem recursos humanos internos para se disponibilizarem a pensar ou para estarem alerta para os co-financiamentos que ajudam a que isto aconteça. E a nossa grande obrigação, que também é um estímulo, é fazer com que a região cresça e que depois o ensino ajude, para fornecer profissionais. Que são motivo de orgulho as pessoas que têm passado pelo CDRSP, que têm tido formação e que saem para ajudar as empresas através das suas competências. São os nossos pontas de lança no interface com a ciência. Além de entidade de investigação, somos entidade de ensino/ formação, que treina e forma. É o saber-fazer, é o know-how, é o pôr as mãos nas coisas. Tem de haver um maior entrosamento entre ensino e investigação. Os centros de investigação têm uma função muito importante de formação altamente especializada materializada com a vantagem de aliar o know-how com a aplicação altamente experimentalista.
E o que fica por fazer?
Havia uma outra dimensão do CDRSP que há três ou quatro anos tentámos explorar. Ao longo do tempo, percebemos que as empresas gostavam de trabalhar aqui. Aproveitando que o CDRSP funciona num terreno imparcial, talvez fosse possível ter uma zona no centro, onde as empresas pudessem vir utilizar os nossos recursos laboratoriais, as nossas máquinas, durante dado período de tempo, espaços onde pudessem fazer os seus próprios testes e adquirir competências, que pudessem depois transportar e explorar nas suas instalações. Seria permitir às micro e médias empresas terem aqui um núcleo de investigação limitado no tempo, mas podendo usar as infra-estruturas e o know- how dos investigadores. Desta forma as micro, pequenas e médias empresas poderiam usufruir de recursos partilhados e ter um núcleo de investigação. Potenciaria a criação mais efectiva de valor acrescentado e a criação de novas spinoffs e start-ups. Ainda tentámos ver com a câmara se seria possível fazer uma extensão ao edifício. Mas hei-de ver, seguramente, ser materializado tal modelo de interface, focado no “test before invest” com as empresas. Outro amargo de boca é não termos nenhum curso de polímeros na região. Temos massa crítica de conhecimento e saber fazer e há necessidade.
Rui Rúben tomou posse na semana passada como novo director do CDRSP. Ficará o centro em boas mãos?
Ficará.
Um dos motivos que o levou a deixar o IPLeiria foi “a erosão da motivação”. Que motivação adicional terá na Universidade de Coimbra (UC)?
Uma coisa que contribui para a motivação adicional é a incerteza. Pode ser um caminho de sucesso ou um caminho com mais umas pedras. Além do factor novidade, há um projecto, que me apresentaram, que tenho expectativa que seja implementado, e as pessoas que promoveram a minha contratação têm uma visão que coincide com a minha. Vamos fazer projectos para as empresas, envolver o ensino nos projectos para as empresas e vamos fazê-lo a uma escala grande. A UC tem uma dimensão histórica. Eventualmente, poderia ter uma dimensão de mais relevo na zona Centro, nomeadamente na Marinha Grande e arredores. Acho que a UC pode ter competências e um envolvimento muito maior na região. Provavelmente na UC vou competir com o CDRSP. Como eu costumo dizer, não vale a pena estarmos a esconder muito aquilo que andamos a fazer. Temos é que ter a capacidade de tentar estar sempre à frente. No CDRSP também trabalhamos com a UC e com outras. Somos uma instituição jovem e bebemos do conhecimento de outros. É uma concorrência positiva. Eu só vejo isso pela positiva. Nessa melhoria contínua vamos ambos crescendo. Às vezes ganha-se, outras perde-se. É a vida.
Um pé na academia e outro nas empresas
Artur Mateus nasceu em 1973 em Vale de Remígio, Mortágua. É formado em Engenharia Mecânica, pela UC e doutorado pela Universidade de Reading, no Reino Unido. Foi docente e investigador ao longo de 27 anos no IPLeiria, percurso que agora termina para abraçar um projecto na UC. Foi um dos fundadores do Centro de Desenvolvimento Rápido e Sustentado de Produto (CDRSP), do qual foi vice-director entre 2011 e 2022 e director desde 2022 até à semana passada, tendo sido sucedido no cargo por Rui Ruben. Coordenador de projectos de investigação da Vangest, entre 1999 e 2001, Artur Mateus tem como marca o envolvimento de proximidade com o tecido empresarial. O engenheiro passará agora a trabalhar no Instituto para a Sustentabilidade e Inovação em Estruturas de Engenharia (ISISE) e com envolvimento no SeaPower, da Figueira da Foz, com actividade ligada à energia offshore, às tecnologias de monitorização do mar, à indústria naval e da mobilidade.