No penúltimo álbum, de 2019, com Mário Laginha, o tema que dá nome ao disco, “Aqui Está-se Sossegado”, é um poema de Fernando Pessoa com música de José Júlio Paiva, o bisavô de Camané, também ele, alguém com o fado no sangue, embora amador (mudou-se para Lisboa com o fim de trabalhar na construção naval). Camané, actualmente com 57 anos de idade, só recentemente, há “seis ou sete anos”, ouviu a voz do bisavô pela primeira vez, graças a um coleccionador, que tinha uma gravação, em disco, registada ainda no primeiro quartel do século XX. Depois de Aqui Está-se Sossegado, Camané, que é natural de Oeiras, lançou Horas Vazias, em 2021, o mais recente longa duração de uma carreira recheada de êxitos em que foi distinguido com vários galardões, como o Prémio Europa — David Mourão-Ferreira e os prémios Amália e Blitz para Melhor Intérprete, assim como o Prémio Bordallo, da Casa da Imprensa. Após vencer a Grande Noite do Fado de Lisboa, em 1979, participou em produções teatrais de Filipe la Féria, cantou em casas de fados, colaborou durante décadas com José Mário Branco e integrou o colectivo Humanos, entre muitos outros projectos.
Li que o Camané nunca canta em casa. Ainda é verdade?
Nunca canto em casa. Canto outras coisas, a brincar. Mas canto para mim, na minha cabeça, se estiver a pensar num tema. Às vezes, vou deitar-me e começo a ouvir como é que ele funciona. Mas nunca em voz alta.
Alguma explicação?
Mesmo em criança, nunca fui de cantar no duche. Tinha vergonha, também. Que me ouvissem.
A família não sabia que sabia cantar?
Comecei a cantar fado, por brincadeira, com nove, dez anos. Sete, oito, nove, dez anos. Eles sabiam, porque eu já tinha cantado com guitarristas e já tinha ido com eles aos fados, às matinés nas colectividades. Mas aquela coisa de cantar em casa, nunca.
Acontece-lhe sentir necessidade ou saudade de cantar?
Gosto de cantar num contexto que faz sentido, porque isto sou eu e o público, no fundo. O que eu trabalho em casa, o que trabalho com os músicos, quando fazemos ensaios, é para depois ser apresentado.
E falta do palco, sente?
Não tenho sentido, porque tenho tido muitos espectáculos. Mesmo na fase da Covid as coisas aconteceram, embora com menos concertos.
Consegue sempre encontrar o estado para expressar sentimento e emoção, diante do público ou quando está a gravar em estúdio?
Não acho o fado diferente, nesse aspecto. E às vezes acontece, as pessoas estarem mais fechadas, eu não conseguir aquele objectivo que é o meu em relação ao que estou a cantar, ao registo emocional. Mas, normalmente, num concerto, as coisas vão melhorando. Em princípio, funcionam.
É algo que surge com a música? Com aquele momento?
Sim. É preciso sairmos de nós próprios, irmos por dentro do texto. A ideia é ser o menos exibicionista possível, aliás, nada exibicionista. Esquecermo-nos de nós próprios e irmos pelo registo emocional dos temas, da história que estamos a contar. Isso é que é mais importante.
Trabalha, essencialmente, com texto e música de outros. Quando decide escolher, o que é que leva a essa escolha?
Às vezes, é muito intuitivo. É gostar do texto, gostar da história. E em relação à música, é que a música consiga ser transportada para um ambiente musical que é o meu, que é o fado. E que tem a ver com uma característica daquilo com que me identifico, e que eu gosto, no fado. Há músicas que gostei imenso, mas não consegui transportá-las para o meu ambiente musical.
É mais de manter colaborações longas ou de ir experimentando novas colaborações?
Sempre fui experimentando novas pessoas, há sempre gente nova a fazer coisas. Houve muita gente com quem trabalhei, por exemplo, o José Mário Branco produziu os meus discos durante 20 anos ou mais. Ele não era do fado e em relação a mim acho que houve uma identificação forte com o fado e a partir daí ele apaixonou-se pelo fado. De alguma forma, via o fado da mesma forma que eu via: é preciso manter aquele ambiente musical. E outras pessoas, que foram aparecendo. O Jorge Palma, o Sérgio Godinho, o Pedro Abrunhosa.
Tem colaborações com Dead Combo, os Humanos, Mário Laginha, músicos muito diferentes, de géneros muito diferentes.
Um dia estava no CCB, e estávamos no camarim, a tocar, e eu cantei, com a entrada do “Fado menor”, um tema dos Xutos, e o Tim, depois, passado uns tempos, convidou-me para cantar num espectáculo um tema do Circo de Feras. E acabou por acontecer.
Mas também já pôs o David Fonseca a cantar fado.
Foi um espectáculo que fiz no Mercado da Ribeira em Lisboa, era um festival, e convidei o David para cantar uns fados.
E ele safa-se?
Safou-se muito bem.
Apesar de todas as colaborações, pode dizer-se que o Camané, de alguma maneira, é um conservador no modo como canta e como entende o fado?
Não é conservador. Eu cresci no meio do fado. Sou do fado. Sou cantor porque sou fadista. A minha característica de canto tem a ver com o fado. Eu cantava fado às escondidas, quando era miúdo, porque as pessoas gozavam com o fado. Em casa, ouvia fado baixinho, os discos, e punha música dos anos 80, a partir, alto. Passavam ao pé da minha casa, ninguém ouvia barulho enquanto eu estava a ouvir fado, mas quando ouvia rock, ouvia rock, alto, aquelas bandas todas, as portuguesas e as estrangeiras. Havia um preconceito, injusto, porque o fado é uma música cheia de expressão. E eu tinha que disfarçar.
Já não existe?
Acho que não.
O fado conquistou um lugar?
Sempre teve, sempre houve coisas muito boas.
Há regras dentro do fado que opta por não quebrar? Ou concessões que faz questão de não fazer?
O fado é preciso ouvi-lo e identificá-lo como fado. É um ambiente musical que quero manter, porque venho desse lado muito antigo do fado. O fado cresce de dentro para fora. Está sempre a evoluir, mas de dentro para fora, não é de fora para dentro. Outra coisa, é transformá-lo numa coisa que não é verdade. Há pessoas que têm influência do fado, e que fazem música através dessa influência, e são coisas boas. Agora, na minha forma de estar no fado, não é essa a minha postura. Eu sou fadista, não é por influência desta música, é porque eu já nasci com isso, cresci no meio disso. O importante para mim é fazer que aquilo que gosto da maneira que tem a ver com aquilo que me foi dado.
Quem foram os artistas que primeiro lhe chamaram a atenção?
Ouvia o Marceneiro, o Carlos do Carmo, o Fernando Maurício, a Amália, a Maria Teresa Noronha, a Teresa Tarouca, toda a gente. Havia fados em Cascais, e nas casas de fados, em Cascais, estavam lá todos. Aqueles que eu ouvia em casa. Deixaram todas de existir. Eu lembro-me de ir a Cascais e estar lá o Marceneiro. Tive vergonha de falar ao Marceneiro e fui em frente e sentei-me numa mesa com a Amália e o Carlos Conde. Tinha 10 anos.
Havia modernidade e experimentalismo nas gerações mais antigas do fado?
Nem sempre reconhecida, mas hoje em dia é reconhecida. Por exemplo, muitas vezes pego nalguns fados tradicionais e coloco umas letras novas e conto a história com essa música, porque isso faz parte. Como a Amália fazia. Eu com 10 anos sabia os fados tradicionais todos, cento e tal fados. Mais, duzentos. Fui aprendendo.
Viveu muito tempo esse ambiente?
Fui para as casas de fado, foi a minha escola. Em Lisboa. Eu morava em Oeiras. Consegui transportar para o palco aquilo que aprendi. Até 1998 cantei nas casas de fados, todos os dias.
Agrada-lhe quando o fado se cruza com outras linguagens musicais, como a Ana Moura, o Pedro Mafama ou a Rita Vian têm feito, entre outros?
Há coisas que gosto imenso, mas não é a minha opção. São opções de outros artistas, que têm outras referências. Agrada-me, já ouvi coisas que gosto imenso, mas na minha forma de estar no fado, não faço. Fiz algumas participações em que isso aconteceu, mas são coisas pontuais. O fado é fado. A minha opção é essa.
Faz sentido falar em novo fado?
Essa expressão já existe há muito tempo, desde que eu comecei a cantar. É o fado. Só existe fado. A mim também me chamaram novo fado, não percebo porquê.
Algum projecto a ser preparado?
Aos poucos estão a surgir músicas novas. Inclusive, estamos a pensar gravar já um ou dois temas desses. As coisas estão a acontecer.