É uma tarde de domingo como tantas outras, fria e com jogos a acontecer em vários campos de futebol do distrito. No Albano Tomé Fèteira, em Vieira de Leiria, nove dezenas de espectadores aguardam pela saída do túnel dos jogadores de Vieirense e de Caçadores de Ansião, duas equipas de meio da tabela da Divisão de Honra distrital, o quarto escalão do futebol português. Ou penúltimo.
O speaker dá o onze da casa. “Com o 12, Ruben Lopes. Com o 4, Bruno Ferreira. Com o 6, Sérgio Letra. Com o 25, André Lourenço…” O rapaz olha para a bancada à procura da mãe, como sempre faz, mas não a encontra.
Sem manias, apenas um pouco refilão, André Lourenço passa despercebido, como convém a qualquer central. Contudo, nas bancadas, um pai identifica-o e comenta com o filho que “aquele rapaz que joga a central é campeão do mundo de futebol de praia”. A criança esbugalha os olhos, admirado por ver ali, naquele campo modesto, uma estrela de tal gabarito.
Sempre jogou “em todo o lado” e o treinador Luciano Silva decidiu colocá-lo no centro da defesa. André está menos em jogo, o que acaba por preservá-lo para a sua outra vida. A que realmente conta. Depois do título mundial, a recente transferência do GRAP para o Sporting de Braga, “o Real Madrid do futebol de praia”, mudou-lhe o destino.
“O futebol é o momento”, diz. “Qualidade, se calhar, até o meu vizinho tem mais do que eu. Simplesmente uns não tiveram sorte ou facilitaram no momento. Não tenho um dom, jogar à bola toda a gente joga, o que mudou foi saber aproveitar a oportunidade.”
Hoje, ele é um referência do futebol de praia e uma figura notável da sociedade. O Presidente da República atribuiu a Ordem de Mérito a todos os jogadores campeões do mundo. “Muitas vezes, quando chego a casa, ainda vou ver o golo que fiz na final. Apesar de ser um golo banal, vou vê-lo sempre. Puxo para trás e vejo umas cinco vezes.” E pensar que começou a jogar na areia, pelo clube dos Pousos, há apenas três anos.
Recorda-se muitas vezes dos arrepios que sentia a entoar o hino: “depois de ouvi-lo parecemos o Hulk”. As palavras de Marcelo também não lhe saem da cabeça, de resto, como a recepção na Cidade do Futebol feita por alguns nomes grandes. “Disse ao mister Fernando Santos que ele é o maior”, recorda, orgulhoso do tempo que passou junto daqueles que são, ainda e sempre, seus ídolos. [LER_MAIS]
“Tudo aconteceu muito rápido. Quando fui à selecção a primeira vez ainda não jogava há um ano a jogar na praia e tinha 15 jogos feitos. Até perguntei à minha mãe o que ia lá fazer”, afirma, agradecido ao GRAP e à “pela imensa paciência” que jogadores a equipa técnica nacional tiveram até ficar no ponto. “Marcava na própria baliza e fazia muitas faltas. Confiaram que podia dar e deu. Se fosse outro seleccionador, se calhar não apostava.”
Relvado sintético
Voltamos à Vieira. Chega o intervalo. O jogo é disputado sobretudo a meio-campo e pouco mais teve de fazer do que uns passos para o lado no início do processo de construção. André pergunta aos amigos pela mãe. Por lapso, ela deslocou-se a Ansião para ver o jogo. Ainda chegaria a tempo de ver uma parte do desafio.
A segunda parte seria completamente diferente. O Vieirense entra a matar, mas o Ansião aproveita uma perda de bola para chegar à vantagem. A partir dali, a partida mudou rumo. A começar pela posição do rapaz de 24 anos, que deixou o centro da defesa e rumou a extremo-esquerdo, onde lhe é mais fácil mostrar o que vale com os pés.
A equipa da Vieira sufoca o adversário. Chega o empate. Pouco depois, dá a volta e ganha. André Lourenço está feliz. “O prazer de ganhar é o mesmo, seja aqui, na selecção ou num jogo de futsal com os amigos. Quando estou a central não se vê tanto, mas empenho-me para ganhar. O que muda é que num lado estamos a jogar por Portugal e no outro a jogar com o Ansião. A atmosfera é completamente diferente e a preparação também.”
Só lamenta as poucas pessoas na bancada. Dos estádios repletos pelo mundo fora a meia-dúzia de gatos pingados no distritalão. “Gosto de jogar com muita gente, mas é o que há. Desde que esteja a minha mãe, está tudo bem…”
A verdade é que quem lhe tira o envolvimento das partidas de domingo tira-lhe tudo. André sabe que agora, com a transferência para “o melhor clube do mundo”, a equipa três vezes campeã europeia, mais tarde ou mais cedo terá de deixar os relvados. “Também disse que só fazia três jogos e já está a acabar a primeira volta. Enquanto der, vai dando, mas a responsabilidade aumentou.”
Chuta para a frente. “Já nem devia jogar pelo risco de de lesionar, mas o Braga autoriza. É importante em termos mentais, para manter-me em competição, e sinto-me mesmo bem no Vieirense. A malta, a estrutura, adoro a equipa técnica, só eles para me deixarem fazer isto. Falto algumas vezes, mas, quando chego, jogo. Sou muito feliz.”
Sente que os colegas têm “orgulho” em com ele partilharem o balneário e não é por ser campeão do Mundo e vencedor dos Jogos Europeus de Praia que a relação se alterou. “Tenho a mania de estar a refilar. Não levam a mal e também me mandam dar uma volta quando é preciso.”
Agora, em Fevereiro, André Lourenço vai ter de faltar a uns jogos do Vieirense. Vai voltar ao chip profissional. Segue para Moscovo com o Sporting de Braga para disputar o Mundial de clubes num pavilhão com lotação para 30 mil pessoas. Quer dar sequência ao ano perfeito de 2019. Além dos títulos pela selecção nacional, ganhou a World Winners Cup pelo Flamengo, do Rio de Janeiro, na Turquia.
André Lourenço dá “graças a Deus” por tudo o que aconteceu no ano passado. Admite, até, que poderia muito bem já “estar a trabalhar” se o futebol de praia não lhe tivesse dado a volta à vida desportiva. É que a aposta na relva nunca chegou a dar os frutos com que sempre sonhou.
“Quando era miúdo não era opção, e bem! Não jogava nada, mas achava que jogava. Depois comecei a melhorar, mas a realidade é que quando joguei no Campeonato de Portugal foi sempre em equipas para descer. Mais vale engolir o sapo e assumir: vou dizer que dava se não dava? Ainda bem que apareceu o futebol de praia.”
Garante que é a mesma pessoa. Que não é por agora ser comendador que deixa de ajudar o amigo David a instalar radiadores e painéis solares. “Faço o que ele precisar. A minha vida mudou, mas continuo a ser o mesmo. Estou com os meus.”