Constança arrepiava-se sempre que se encontrava defronte daqueles portões. A enorme tabuleta que assinalava o ano de 1839 marcava o início da penosa caminhada.
As pequenas construções esfumadas e escuras, encimadas por imagens de santos, de cruzes, de anjos e de cúpulas negras faziam-na arrepiar. E tremer… E não, não era por causa do frio gélido e cortante que lhe enregelava o nariz! Era pelo misto de respeito e de pavor que sentia, ali, onde o Sol, mesmo brilhando, não entrava e a penumbra tornava tudo muito mais aterrador.
A cada passo, Constança tentava abafar o barulho solitário e pesado dos tacões como se recorresse a um bailado frio num palco de lava.
A cada ruído, escondia a cara entre os colarinhos do sobretudo e deixava apenas os olhos de fora qual gatuno comprometido abandonando o lugar do furto.
Não receava os mortos!
A avó apaziguara-lhe esses receios e ajudara-a a fazer as pazes com os seus medos, como só as avós sabem fazer.
«Os mortos não nos atormentam», dizia, «Teme, antes, os vivos! Esses, sim, esses é que nos consomem!»
Aquela avó! A importância que aquela mulher tinha na sua vida era inquestionável! Dela tinha herdado o gosto pelos universos fantásticos, pelas crenças que curavam a alma e pela fé que aliviava o espírito. Tinha, com ela, aprendido a respeitar o sobrenatural, as mezinhas e o empírico. As histórias mirabolantes, impregnadas de fadas e bruxas más, de gnomos e monstros, de dragões e sereias e de almas penadas que dela ouvia, mesmo antes de adormecer, nunca a assustaram.
Um dia, aquela avó ofereceu-lhe um livro e, imediatamente, por ele se apaixonou.
Retratava-a. Era a avó! Era a mulher intemporal de Quina, qual «Sibila» enigmática, qual «Sibila» incompreendida, adivinhando o futuro, fugindo de pessoas negativas, cheirando a maldade à distância, reconhecendo as gentes inflamadas de cólera e as de coração aberto. Via com a intuição e interpretava com a alma.
Constança sabia que lhe corria, também, nas veias, a carga de uma herança pesada, misteriosa e incontornável, por isso, ali, decidida, elevou o queixo, abandonou o esconderijo construído pelas duas golas escuras do casaco, e prosseguiu, afoita, caminhando, apressadamente, sobre aquele empedrado escuro.
Chegada ao jazigo onde repousava o marido, sentou-se num dos bancos que lhe ficava defronte, juntou as mãos e repousou o seu olhar vazio, no vidro. A força que parecia ter conseguido conquistar até aquele momento desvanecia-se, ali, como um balão que perde o ar, aceleradamente.
E foi, então, que uma voz sussurrada, vinda dos dois corações unidos dos avós, lhe soprou aos ouvidos, arrepiando-a.
«Vai!»
E ela, atenta aos sinais, obedeceu.
Levantou-se rapidamente e saiu dali a correr.
E nem olhou para trás.
Sabia que a voz, temperada de SABEDORIA e de VERDADE, dos avós, mesmo que somente sussurrada, é para ser ouvida e respeitada.
* Excerto adaptado pela autora/escritora, da sua obra «Na Sombra das Pedras».
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo ortográfico de 1990