Mostraram talento, qualidade e garra. Calçar as chuteiras e pisar o tapete da relva, dentro das quatro linhas, foi o cumprir de um sonho de várias atletas da região, que representaram a selecção nacional feminina ao longo dos anos. Não há muito tempo, tudo ainda era amador, à procura de um lugar ao sol.
Pela terceira vez consecutiva, a selecção nacional feminina garantiu o apuramento para o Campeonato Europeu, algo que nunca aconteceu na sua história, após vencer a República Checa por 2-1, com dois golos de Diana Silva, jogadora com raízes em Ourém.
Ana Valinho – ou Pastorinha, a alcunha no ‘mundo da bola’ – ainda se lembra de ver as craques do plantel actual a iniciar o seu percurso desportivo. Foi convocada, pela primeira vez, em 2006, quando jogava futebol há cerca de três meses no 1.º de Dezembro, depois de anos passados no futsal. “Lembro- -me que estava na faculdade, para uma aula, e vi um número. Atendi e era da federação. Fiquei logo em êxtase, não estava nada à espera, jogava há meia dúzia de meses”, recorda a antiga atleta.
Na altura, o futebol feminino não era o que já começa a ser. Todas as jogadoras eram ainda amadoras e seguiam o sonho do futebol feminino, sem nada em troca. “Fazíamos aquilo ao final do dia, com três treinos por semana. Tínhamos a nossa profissão e, no final do dia, treinávamos. Na selecção, não havia nenhuma jogadora profissional. Agora já são todas profissionais, essa é a grande diferença. Por isso é que estamos a conseguir, felizmente, chegar a outros patamares”, considera a ‘Pastorinha’, que é natural de Fátima.
A defesa fez 19 internacionalizações e contabilizou 1.340 minutos jogados. Individualmente, passou pelo Clube Desportivo da Caranguejeira e, na época 2011/2012, integrou o plantel do Atlético Clube Ouriense, onde veio a acabar a carreira, em 2020/2021.
Nos anos em que se dedicou à modalidade, encontrou um mundo repleto de talento e vontade de vencer, mas sem uma estrutura atrás que apoiasse as conquistas das jogadoras. Por mais dedicação que cada atleta tivesse, a ‘vida dupla’ entre a profissão e o desporto acabava por penalizar os resultados, que dependem da intensidade e assiduidade dos treinos.
“Tinha a percepção de que, quando Portugal conseguisse ter equipas e jogadoras profissionais, íamos conseguir. Porque tecnicamente, e em termos de pensamento de jogo, não éramos nada inferiores”, comenta Ana Valinho.
Os trabalhos na selecção nacional eram levados muito a sério. Mesmo com uma estrutura pequena, a equipa rivalizava com as adversárias que, claramente, jogavam noutra realidade.
A ‘Pastorinha’ lembra-se de ver outras selecções onde as jogadoras que já eram mães traziam os seus bebés, babysitters e até família na comitiva. As equipas técnicas tinham quase tantas pessoas como o plantel. Nada que ainda acontecesse em Portugal.
Aliás, para qualquer menina começar a jogar, não havia outra hipótese: tinha de integrar equipas mistas, já que a formação feminina demorou muitos anos a estabelecer-se. “Custou-nos muito mais chegar a este patamar e, mesmo assim, ainda estamos a anos-luz de ter as mesmas condições, quer financeiras, quer de estruturas, que os homens. Mesmo sendo profissionais”, lamenta a antiga defesa.
Hoje, Ana Valinho é técnica desportiva e, além de ser professora das Actividades de Enriquecimento Curricular, trabalha no ginásio My Move, em Fátima, onde a antiga colega de plantel, Margarida Marques, é proprietária.
“Foi a Ana que me chateou a cabeça. Ela até dizia: ‘Vem jogar futebol 11 que vais à selecção’. E passado dois ou três meses, fui convocada. Não estava nada à espera, como é óbvio, porque nunca tinha jogado futebol”, recorda a personal trainer.
‘Pisco’ era o nome que tomava quando estava dentro das quatro linhas, e conheceu várias: as linhas do futebol 11, do futebol de praia e do futsal.
Esta jogadora já pertence a uma geração mais recente na selecção, com a primeira internacionalização a acontecer em 2012. Nessa altura, o cenário começava a mudar e até chegou a ser remunerada enquanto representava Portugal. “Senti que, mesmo se perdêssemos o jogo, para nós, já era uma vitória o jogo em si. Sentíamos que estávamos a jogar com jogadoras profissionais e que conseguíamos fazer frente àquelas equipas”, realça a atleta.
Contudo, a remuneração ainda não justificava faltar ao trabalho. “Gostava de ir à selecção porque representava o meu País. Em termos monetários, perdia dinheiro.”
Para esta jogadora, chegou a altura em que teve de escolher entre o sonho de jogar futebol, sem estabilidade, ou a profissão de personal trainer. Mesmo assim, ficam as boas memórias de quem aproveitou ao máximo a experiência.
Primeira internacional da região
Cátia Bento não teve a mesma experiência. Foi a primeira jogadora da região a ser convocada, em 2002, e integrou o ‘núcleo duro’ que já representava o País há vários anos. A avançada começou a carreira no clube criado pela família, o Clube Desportivo e Recreativo da Amieira, na Marinha Grande, e sempre preferiu equipas “muito familiares”. “Ali, não senti isso”, confessa.
Deparou-se com um grupo “muito fechado” e a integração não foi fácil, conta. Ainda jogou contra a Grécia, a 21 de Janeiro, no Estádio Municipal de Rio Maior, e saiu de lá com uma vitória por 3-0. Não regressou à selecção, mas ficou o orgulho do momento em que pisou o relvado com as cores portuguesas.
Por outro lado, ‘Tita’ já pertenceu à geração da mudança. Apesar de integrar a equipa nacional em 2006, tal como a ‘Pastorinha’, viveu nos dois mundos: começou a trabalhar para jogar e terminou com contratos profissionais no Benfica e Torreense. Diz mesmo que teve “a sorte” de ver a realidade a tomar outra direcção.
O início do percurso na selecção foi caricato. “Como jogava futsal, nem sequer tinha chuteiras. Fui para um estágio com umas botas emprestadas de tamanho 41 e eu calço o 39.” A fisioterapeuta admite que hoje o “futebol tem cada vez mais qualidade”.
Detalha algumas das mudanças que vê, principalmente a da imagem da mulher no desporto. “Antigamente, éramos encaradas como marias-rapazes. Hoje em dia, não. A imagem da mulher já está vincada. É uma vitória.”
E estas ‘pequenas’ vitórias são muito celebradas no futebol feminino. Apesar da selecção feminina ter ‘só’ garantido o apuramento para o Europeu, a conquista é o “espelho do esforço e da qualidade da jogadora portuguesa”, refere Ana Filipa Lopes. “Acredito que vai tornar-se um hábito.”