Como se explica a longevidade do festival de jazz do Valado?
Perseverança. E teimosia, também. Na altura, realmente, era uma novidade. Há 20 anos, quem queria ouvir jazz tinha de vir ao Valado. Não havia jazz em Leiria, não havia jazz em Alcobaça, não havia jazz nas Caldas, só havia no Valado. E era uma vez por ano. O Valado tinha nesta região centro, digamos, o exclusivo do jazz. Hoje, felizmente, há jazz em todo o lado, mas estou convencido que o festival de jazz do Valado tem uma função importantíssima de ter vindo a criar públicos ao longo destes anos. Há uma programação regular que há 20 anos não havia.
E há mais público de jazz.
Sim, muito mais. Em 99, 2000, 2001, as pessoas vinham de propósito ao jazz, mas a maior parte delas vinha por curiosidade. E a pouco e pouco foram começando a perceber o que é que era e a distinguir características dos grupos. E depois é evidente que hoje há muito mais jovens a tocar jazz. Há cerca de 15 anos, houve o boom das escolas superiores, a licenciatura em jazz, que não tínhamos, passámos a ter, na Escola Superior de Música de Lisboa, na ESMAE do Porto, posteriormente na Universidade de Évora, agora na Universidade Lusíada, na Universidade de Aveiro.
Faz falta um curso superior de jazz na região?
Não conheço números para saber se haveria ou não candidatos suficientes para manter um curso dessa natureza. Sei que os que estão a funcionar, o mais próximo é Aveiro, ou Lisboa, estão a funcionar bem e têm bastantes provas dadas. Há excelentes jovens jazzistas, esta nova geração incrível de jazzistas é fruto deste trabalho das escolas superiores, não há dúvida. Há coisas que, em Portugal, quase não sabemos. Por exemplo, na área da música clássica, estamos a exportar músicos fantásticos. Há muitas orquestras pela Europa fora, orquestras sinfónicas, de topo, que têm quatro e cinco e seis portugueses.
Saíram dos conservatórios, mas muitos deles começaram nas filarmónicas.
Começaram nas filarmónicas, passaram para os conservatórios, escolas superiores, nós neste momento temos uma formação qualitativa em termos de música clássica impressionante, que passa ao lado da população. Quando um jovem nosso consegue por concurso um lugar na orquestra de Genebra, por exemplo, não vem no telejornal, não vem nos jornais, ninguém sabe. Mas temos excelentes músicos. Eu tenho dois ex-alunos a tocar numa das orquestras de Berlim, um aqui do Valado e outro que estava na banda das Caldas da Rainha.
É um nível de talento e competência técnica que não é valorizado?
Se falássemos de futebol, toda a gente percebia. Um miúdo que vai jogar para uma grande equipa, fala-se, dá-se protagonismo. Quando é um miúdo, português, que vai para uma grande orquestra, estamos a falar da mesma coisa, estamos a falar de um jovem com muito talento que consegue entrar numa equipa de topo. Este miúdo das Caldas, que entrou na orquestra da ópera, de Berlim, eram 600 pessoas a concorrer para uma vaga, a nível mundial.
As filarmónicas continuam a ser um viveiro?
Fundamentais. Infelizmente, com muita deficiência a nível de apoios. Não há câmara que não apoie a sua filarmónica, mas, como é que apoiam? Um subsidiozinho anual. E eu digo um subsidiozinho em relação ao que as filarmónicas realmente mereciam. E depois fazem um concerto no dia da cidade onde gastam quatro ou cinco ou seis vezes mais do que dão às filarmónicas todas. São opções políticas, que respeito, embora não concorde. As filarmónicas deviam ser muito mais apoiadas. Mas não só, tudo o que é associativismo. Muitas colectividades, sobretudo nas terras mais pequenas, neste momento são castigadas pela sociedade. Ninguém quer hoje perder o seu próprio tempo para ir para uma colectividade varrer ou servir no bar, aquilo que se chama voluntariado. Isto, também, porque as pessoas sentem que as colectividades não têm os apoios necessários para desenvolver a sua actividade. Antigamente, nas freguesias, uma colectividade como esta [a BIR, no Valado, que organiza o festival de jazz] precisava de um telhado novo, o que é que fazia? Um concerto com o Paco Bandeira ou com o José Cid. O Paco Bandeira vinha tocar à associação, vendiam-se bilhetes e aquilo ainda dava lucro para pagar o telhado. Quando as câmaras municipais, há 30 anos, começaram a perceber esta realidade, começaram a ser as câmaras a contratar o José Cid e o Paco Bandeira para fazerem os megaconcertos. O que é que aconteceu? O preço dos artistas subiu exponencialmente. As colectividades deixaram de poder contratar esses artistas.
Os municípios fazem concorrência às associações?
Claro. E pior: como têm o dinheiro, dão os concertos à borla às pessoas. Quem levar os filhos a ver uma orquestra sinfónica tem de pagar, mas Tony Carreira ou Xutos & Pontapés tem à borla durante o Verão em carradas de vilas. Há aqui qualquer coisa que está errada, na minha opinião. Não tenho nada contra as câmaras organizarem concertos, tenho contra as câmaras organizarem concertos à borla para as pessoas. Que paguem um euro, que paguem dois euros, mas que paguem. À borla não. Para mim, é um dos graves problemas da cultura em Portugal. As pessoas que decidem estas coisas, na realidade, a maior parte delas não tem sensibilidade cultural. Mas foram eleitos e mandam. É isto que acontece.
Qual é a alternativa?
O bom senso. Não é justo as pessoas terem de borla estes megaconcertos com grupos megafamosos que custam um balúrdio às autarquias quando depois têm de pagar para levar os filhos a ver uma exposição ou a ver um concerto de música clássica.
Era mais justo que algumas dessas verbas chegassem às associações ou a outras entidades que depois desenvolvem a sua própria programação?
Exactamente. Era muito mais importante as câmaras delegarem, entre aspas, nas associações locais. “Façam, que nós apoiamos”, ao contrário de “deixem-se estar quietos que nós fazemos”. Isto arruinou o associativismo no nosso País. Não estou a criticar a câmara de Leiria, a câmara de Alcobaça, a câmara da Nazaré. Estou a falar a nível geral. É a experiência que tenho e tenho corrido o País inteiro com concertos. Cada vez que falo com associações ou com autarcas é isto que eu sinto. Que as câmaras chamaram a si a responsabilidade de organizar tudo o que é cultura e as associações, a maior parte delas, foram postas num cantinho. Isto matou o associativismo, matou a vontade de as pessoas fazerem parte de uma direcção de uma colectividade. Há tendência para mudar, porque há mais organizações, sobretudo de carácter privado, que se podem candidatar aos apoios, directamente, da Direcção-Geral das Artes, e conseguem fazer cultura independente, sem as dependências municipais. Mas, por outro lado, ainda há uma grande dependência das autarquias.
Voltando ao Valado, não é exagero dizer que todos os grandes nomes do jazz português passaram aqui pelo festival.
Não é exagero nenhum, pelo contrário. Já todos cá passaram.
E o que dizem?
Temos músicos a dizer que é o melhor festival de sempre, tivemos músicos americanos que vieram aqui tocar que nos disseram “isto em Nova Iorque era o melhor clube do mundo”.
Paradoxalmente, sofreram um pequeno corte nos apoios do Município da Nazaré, nesta última edição, e no ano passado estiveram temporariamente fora dos apoios da Direcção-Geral das Artes.
O nosso País, infelizmente, é assim. Há professores que dão aulas há vinte e tal anos e não sabem onde vão dar aulas para o ano, os enfermeiros não sabem onde vão trabalhar daqui a dois anos.
Quem trabalha na cultura tem de se habituar a viver com incerteza?
Agora, na cultura, faz-se um chavão que é o combate à precariedade laboral. Isto para mim é uma coisa quase ridícula. Acho muito bem combater a precariedade laboral, agora, uma colectividade, uma associação, não pode ter um actor a tempo inteiro. Não posso ter um músico de jazz contratado a tempo inteiro quando só faço um mês de festival por ano. Sempre trabalhei a recibos verdes. Não sou um trabalhador precário, sou um trabalhador que presta serviços a várias entidades. Logo, tem de haver esta figura. Um músico, um actor, um artista, se todos tivéssemos de ter um emprego fixo ou por conta de outrem, estávamos a cortar completamente a criação artística. Os recibos verdes são uma ferramenta. Os artistas não podem estar presos a instituições.
Na Nazaré, o turismo e o surf podem ter efeitos positivos para um evento como o festival de jazz do Valado?
Bastante, acho que sim. A Nazaré neste momento goza de uma popularidade internacional incrível. As pessoas dedicadas ao turismo vêem os números que têm agora e os números que tinham há 10 anos.
A questão é se, além dos restaurantes e da praia, alguns desses turistas chegam a ser público da cultura.
Esse é o trabalho que temos de fazer agora. Há uma coisa muito importante: há 20 anos, em Março, Abril, Novembro, Dezembro, os restaurantes fechavam, não se via ninguém. Hoje, temos gente na Nazaré todo o ano. É aproveitar, quando estão cá, para lhes darmos, também, outras coisas. Ninguém vai ver as ondas à noite, ninguém vai surfar à noite, então vamos criar coisas para essas pessoas virem assistir.
Fundou a Orquestra Juvenil da Junta de Freguesia de Valado dos Frades e a Big Band do Município da Nazaré. Que qualidades são indispensáveis num maestro?
Um bom maestro tem de trabalhar muito. Tem de ter capacidade de liderança, perseverança e, acho eu, bom gosto. Temos de estar sempre em constante evolução.
Passado e futuro: “Ainda gostava de ser autarca”
Professor, director artístico, maestro, Adelino Mota é o rosto do festival de jazz de Valado de Frades e está também ligado à Orquestra Juvenil da Junta de Freguesia de Valado dos Frades e à Big Band do Município da Nazaré, que fundou e coordena. Natural de Coimbra, cresceu no Valado e reside em Caldas da Rainha, onde dirige a Banda Comércio e Indústria e criou a escola que deu origem ao Conservatório de Música. Já trabalhou com solistas como Sérgio Carolino e João Barradas e cantores como João Afonso e Sofia Escobar. Aos 59 anos, alimenta um derradeiro desafio, não na música, mas na política. “Antes de me reformar, ainda gostava de ser autarca. Não sei ainda onde e quando, mas está nos meus horizontes”. Desde muito cedo ligado à BIR (que organiza o festival de jazz) e ao associativismo, Adelino Mota acredita que estão reunidas as condições para mudar de partitura. “A minha carreira como maestro é muito importante para mim, o meu trabalho sempre foi a música, mas acho que podia dar muito mais à sociedade, neste momento, na parte da decisão, dentro de uma autarquia. Acho que poderia fazer um bom trabalho”.