A imprensa especializada diz que, No Fim Era o Frio, é o vosso 13.º disco de originais. O número aziago influenciou-o na escrita?
Já lhes perdi a conta. O número não teve qualquer influência. As contas são difíceis. Temos discos originais que não são discos de estúdio e temos de estúdio que não são originais. Baralhámos as contas todas.
Em Pelo Meu Relógio São Horas de Matar, há 4 anos, havia a rodear a sociedade um sentimento de revolta desencadeado pela crise e pela austeridade, que resultou numa mensagem muito forte. Neste álbum, há uma história distópica, de perda, de desolação e com a crise climática como cenário. A actualidade marca, outra vez, a sua escrita?
É um acaso. No disco anterior, de facto, fomos muito contaminados pelo real a que não conseguimos fugir. Tínhamos uma ideia musical muito real, onde queríamos experimentar o abrandamento do tempo e toda a composição foi feita a pensar nisso. Porém, o real naquela época era claustrofóbico. No quotidiano, as pessoas sentiam a falta de rendimentos e o discurso negativo e agressivo contra os cidadãos… e esse “real”, com o seu lado pesado e lúgubre, contaminou a estrutura e letras e o disco acabou por reflectir uma espécie de grito de revolta. Este disco arranca com as mudanças climáticas, mas essa não é uma matéria nova. É muito antiga. Pelo menos desde a Conferência do Rio, nos anos 90, que é um assunto da comunidade internacional, embora não o tenha sido nos media. E também não é o tema principal deste álbum. A história transversal a todo o disco é de amor e de perda.É suficientemente abstracta para a podermos associar à perda do nosso habitat, do nosso planeta. Porém, ela é essencialmente emocional, e desenrola-se num cenário distópico, apocalíptico, em consequência da subida da água do mar, a partir da alteração climática. No seguimento do que temos vivido, dos incêndios, da seca, das tempestades, o disco transformou-se em assunto de notícia. Porém, este é um trabalho estritamente musical, com uma composição associada à música electrónica, mas aplicada à música eléctrica e ao rock. Comecei a fazer as letras para o que o Miguel me ia apresentando, sem pensar em nada em especial e, só a determinado momento, me apercebi que as letras tinham uma linha que as unia.
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No disco, há, nas suas palavras, um “contacto sexual com a amada que de repente se transforma numa espécie de monstro horrível, nojento”. Nas mentes de alguns casais isto deve ser muito comum…
Sim (risos), isso faz parte do quotidiano, mas de outra forma. Deve haver muitas pessoas que descobrem que, em vez de um príncipe, casaram com um monstro. Nesta narrativa, aborda o sexo, mas também o amor e a perda… Há um tema, que é o mais comprido do disco, com uma cena de sexo muito forte, mas não está no âmago da questão, que é essa sensação de perda e toda a disfuncionalidade objectiva e subjectiva do indivíduo, quando está sob o seu efeito. O sexo, aqui, não é relevante… só é digno de nota porque não é habitual haver descrições sexuais em canções ou sequer na literatura.
O sentimento do amor não é primário, como o medo ou alegria, pois corresponde a uma construção com raízes antigas na poesia e literatura. Damos demasiado valor ao amor?
Damos pouco valor ao amor. O amor é uma coisa muito importante. O problema é que o confundimos com muitas outras coisas, nomeadamente com a paixão. O amor não é sofrimento, o amor é plenitude. É um estado zen, é um estado de bem-estar. A falta do amor é que cria sofrimento. Já a paixão é uma coisa muito vívida, muito arranhada, muito carne viva, e, do mesmo modo que dá grandes alegrias, também dá grande sofrimento. O amor tem tendência a perdurar mais e a crescer. Temos tendência a associar as grandes histórias de amor a uma certa habituação ao outro… O amor é habituação ao outro e integração do outro em si próprio. É um esvaziamento do ego próprio para o partilhar e, nessa partilha, partilhar também o ego do outro, integrando-o em si. É um estado de grande plenitude, de grande cumplicidade e de grande paz. Se toda a gente tivesse amor, o mundo seria muito melhor e simpático.
Gostamos, contudo, mais de Romeu e Julieta e de Pedro e Inês, do que das “histórias chatas” de velhinhos que passaram uma vida inteira juntos e passeiam de mãos dadas.
São velhinhos que vivem bem. Que vivem pacíficos… Precisamos de conflito. Aliás, o conflito até está no cerne das artes. Toda a dramaturgia só existe porque ele existe. A pintura, sem conflito, torna-se oca. As grandes canções, as grandes sinfonias, os grandes romances… sem conflito não produzimos, mas a produção cultural e artística não é um sinal de amor, de plenitude, de bem-estar. Para o autor, o acto criativo é a busca de remoção do conflito ou de uma dor interna que existe por não haver plenitude. É uma forma de apaziguar o sofrimento.
É um homem que vive o amor ou sofre de paixão?
Sou uma pessoa que vive de forma pacata.
Falando em conflito, mas em conflito social e actual, André Ventura e Joacine Katar Moreira são duas faces da mesma moeda da insatisfação social?
São dois opostos e são ambos disparatados. A Joacine pode ter boas intenções, mas tem um discurso muito direccionado para tribos específicas e é muito centrada na questão racial e imigratória… Não aborda muito o tema dos direitos da mulher e igualdade de género. Foi eleita por mérito próprio, porém a representar o partido e, segundo as regras do sistema eleitoral democrático português, foi o Livre que foi eleito. Assim que ela recebeu um bocadinho de notoriedade, não a soube gerir e transformou-se no contrário das ideias que defende. Não sou politólogo, nem sei como funcionam as questões sociológicas da implantação dos partidos ou do poder de atracção para o voto, mas parece-me que Joacine se tornou numa personagem ditatorial, tornou-se numa prima-dona e não soube gerir a simpatia que ganhou… tornou-se, de alguma forma, numa personagem repelente. Se esquecermos o discurso e se atentarmos ao que faz, parece uma personagem de extrema-direita. Nesse sentido, aproxima-se do Ventura. E o André Ventura é uma personagem asquerosa, como qualquer personagem de extrema-direita. É reaccionário, racista, completamente contraditório na forma como formula o que diz. Tem um discurso populista e é certo que todos os políticos o têm para angariar votos. Mas, no discurso do Ventura, notamos que ele tenta apanhar o pior do ser humano. O discurso populista dos outros políticos, em campanha eleitoral, promete muito e assenta em coisas boas: mais emprego, melhores salários… O Ventura pega na maior ruindade que as pessoas têm dentro de si e transforma-a em bandeira a prosseguir. O público, que sente um mal-estar, segue esse discurso negativo de maldade. Como disse, não sou politólogo, mas creio que ele [LER_MAIS]não ultrapassará a quota eleitoral do CDS, partido que capitalizava, de forma mais suave, esse negrume das pessoas, antes de o Chega aparecer. Não me parece que haja mais do que 10% de eleitores a apoiar essa posição.
Numa sociedade onde os cidadãos se comportam como adeptos futebolísticos nas redes sociais, retira-se importância a temas cruciais da actualidade como a igualdade de género, a luta contra a xenofobia ou as alterações climáticas?
Não sei se Trump e Bolsonaro foram eleitos devido ao Twitter ou devido ao Whatsapp, ou por outras coisas, mas as redes sociais transformaram-se nos cafés de hoje. Nos cafés, sempre houve esse ruído, mas com menos visibilidade. Quando havia o fascismo em Portugal, antes do 25 de Abril, havia quem lutasse contra o regime e dava a vida pela democracia. Mas era uma minoria. A maior parte dos portugueses eram alienados pelos três F. No dia 26 de Abril, já eram todos antifascistas, embora, no 24, estivessem a dar vivas a Américo Thomaz ou a Marcello Caetano. Por tudo isto, não é surpreendente que os cidadãos possam ser atraídos por esta novidade do discurso aberrante que lhes muda o seu quotidiano. Até porque a generalidade das pessoas está “farta”, com muito maus fígados, não perde muito tempo a pensar e vai atrás da primeira bandeira que lhes aparece a drapejar mais veementemente.
E já não se luta pelas grandes causas da Humanidade?
Isso depende dos holofotes dos media. A última grande façanha, com objectivos positivos, da comunicação social portuguesa, em especial das televisões, foi a campanha de Timor-Leste. Era um assunto que não interessava nadinha aos cidadãos. Estavam-se perfeitamente a marimbar para aquele território. E, de repente, tínhamos nove ou dez milhões de portugueses a ir para a rua, a fazer cordões humanos, em vigílias… Foi a comunicação social que fez isso, puxando pelo interesse das pessoas. O papel dos media é o de criar expectativa e incentivar o interesse. Se o fizesse mais e por causas justas, em vez de abordarem superficialmente fait-divers ou as vigarices do Sócrates e da Isabel dos Santos, talvez galvanizassem os espectadores para a acção. Imagine que os media impeliam os espectadores a exigir aos Governos que acabassem, por exemplo, com as plantações aberrantes de eucaliptos, para que se criasse áreas de vegetação autóctone protegida, que actuassem de facto na organização da floresta e da propriedade privada. Mas isso não está na ordem do dia. De repente, há um incêndio enorme e a forma como ele é reportado é somente para entreter os espectadores e para terem pena dos que morreram… Trata-se o espectador como um ser inerte, que não tem voz activa para nada. que está em frente à televisão e fica lá, quietinho.
A referência aos eucaliptos é a sua faceta jurídica de especialista em Direito do Ambiente a falar mais alto?
O Direito ocupa-me a maior parte do tempo. É o meu trabalho e a minha profissão. Escrever e música são coisas que faço nos tempos livres. A Conservação da Natureza é uma parte do Direito do Ambiente muito vasta. Grosso modo, a minha área de actuação é o Norte. Estou integrado numa Direcção Regional do Norte, mas já trabalhei muito com a parte internacional e com os serviços centrais em Lisboa.
Tem uma percepção privilegiada do tema do Ordenamento do Território, especialmente após os grandes incêndios de 2017?
É uma percepção externa. Lendo jornais, olhando para o horizonte, constatando no terreno, falando com as pessoas… percebe-se que o grande problema que temos na floresta e no mundo rural é não sabermos a quem pertence a maior parte dos terrenos. Continuamos exactamente na mesma, desde 2017. O levantamento que se tornou obrigatório não existe, os registos continuam velhos sem reflectir a realidade, as Finanças estão-se a marimbar para o facto de se quem lhes está a pagar é ou não o dono dos terrenos, não há cruzamento de dados. Se uma autarquia quiser obrigar à limpeza de um terreno, não sabe a quem há-de obrigar, se limpar, não sabe a quem cobrar e não substitui os proprietários pois não está para arcar com despesas. É uma pescadinha de rabo na boca e as culpas andam ali a girar e nada se resolve. A paisagem portuguesa é pobre, estragada… Na semana passada vi um filme português chamado Alva, cujo cenário é uma região junto a Viseu que ardeu completamente em Outubro de 2017. Foi um dos sítios onde morreram pessoas. O segundo grande personagem deste filme, que foi filmado meses antes dos fogos, é a paisagem. Olhamos para ela e aquilo é assustador. Por causa dos eucaliptos, da falta de limpeza, por causa da quantidade de lixo orgânico, de ramos mortos, de cascas e folhas de eucaliptos e de pinheiros. Quando se olha para aquela paisagem e sabemos que ardeu tudo passados meses, pensamos que é “normal” que arda. É uma paisagem estragada e monótona… Qualquer outra paisagem na Europa é rica de cores, de imensas espécies autóctones, mas quando se olha para uma paisagem portuguesa é sempre verde baça do eucalipto e do pinheiro. É muito difícil encontrar floresta portuguesa em Portugal. Quando encontramos, ficamos maravilhados. Mesmo que não haja limpeza, a nossa floresta regenera as suas sobras e cria condições para retardar e até impedir os fogos. A floresta de eucalipto e pinheiro não regenera nada. Acumula-se à espera de arder. É uma acendalha, pronta a queimar. Não há responsabilização dos proprietários e sem ela nada mudará.