Nasceu em Alcobaça, mas, com sete anos, mudou-se para Leiria, onde estudou até ir para a universidade. Em que momento tomou consciência da realidade opressiva que se vivia?
A partir da adolescência, por influência de colegas e professores. O Liceu de Leiria foi um momento extraordinário de acesso a uma leitura crítica da realidade. Presto, sobretudo, homenagem àqueles professores que me ajudaram a estimular a observação crítica da realidade e o espírito de inconformismo. A literatura também teve um papel muito importante. Durante três anos, estive à frente do jornal do Liceu, o Despertar, que tinha sido dirigido por Guilherme Valente, e isso levou-me a ler muito, para me inteirar sobre vários assuntos. A consciência política foi-se formado, sobretudo, na escola e no seio dos amigos. Em casa, havia uma enorme despolitização decorrente de todos os mecanismos de intimidação.
É na universidade que se envolve em acções mais directas de oposição ao regime.
Acontece no início da faculdade e no quadro do movimento estudantil, em Lisboa. Mas nunca teria assumido a integração nesse movimento e o desempenho de actividades nesse quadro sem a preparação que levava do Liceu de Leiria.
Nas eleições de 1969 foi indicado para a lista da CDE (Comissão Democrática Eleitoral) por Leiria, mas acabou impedido de concorrer. O que aconteceu?
No ano anterior, tinha feito parte do secretariado duma organização que coordenava as actividades das associações de estudantes de Lisboa, onde estava também Jaime Gama. Esse organismo era considerado ilegal. O regime impediu a minha candidatura por eu ter participado numa organização académica ilegal que havia desencadeado movimentações e greves académicas e por ter feito discursos em plenário na cidade universitária, atribuindo-me “ideias contrárias aos princípios fundamentais da ordem estabelecida”.
Foi aí que percebeu que estava marcado pelo regime?
Talvez tenha sido o primeiro momento em que tive essa consciência, embora só muito mais tarde, consultando a documentação, soube o quão sinalizado estava. Houve correspondência entre o Ministro da Educação e outros governantes a propósito dos estudantes que, segundo ele, provocavam lutas académicas e as movimentações estudantis. Estão lá mencionados os nomes, entre os quais o meu. Até ao impedimento da candidatura não tinha bem consciência da forma como estava a ser controlado. Nunca tinha sido preso nem interrogado ou tido qualquer atrito com a polícia política. Não imaginava que fosse alvo dessa medida.
A prisão aconteceu em 1971.
A 8 de Abril de 1971. Tive seis semanas preso. Depois das eleições de 69 houve uma luta académica importante na Faculdade de Direito. Foi no meu último ano da universidade. Já não era dirigente, mas pus-me ao lado da direcção associativa que desencadeou o movimento. No final, houve um encerramento da faculdade e um inquérito disciplinar. Eu e outros estudantes fomos abrangidos por uma decisão punitiva de expulsão de todas as escolas portuguesas, por vários meses, o que nos fez perder um ano de estudos. Fui preso no ano seguinte.
O que foi mais difícil de suportar na prisão?
O isolamento é a primeira condição de todos os aspectos negativos. O não poder contactar com advogado, não ter assistência, os inúmeros dias sem visitas. Depois, houve a tortura de privação do sono e da estátua, em que, além da privação do sono, estávamos impedidos de nos sentar ou deitar. É uma realidade muito penosa. Até porque havia a enorme incerteza sobre a duração do período de prisão, o não saber se iam ser seis semanas, seis meses ou seis anos.
Qual o tempo máximo a que foi sujeito à tortura do sono?
Só estive cinco dias. Outros estiveram muito mais. Imagino o sofrimento. Outros foram objecto de espancamentos e de tratamentos cruéis. Os estudantes e os intelectuais eram expostos apenas à tortura do sono.
Em 1973, foi mobilizado para Angola, mas não chegou a partir, porque optou pelo exílio. Já tinha a decisão tomada no caso de acontecer a mobilização?
A decisão foi muito precipitada. Quando fui mobilizado, integraram-me no curso de oficiais milicianos, mas na fase inicial da recruta houve um despacho do secretário de Estado do Exército no sentido de passar para uma companhia disciplinar, com indicação de embarcar para Angola daí a quatro dias. Em articulação com um conjunto de camaradas planeámos a deserção colectiva. No dia do embarque cerca de uma dezena não compareceu.
Vai para Paris onde está no dia 25 de Abril de 1974. Como é que soube da notícia?
Pelo noticiário da hora de almoço da televisão francesa que abriu com a notícia de um golpe de estado em Portugal. Foi uma surpresa. Tinha havido 16 de Março, do qual só soubemos [os exilados] depois de o golpe ter sido derrotado. Havia a tese de que, como o poder era frágil, acabaria por cair nas mãos de extremistas que prosseguiriam a política colonial duma forma ainda mais agreste. Pelo que, o 25 de Abril apanhou muitos de nós de surpresa. Nesse dia, em França as notícias eram muito poucas. Só ao fim da noite é que a televisão apresentou os rostos da Junta de Salvação Nacional, figuras desconhecidas para nós. Aquilo parecia-se mais com uma ditadura militar latino-americana do que com qualquer governo civilizado da Europa. Fomos para a cama numa grande incerteza. No dia seguinte começa haver informação sobre a libertação dos presos. É decretada uma amnistia que deixou de fora as pessoas que se tinham ausentado para não participar na guerra colonial. A certa altura, através de contactos telefónicos, o professor Pereira de Moura, dirigente do MDP, passou-me a informação de que ia haver uma nova amnistia. No dia 3 de Maio, regressei a Portugal com a minha mulher e os meus filhos.
Retomou depois o serviço militar.
A minha ideia foi sempre a de interromper o serviço militar para não participar na guerra colonial, mas que o retomaria quando as autoridades militares obedecessem a um regime democrático e abandonassem a política colonial. Fiz questão de me apresentar para fazer o resto do serviço militar, boa parte cumprida na comissão de extinção da PIDE.
Leiria chegou a ser apontada como o quartel-general da oposição. É exagerado ou correspondeu à realidade?
A CDE de Leiria foi a primeira a ser constituída no País a 23 de Novembro de 1968, com um manifesto assinado por Vasco da Gama Fernandes e José Vareda, entre outros, e o objectivo de promover a participação eleitoral, o interesse pela política e o recenseamento. Isto dá a Leiria um papel pioneiro. Em virtude desse pioneirismo, Leiria passou a organizar todas as grandes reuniões nacionais da oposição. Uma das mais emblemáticas foi o encontro de São Pedro de Moel, com a aprovação de um documento programático onde aparece, pela primeira vez, o reconhecimento do direito dos povos à auto-determinação e o propósito de concorrer às eleições. Entre Abril e Setembro de 1969 há um conjunto de encontros nacionais da oposição realizados em Leiria. Chegavam a reunir mais de 100 pessoas representativas de quase todos os distritos. Salgado Zenha, Pereira de Moura e Jorge Sampaio foram algumas dessas pessoas.
Do passado para presente, pergunto-lhe que se, 50 anos depois, era este o País sonhava?
Para ser totalmente franco, quando nos batemos por liberdade, democracia, eleições e outras mudanças com implicações na vida das pessoas, estamos focados no curto prazo. Pensávamos no que havia para fazer, para lutar, para modificar. Os objectivos principais passavam pela conquista da liberdade, eleições livres e transformações na vida económica e social. A questão colonial era o maior e o mais imediato problema a resolver. E conseguiu-se, com imperfeições e dificuldades, é certo. Existia um outro vector, o do desenvolvimento, que se tornava indispensável. Fomos caminhando, porventura, sem atingirmos os níveis que todos desejaríamos. Temos muito trabalho pela frente, mas isso faz parte do mandato de cada geração
Tem reflectido sobre a problemática do distrito. O que mais o preocupa?
A extinção dos governos civis, que violou a Constituição, significou a desactivação do distrito, que hoje apenas serve para a definição do círculo eleitoral. A Constituição prevê que os distritos deixam de existir quando houve regiões administrativas. Na verdade, extinguiram-se os governos civis, desactivaram-se os distritos e não se criaram as regiões. Neste momento, o mapa eleitoral não coincide com nenhum outro. É preciso coragem para avançar com a reforma do sistema eleitoral, evoluindo para círculos uninominais que, no quadro de um sistema misto, garanta proporcionalidade. Isso teria uma grande vantagem para a expressão da vontade dos eleitores. Qualquer sistema, para não se tornar obsoleto, precisa de obras, que o tornem mais capaz de exprimir os anseios dos eleitores e de garantir a ligação entre os eleitores e os eleitos.
Critica a inexistência de uma estrutura intermédia entre os municípios e o nível nacional. Mas, temos as comunidades intermunicipais e as Comissões de Coordenação de Desenvolvimento Regional.
As comunidades intermunicipais são apenas associações de municípios, que se alinham com a nomenclatura estatística europeia das NUT. Isso provoca uma enorme dificuldade de leitura por parte dos cidadãos e um grande distanciamento na concretização da promessa constitucional das regiões. As CCDR não passam de simulacros de regiões. Há no País uma grande inércia reformista. Detectam-se os problemas, anuncia-se a resolução, mas tudo continua na mesma. O que ameaça o sistema político é obsolescência, porque os problemas são detectados e não vamos à oficina fazer as reparações necessárias. Periodicamente, há umas revisões – as eleições -, que resolvem alguns problemas, mas outros permanecem. Isso faz com que o descontentamento, a desconfiança e o desagrado se acumule, abrindo espaço a que um qualquer manobrador, mais ou menos oportunista, com ideias mais ou menos exóticas ou fundamentalistas, faça uso desse descontentamento.
Em entrevista recente ao JORNAL DE LEIRIA, Laborinho Lúcio disse que os problemas da Justiça “não se resolvem porque não se discute política [de Justiça], mas apenas medidas”. Partilha desta visão? Estamos há mais de uma dúzia de anos sem propostas de reforma na área da Justiça. Fez-se apenas uma alteração do mapa judiciário. O último momento em que se introduziram reformas amplas e negociadas remonta ao tempo em que fui ministro, com o acordo político-parlamentar entre PS e PSD sobre a Justiça. Fez-se a reforma do Código Penal e do Código de Processo Penal, em áreas como o segredo de justiça, os poderes do Ministério Público, as regras a aplicar na promoção dos juízes, a reforma da escola de magistratura e medidas de desmaterialização dos processos, como a Empresa na Hora. A frase “à política o que é da política e à Justiça o que é da Justiça” aplicou-se indevidamente à esfera política.
Por que diz isso?
Não se fizeram as mudanças necessárias. Por exemplo, a Constituição prevê a autonomia externa e interna do Ministério Público, que tem que ver com a ausência de intrusão do poder político e com o estatuto de cada magistrado. Na prática, os poderes a exercer em cada processo estão entregues a magistrados de quem nem sabemos o nome. O seu superior hierárquico – Procurador-Geral da República – diz-nos que não pode imiscuir-se naquilo que os seus magistrados fazem. Há uma ausência de prestação de contas, que é essencial em democracia e está prevista no quadro legal existente. Um exemplo: no caso das escutas está determinado que, de 15 em 15 dias, o juiz deve debruçar-se sobre os conteúdos interceptados. Mas temos pessoas alvo de escuta durante quatro anos sem serem acusadas, ouvidas ou interrogadas. É inconcebível. Temos ainda buscas e detenções feitas com grande aparato mediático. Isto acontece também porque há um insuficiente debate político e um escrutínio deficitário. Quando era ministro, dei uma entrevista à revista Visão em que disse que “nós não vivemos numa república de procuradores”, porque quem faz a Lei são os representante do povo.
Essa frase ainda se aplicaria hoje?
Ainda. Temos assistido a um conjunto de práticas intimidatórias. Isso pode reportar-se a grandes operações, envolvendo deslocações em aviões militares, o que é ultra-criticável, ou quando se vai a casa de um líder político, com cobertura mediática, porque a informação passou previamente para os órgãos de comunicação em violação do segredo de justiça. Por que é que ninguém investiga e se penaliza quem comete esse crime? Houve um ex-primeiro-ministro, cuja prisão foi transmitida em directo.
Cinco meses depois da demissão, por se saber que estava a ser investigado, António Costa ainda não foi ouvido nem constituído arguido. Isto é justificável?
Em primeiro lugar, a alusão feita num comunicado do Ministério Público a um suspeito que não se encontra em fuga e que ainda não foi constituído arguido nem interrogado é ilegal. A partir daí segue-se um conjunto de circunstâncias na esfera política extremamente perturbadoras. Na esfera jurídica, o cenário de suspeição grave caiu agora no Tribunal da Relação. Isto mostra uma clivagem muito acentuada entre a perspectiva do Ministério Público e a perspectiva da judicatura. Não estando a conduzir a viatura, considero muito discutível a demissão imediata do primeiro-ministro, com base num comunicado, que é uma ilegalidade. A actuação do Ministério Público e a interpretação do artigo do Código de Processo Penal que permite fazer comunicados públicos daquela natureza, é não só infeliz, mas uma ilegalidade e um abuso.
No discurso que fez há um ano, na sessão solene do 25 de Abril em Leiria, disse que “devemos estar preparados e vigilantes quando à nossa volta em tantos países e continentes se acendem tantos sinais e ameaças à democracia”. Essas ameaças também se sentem em Portugal?
Também. Porventura chegaram com algum atraso, porque também chegámos à democracia com cerca de três décadas de atraso em relação a um número significativo de países da Europa. Mas essas ameaças estão bem presentes. O acto de dissolução da Assembleia da República na sequência da demissão do primeiro-ministro, com fundamento num comunicado daquela natureza, sobre actos que têm que ver com a ideia de corrupção e de crimes análogos, acabou por potenciar os resultados eleitorais de uma força política que costuma generalizar as acusações de corrupção ao conjunto da classe política, considerando-a uma casta que se ocupa do Estado e que é corrupta.
Percurso
Entre a política e a advocacia
Foi em Évora de Alcobaça que Alberto Costa nasceu há 76 anos. Aos sete anos, mudou-se com a família para Leiria, onde viveu até ingressar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Aí, envolveu-se nos movimentos estudantis e em actividades de oposição ao regime. Assume, no entanto, que tal não teria acontecido “sem a preparação que levava do Liceu de Leiria”, onde começou a ganhar consciência política. Nas eleições de 1969 viu a sua candidatura vetada pelo regime e, dois anos depois, acabou preso pela PIDE. Viveu a parte final do Estado Novo exilado em Paris, onde estava quando se deu o 25 de Abril. Após uma breve experiência como jornalista, ainda antes de 1974, dedicou-se depois à advocacia, cumprindo em breve 50 anos de inscrição na Ordem dos Advogados. Regista ainda uma intensa carreira política como deputado à Assembleia da República e ministro da Administração Interna e da Justiça. Conta também com vários livros publicados, entre os quais um de poemas, que escreveu com apenas 15 anos, e vários de balanço das funções públicas que desempenhou como forma de “prestação de contas”.