«Alcaria das Cervas, que nem sempre conheceu este nome, era, outrora, um lugar muito apetecido por sanguinários invasores, tanto pela sua localização como pelas suas riquezas. Durante anos, a aldeia lá foi conseguindo resistir aos ataques cruéis e atrozes, guerreando os seus habitantes com tudo o que tinham à mão. Alcaria das Cervas é uma ilha, sem na verdade o ser. É-o no sentido figurado por se encontrar praticamente rodeada pelo rio que se encaixa na encosta onde as casas, agrupadas, fazem lembrar um presépio de musgo e peças de barro.
O lugarejo, conhecedor das suas atrações, vivia, então, em constante sobressalto, por isso, diariamente, um homem da aldeia vigiava, sentado num sítio altaneiro semelhante a uma cadeira que existia à entrada da ponte, o único acesso à aldeia. Era ele quem tinha a função de anunciar a chegada de possíveis invasores. Consta, no entanto, que, numa fatídica noite, um dos vigias se apaixonou perdidamente por uma linda rapariga que por lá apareceu e abandonou o seu posto para se entregar aos prazeres da carne.
Quando se apercebeu do erro que cometera, era já tarde e os usurpadores já tomavam cada centímetro da ponte. Só que, como num passe de magia, a rapariga transformou-se numa elegante e imponente cerva que, rapidamente, se posicionou sobre a ponte do lado da aldeia, enfrentando os invasores, bramindo aflitiva e fortemente.
Conta a história que, a cada passo que dava, aumentava o seu tamanho até atingir um porte gigantesco e descomunal. Vendo a magnitude de tal animal e a forma como ia ganhando terreno, os violentos homens, desajeitadamente, tentavam escapar, correndo para abandonar a ponte e alcançar a que julgavam ser segura margem, mas numa questão de segundos, atraídas pelo bramir da enorme cerva, centenas de outras ali assomaram tapando, literalmente, ambas as saídas da ponte, encurralando, assim, o exército entre muros.
No meio da confusão e do pânico, entre atropelos e precipitações e numa luta inglória pela sobrevivência, os invasores atiraram-se, em magotes, às águas do caprichoso rio que, percebendo a necessidade de proteger os habitantes, num primeiro momento, afastou as suas águas acolhendo todo o exército sobre as rochas irregulares do seu leito, fechando-as, de seguida, deixando-os ali, mergulhados, para sempre, de forma impiedosa e irreversível.
Ainda hoje, quando o rio se revolta e galga as margens, diz o povo que são os agressores a tentar regressar à vida, debatendo-se com as águas pesadas onde, inesperadamente, imergiram. Quanto à cerva, diz-se que partiu com as outras, mas que, todas as noites surge no cimo de um penhasco, onde fica até ser dia, velando pela segurança dos habitantes da aldeia.
Dizem, também, que, depois de se tornar cerva, nas noites em que o seu amado fazia a vigilância, ela se transformava em mulher e se mantinha ao seu lado, até ao clarear do dia, momento em que partia para o bosque e assumia, de novo, a sua forma animal.
Estas crendices marcam, entre outras, o património cultural desta aldeia que vive das suas tradições e do turismo caracterizado pelo alojamento local, a gastronomia e o lazer e de um comércio medieval de troca de produtos. Neste vale comunitário, o dialeto serve-se de ingredientes linguísticos do lado de cá, Alcaria das Cervas, e do lado de lá, Monte de lo Fuerte, resultando num repasto fausto, mas equilibrado, de que todos se alimentam.
É nesta aldeia, nesta aldeia a que esta lenda deu o nome, que vive Guilherme, um estranho e misterioso rapaz…»
(Excerto do próximo livro da escritora)
Texto escrito segundo as regras do Novo Acordo Ortográfico de 1990